RESUMO: Este artigo tem o objetivo de abordar a licença para tratar de assunto de interesse particular em confronto com o risco de caracterização de seu uso como ato de improbidade administrativa, à luz do entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-chave: Servidor Público. Licença. Assunto de Interesse Particular. Improbidade Administrativa. Atividade de Consultoria.
1. INTRODUÇÃO
A licença a que faz jus o servidor público federal quando pretende tratar de interesses particulares está regulada no art. 91 da Lei n° 8.112/90, nos seguintes termos:
Art. 91. A critério da Administração, poderão ser concedidas ao servidor ocupante de cargo efetivo, desde que não esteja em estágio probatório, licenças para o trato de assuntos particulares pelo prazo de até três anos consecutivos, sem remuneração.
Parágrafo único. A licença poderá ser interrompida, a qualquer tempo, a pedido do servidor ou no interesse do serviço.
Observa-se que a concessão da licença é uma faculdade da administração, que analisando critérios de conveniência e oportunidade pode indeferir o pedido do servidor lastreado no referido artigo. Além do que, uma vez concedida, a Administração pode determinar, a qualquer tempo, o retorno do servidor às suas atividades.
Também é conferido ao interessado o direto de requerer o retorno antes do prazo pré-fixado para o gozo da licença. Hipótese em que o órgão de exercício do servidor ficará obrigado a aceitá-lo de volta às suas atividades.
Com relação ao significado e abrangência do termo “assuntos particulares” explica Ivan Barbosa Rigolin:
Os assuntos particulares a que se refere a L. 8.112 são quaisquer assuntos ou interesses possíveis, entregues à escolha e ao alvedrio do servidor, que podem até mesmo referir-se a eventual contratação pela CLT do mesmo servidor, por exemplo, em entidade paraestatal federal.
Assuntos particulares, para efeito da L. 8.112, são com efeito todos aqueles que não digam respeito à própria L. 8.112, mas que contenham fundamento em outra legislação, ou cujo fundamento legal simplesmente não exista, como no caso de o servidor querer por sua conta viajar ao exterior, a lazer. Essa última situação evidentemente não enseja regime jurídico alicerçado em lei alguma; é considerado assunto particular, como no primeiro exemplo, apenas porque não está vinculado a qualquer disposição da L. 8.112[1].
2. DESENVOLVIMENTO
Ocorre que inúmeros servidores públicos federais, ocupantes de cargos considerados estratégicos para o governo, haja vista as atribuições exercidas - e a quantidade de informações importantes e muitas vezes sigilosas a que têm acesso no exercício das suas funções - passaram a pleitear a licença para tratar de assuntos particulares com o intuito de prestarem serviços remunerados aos particulares que têm interesses contrários ao do órgão a que está vinculado, é o chamado serviço de “consultoria”.
O Superior Tribunal de Justiça, analisando Recurso Especial interposto por Auditor Fiscal da Secretaria da Receita Federal que em gozo da licença prevista no art. 91 da Lei 8.112/90 e na qualidade de sócio de sociedade empresária passou a prestar serviços de consultoria tributária, manteve a condenação do servidor público por ato de improbidade administrativa em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal. In verbis:
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE CONSULTORIA E ASSESSORAMENTO NA ÁREA TRIBUTÁRIA. SÓCIO. AUDITOR-FISCAL DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL EM LICENÇA PARA TRATAR DE ASSUNTOS PARTICULARES. ATO ÍMPROBO CARACTERIZADO (ART. 9º, INCISO VIII, DA LEI N. 8.429/1992). ART. 3º DA LEI N. 8.429/1992. SÓCIO QUE SE BENEFICIA DA CONDUTA ILÍCITA. POSSIBILIDADE DA CONDENAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC.
1. Recurso especial no qual se discute a caracterização de ato ímprobo em razão de Auditor-Fiscal da Secretaria da Receita Federal, licenciado, por meio de sociedade empresária constituída, prestar serviços de consultoria e assessoramento na área tributária, bem como a possibilidade de condenação de seu sócio, Auditor-Fiscal aposentado, nos termos do art. 3º da Lei n. 8.429/1992.
2. Não viola o art. 535 do Código de Processo Civil o acórdão que decide de modo integral a controvérsia, de forma clara, coerente e fundamentada.
3. Ante as premissas fáticas contidas no acórdão recorrido, à luz da Súmula n. 7 do STJ, não há como revisar o entendimento de que a ação de improbidade não foi alcançada pela prescrição.
4. Por ausência de prequestionamento, nos termos da Súmula n. 211 do STJ, não se conhece do recurso especial, quanto à alegação de violação do art. 454, § 3º, do CPC. De toda sorte, vale mencionar que é pacífica a jurisprudência no sentido de que não se declara nulidade sem a comprovação do prejuízo. Nesse sentido, pelo STJ: REsp 977.013/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 30/09/2010. E, no mesmo sentido, pelo STF: HC 120582, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 11/03/2014, DJe-060; HC 121157, Relator Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, julgado em 08/04/2014, DJe-080.
5. O Auditor-Fiscal da Secretaria da Receita Federal, mesmo que licenciado para tratar de interesses particulares, e presta serviços de consultoria e assessoramento na área tributária, por meio de sociedade empresária constituída, pratica o ato ímprobo descrito no art. 9º, inciso VIII, da Lei n. 8.429/1992. Isto porque há verdadeiro conflito de interesses.
6. Como bem ponderado pelo pelo eminente Ministro Herman Benjamin em seu voto-vogal: "4. O servidor que, a pretexto de tratar de "assuntos particulares" propõe-se, na verdade, a simplesmente trocar de lado do balcão, oferecendo seus serviços aos regulados ou fiscalizados pelo mesmo órgão público a que pertence, leva consigo o que não deve (informações privilegiadas, dados estratégicos, conhecimento de pessoas e rotinas, das entranhas da instituição) e, quando retorna, traz também o que não deve (especialmente uma rede de clientes, favores e intimidades). 5. Incorre em inequívoco conflito de interesse o servidor afastado para tratar de assuntos "particulares" que exerce função, atividade ou atos perante o órgão ou instituição a que pertence, seja quando atua na representação ou em benefício daqueles que pelo Estado são regulados ou fiscalizados, seja quando aconselha (presta consultoria, para utilizar o jargão da profissão) ou patrocina demandas, administrativas ou judiciais, que, direta ou indiretamente, possam atingir os interesse do seu empregador estatal." 7. Nos termos do art. 3º da Lei n. 8.429/1992, o sócio que aufere lucro com a conduta ilícita do outro sócio não deve ser excluído da condenação tão somente porque é auditor-fiscal aposentado ou porque a sociedade foi licitamente formada.
8. É que não há como entender que não tenha se beneficiado da conduta ilícita, uma vez que contribuiu para o exercício da atividade econômica e partilhou dos resultados obtidos. Além disso, o contexto fático-probatório consignado no acórdão recorrido não dá margem para entender que, mesmo na qualidade de particular, o sócio não tinha conhecimento da ilicitude da conduta. Mutatis muntandis, vide: REsp 896.044/PA, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 19/04/2011.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido[2].
Na ocasião, o Ministro Relator Humberto Martins destacou em seu voto que os Tribunais Superiores já pacificaram o entendimento no sentido de que "o gozo de licença não descaracteriza o vínculo jurídico do servidor com a Administração " (STF, RE 382389, Relatora Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 14/02/2006, DJ 17-03-2006). No mesmo sentido, dentre outros: RE 300220, Relatora Min. Ellen Gracie, Primeira Turma, julgado em 26/02/2002, DJ 22-03-2002; RE 180597, Relator Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 18/11/1997, DJ 27-02-1998[3].
3. CONCLUSÃO
Sendo assim, o Superior Tribunal de Justiça entende que o servidor público federal não pode se favorecer da licença para tratar de assunto de interesse particular (artigo 91 da Lei n° 8.112/-90) e prestar, ao mesmo tempo, auxílio a particulares, utilizando-se de conhecimentos obtidos na qualidade de servidor público, em patente conflito de interesses com a Administração Pública.
Tal conduta configura improbidade administrativa por atentar contra os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 1352448/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 21/11/2014.
RIGOLIN. Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civis. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 91.
MADEIRA. José Maria Pinheiro. Servidor Público na Atualidade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2007.
[1] RIGOLIN. Ivan Barbosa. Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civis. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 91.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 1352448/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 21/11/2014.
[3] Disponível em <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201102552030&dt_publicacao=21/11/2014>
Procuradora Federal da Advocacia-Geral da União (Subprocuradora- Chefe da Comissão de Valores Mobiliários) e é Pós Graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Constitucional e Direito Tributário pela Universidade Anhanguera (Uniderp). Ex-Defensora Pública do Estado de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMPOS, Luciana Dias de Almeida. Licença do servidor público federal para tratar de assuntos particulares e a caracterização de improbidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42532/licenca-do-servidor-publico-federal-para-tratar-de-assuntos-particulares-e-a-caracterizacao-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 10 dez 2024.
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