LILIANE KAROLAYNE ALVES DO NASCIMENTO [1]
(coautora)
ROSÁLIA MARIA CARVALHO MOURÃO [2]
(orientadora)
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise do “O conto da Aia” publicado por Margareth Atwood. A apresentação de um futuro distópico baseado na sociedade atual levanta discussões sobre a liberdade e direitos das mulheres. O aborto, a sexualidade, o papel social da mulher e seus direitos são assuntos polêmicos, pois são observados sob uma ótica conservadora, contrária à evolução tecnológica e científica testemunhada a cada dia. A obra ocorre após um golpe sofrido nos Estados Unidos, por um grupo fundamentalista cristão chamado “Filhos de Jacob” que chegou ao poder e suspendeu a Constituição dos Estados Unidos, restringindo liberdades básicas como direitos físicos, o direito de se comunicar e a liberdade de religião. Imaginar que os direitos adquiridos através da luta das mulheres ao longo da história podem ser suspensos, suprimidos ou até mesmos extintos mostram o quanto é importante defendê-los e lutar para conquistar ainda mais. Também mostra que, como cidadãs, que as mulheres precisam ter o Estado como aliado, não inimigo para garantir a efetivação dos direitos já conquistados, mesmo que isso signifique afrontar conceitos ultrapassados enraizados na cultura, na política e na sociedade de um modo geral.
Palavras-chave: Corpo, Margaret Atwood, Desigualdade de Gênero, O Conto da Aia, direitos femininos, retrocessos.
Sumário: 1 Introdução. 2 Perda da identidade. 2.1 Perda da liberdade religiosa. 2.2 Aborto. 2.3 Liberdade de escolha com quem ter relações sexuais. 2.3.1 Relacionamentos homoafetivos.2.4 Segundo a lei, a infertilidade é feminina. 2.5 Estupro. 2.5.1 Culpa pelo estupro. 2.6 A extinção dos direitos fundamentais. 3 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Conto da Aia, escrito pela canadense Margaret Atwood em 1985, é um romance distópico passado nos Estados Unidos num contexto preocupante: um grupo de fundamentalistas religiosos cristãos, intitulados “Filhos de Jacó”, derrubam o governo democrático dos EUA e assumem o poder, criando a República de Gilead.
A distopia apresentada na obra O Conto da Aia permite que se faça uma comparação entre a realidade do livro e a que vivemos do ponto de vista jurídico, especificamente com relação aos direitos referentes às mulheres, que, na obra, são apenas objetos e não sujeito de direitos a serviço do Estado totalitário de Gilead, que Olhe extingue os direitos das mulheres, pois a culpa é inerente a elas, desde a história de Eva na Bíblia.
Segundo Simone de Beauvoir (2016, p. 191), “Este mundo que sempre pertenceu aos homens continua nas mãos deles; as instituições e os valores da civilização patriarcal sobrevivem a si mesmo em grande parte”. O tratamento dado às mulheres não é fictício, pois, desde os tempos antigos, as mulheres são tratadas como seres inferiores, por isso uma análise jurídica da obra faz-se pertinente, já que o empoderamento feminino está sempre presente em pautas de discussão.
A desigualdade de gênero existente em Gilead assemelha-se ao que é encontrado no mundo inteiro, pois se trata de uma fiel descrição da opressão sistemática há tempos sofrida pelas mulheres. Entender esse tema de diversos pontos de vista, além de ser enriquecedor, é necessária para a construção de uma sociedade justa e igualitária, que por tantas vezes é vista como utópica.
Dentro de algumas religiões, o corpo é compreendido como matéria, passando assim a ser uma forte expressão e manifestação de aspectos do sujeito, relevantes socialmente. A obra mostra outra ideia de corpo que parece desfazer o que está construído política e socialmente.
A obra literária expressa a constante mudança nas relações sociais e na mentalidade da sociedade com relação ao processo de modernização. Apesar de o avanço ter trazido grandes possibilidades para as mulheres, ele se deu de forma lenta e ainda está muito longe de ser finalizado. E, mesmo com as mudanças tecnológicas e sociais, a idealização de um futuro socialmente igualitário entre os gêneros é praticamente inviável com uma sociedade tão machista. Surge, então, a distopia como uma forma de expressar e evidenciar as falhas do sistema social.
E, mesmo sendo uma distopia, O Conto da Aia, que foi escrito no século passado, ainda se encontra muito atualizado, pois descreve uma sociedade fortalecida cada vez mais em pensamentos e ensinamentos muito antigos e opressivos que infelizmente ainda encontram-se muito existentes na sociedade atual. Chega a ser assustador saber que, apesar de ser um mundo ficcional, assemelha-se com a nossa história.
A proposta deste artigo é analisar as relações entre a obra O Conto da Aia, de Margaret Atwood, e as possíveis reflexões que se pode fazer sobre a questão dos direitos humanos, especialmente os direitos das mulheres, avanços e retrocessos ao longo da história, além de distinguir quais as violações de direitos identificados na obra literária.
Como o principal objetivo de Gilead era criar um mundo baseando-se na interpretação distorcida na Bíblia, o novo governo queria que esse novo mundo tivesse conceitos e padronizações diferentes da sociedade antiga, criando assim denominações diferentes e funções para cada cidadã(o) em que os papéis são definidos pelo gênero.
Seria uma sociedade em que as mulheres são despersonificadas e perdem o direito ao próprio nome, tornando-se apenas objetos. As Aias passaram a ser designadas pelos nomes dos comandantes, ou seja, o nome “Offred” significa que é “de Fred” literalmente.
Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o número de seu telefone, útil apenas para os outros; mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia ( ATWOOD, 2017, p. 103).
Além de ser terminantemente proibido ter um nome próprio, elas não podem, em nenhum momento, citar o seu nome antigo, pois é considerado crime. São induzidas até mesmo a esquecer aqueles nomes, já que nunca mais terão novamente aquela vida. Elas deixam de ter identidade própria, pertencem a Gilead e aos seus comandantes, seu nome antigo representa uma vida que não existe mais e que deve ser esquecida para que consigam servir adequadamente ao propósito de Gilead.
O fato de se lembrarem dos seus nomes é o que as mantêm com um pouco de sanidade, é o que faz com que elas suportem toda essa loucura para que possam lembrar quem são e o que já foram e o quanto têm importância a identidade que possuíam.
A identidade é um dos aspectos mais importantes de um indivíduo, possuindo características distintas, as quais nos diferenciam dos outros e estão relacionadas à nossa história de vida pessoal. E, com a perda dela, facilita na objetificação, além de trazer uma desvinculação com o passado.
Depois que o Estado Democrático dos EUA é destituído do Poder e cede lugar a um Estado Totalitário Religioso, as ações do governo são pautadas na Bíblia ou em uma versão distorcida desta feita pelos “Filhos de Jacó”, usando a desculpa de que querem consertar o mundo que está corrompido pelo pecado e corrupção dos valores cristãos. Uma das primeiras garantias retiradas é a liberdade religiosa, tornando aqueles que não se convertiam à religião instituída pelo novo governo de Gilead, inimigos do Estado, sendo estes são condenados à pena de morte.
Tudo é baseado na Bíblia, incluindo os nomes dos agentes públicos, como os Anjos e os Guardiões da Fé, e os mercados denominados por “Pães e Peixes” e “Escritos da Alma” eram identificados por desenhos, já que também era proibida a leitura e a escrita às mulheres.
A partir do momento que foi decretado crime ser de outra religião, o Estado deixou de ser laico, perdendo sua liberdade religiosa que é um direito humano fundamental, que deve ser garantido pelo Estado. Somente um Estado laico pode resguardar o respeito e a igualdade entre toda e qualquer religião, sem privilegiar algumas ou depreciar outras. Mas, para os fundadores de Gilead, é uma afronta seguir outras religiões, pois se não fosse somente uma religião una, não teria como comandar um país e impor suas normas.
Vamos igreja, como de hábito, e olhamos as sepulturas. Depois vamos ao muro. Só dois pendurados nele hoje: um católico, porém não um padre, com um cartaz com uma cruz de cabeça para baixo, e alguma outra seita que não conheço. O corpo identificado apenas com um J, em vermelho. Isso significa que não são judeus, pois estariam de identificados com uma estrela amarela [...]. Seja lá o que significasse não importava mais, estava morto do mesmo jeito. (ATWOOD, 2017, p. 238-239)
Depois que a religião formada pelos “Filhos de Jacó” chegou ao poder, eliminou e perseguiu todas as outras religiões que tinham dentro do Estado e executou seus adeptos, colocando-os expostos no muro como forma de alerta aos demais.
Há três novos corpos no muro. Um é de um padre, ainda vestindo a batina preta. A batina foi posta nele para o julgamento, embora tenham desistido de usá-las há anos, quando as guerras entre as seitas começaram. (ATWOOD, 2017, p. 55)
E por Gilead ser baseado em interpretações distorcidas da Bíblia, todos aqueles que tinham amplo conhecimento sobre a mesma foram executados, pois, para eles, conhecimento é Poder. Às mulheres não era permitido nem mesmo a leitura da Bíblia, Antes da Cerimônia, as passagens bíblicas eram lidas pelos comandantes que, após a leitura, iam copular com as aias para que estas engravidassem.
Com o país sofrendo uma grave crise de natalidade, os “Filhos de Jacó” utilizavam deste argumento para alterarem algumas leis antes mesmo de tomarem o poder. Tentando controlar essa taxa, as primeiras coisas proibidas foram os abortos e a utilização de qualquer meio que posso fazer com que uma gravidez seja interrompida. Os métodos anticoncepcionais também foram questionados, e a mulher não tinha direito a exercer a sua liberdade em relação ao seu próprio corpo.
A Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, que foi feita em 1994, estabeleceu um programa de ação que incluiu nos direitos humanos a categoria de direitos reprodutivos, e já foi reconhecido em diversos tratados internacionais, incluindo o direito à escolha livre e responsável do número de filhos e tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência.
Depois que a República de Gilead foi fundada, foi proibida terminantemente qualquer conduta que levasse ao aborto, e até mesmo aqueles que o faziam, quando era legalizado, foram condenados à morte. Isso valia para a mulher que abortasse, para enfermeiros (as) e médicos (as) que as auxiliassem a interromper a gravidez.
Cada um tem um cartaz pendurado ao pescoço para mostrar por que foi executado: um desenho de um feto humano. Eles eram médicos, na época, no tempo de antes, quando coisas desse tipo eram legais. Fazedores de anjos costumavam chamá-los: ou será que isso era alguma outra coisa? ( ATWOOD, 2017, p. 45)
E, mesmo não praticando mais os abortos, ainda assim os médicos eram mortos, pois o Estado de Gilead punia-os pelo que tinham feito antes das próprias leis de Gilead estarem em vigor. O Direito retroagia para prejudicar aqueles que tivessem realizado qualquer aborto, independente de, à época da realização do procedimento abortivo, ser este legalizado ou não, isso não importava para os comandantes de Gilead. Após a execução, os aborteiros eram expostos no muro para que servissem de exemplo para todos aqueles que pensassem em violar um dos direitos mais sagrados do ser humano: o direito à vida de um feto.
A gravidez era vista como obrigação para as mulheres, principalmente para as poucas mulheres férteis que se tornaram aias. Uma frase que é usada na Bíblia por Raquel “Dá-me filhos, ou se não eu morro” (Gênesis, 30: 1-3) é bastante utilizada pelas Aias no livro, pois, para elas, a frase tem dois sentidos: se não gerassem filhos, a morte não seria apenas no sentido literal, mas também uma morte real, já que esse é o destino das aias inférteis. Depois de passarem por três comandantes e não conseguirem engravidar, estas aias eram tidas como não mulheres e enviadas para limpar lixo tóxico sem o uso de equipamentos, levando-as a uma morte lenta e dolorosa.
Na República totalitária de Gilead, nenhuma pessoa pode escolher com quem manter relações sexuais, pois todos deveriam seguir os padrões de uma sociedade tradicional e muito antiga em que todos os casamentos são arranjados e escolhidos para formar alianças, adicionar status ou aumentar o poder do indivíduo.
Além da liberdade sexual que é atingida diretamente, não existe a liberdade para escolher um parceiro, pois as mulheres casadas não podem escolher seus maridos, é o Estado que se encarrega de escolher e definir quem merece um casamento de acordo com seu status perante Gilead.
No livro vemos exemplos disso com a Econoesposas, que são pessoas que não se encaixam na sociedade, porém não têm nenhum cargo e não fizeram nada fora da lei. Essas pessoas são dadas aos olhos e agentes como esposas para demostrar o agradecimento pelo bom serviço, isto é, para o governo, são apenas objetos. Assim, como as próprias esposas dos comandantes que são escolhidas entre mulheres jovens, filhas de outros comandantes ou de pessoas que tivessem um status político ou econômico em Gilead, os pais eram os responsáveis por escolher com quem suas filhas casariam e, para isso, utilizavam-se dos serviços das tias que os auxiliavam a escolher os melhores maridos.
É indispensável que a sexualidade integra uma condição humana. É descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, isto é, pré-conceitos, conceitos fixados pelo conservadorismo do passado e engessados para o presente e o futuro.
Segundo o livro de Margaret Atwood, as relações homoafetivas eram consideradas um crime grave e não eram permitidas em Gilead.
Os outros dois têm cartazes púrpura pendurados ao redor do pescoço: Traição por falsidade de gênero. Seus corpos ainda estão vestidos com os uniformes dos guardiões. Foram apanhados juntos, devem ter sido, mais onde? Numa caserna, num chuveiro? É difícil dizer. ? (ATWOOD, 2017, p. 55).
Em Gilead, homens e mulheres homossexuais são considerados traidores de gêneros e são executados, pois ser homossexual é pecado mortal e um crime perante o Estado. Em momento algum é considerado o amor ou qualquer tipo de sentimento entre duas pessoas do mesmo gênero que se amam. Segundo os comandantes de Gilead, dois iguais não procriam, além de serem contra as leis da natureza, é contra a manutenção da própria espécie.
O tratamento destinado a homossexuais em Gilead não é muito diferente do que acontece até hoje em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, em que ser homossexual é sofrer preconceito, ser discriminado constantemente, sofrer violência física como espancamentos, estupro corretivo (no caso das lésbicas), lesão corporal, além da violência psicológica como a exclusão social, a discriminação pela própria família, que sente vergonha de ter um filho gay/lésbica e culmina com a violência que é a morte, simplesmente por ter uma orientação sexual diferente da heterossexual. Em Gilead ser homossexual é uma violação grave, que termina com a morte e a exposição no muro, no Brasil ser homossexual é ter seus direitos constantemente violados pela família, sociedade e o próprio Estado.
A crise de infertilidade em Gilead foi gerada por anos e anos de poluição e contaminação radioativa na atmosfera, visto que o ar se torna demasiadamente poluído, assim como a água, fazendo com que os corpos humanos diminuam a sua capacidade de reproduzir.
A infertilidade sempre está relacionada à mulher, ela torna-se a culpada pelo fato de a sociedade perder os herdeiros, usando argumentos de uso indiscriminado de métodos contraceptivos pelas mulheres. As mulheres são culpadas e julgadas por não poder ou querer ter filhos. Os homens, por outro lado, apesar de também serem estéreis, não assumem de forma nenhuma a incapacidade de reproduzirem.
A sociedade é pautada nas leis do Antigo Testamento da Bíblia, por isso a importância de ter filhos. Gilead divide as mulheres pelas funções que elas exercem: as esposas são as mulheres dos comandantes, estão sempre ao lado deles e dão as ordens na casa, as Marthas são responsáveis pela limpeza, cuidados gerais com a casa e cozinha, as aias são mulheres férteis que são utilizadas como “úteros ambulantes” para procriaram e as tias são as responsáveis por ensinar as aias a serem submissas e servas fiéis a Gilead.
Às mulheres eram impostas a necessidade de gerar um filho como se essa fosse a instância máxima da realização na vida de uma mulher. A infertilidade era vista como fracasso, a impossibilidade de gerar uma criança faziam-nas se sentirem inferiores por não conseguirem gerar filhos a Gilead, não conseguiam produzir os tão sonhados herdeiros para os comandantes e, por isso, as aias faziam-se necessárias.
Os comandantes são os homens mais poderosos de Gilead, a maioria deles é velho e são estéreis, mas a esterilidade masculina não existe segundo a lei.
A maioria desses velhos não conseguiu mais ter ereção e ejacular- Ou são estéreis.Eu quase engasgo de espanto: ele disse uma palavra proibida. Estéril. Isso é uma coisa que não existe mais, um homem estéril não existe, não oficialmente. Existem apenas mulheres que são fecundadas e mulheres que são estéreis, essa é a lei (ATWOOD, 2017, p. 75).
Todos têm o conhecimento disso, só que não podem falar. Até mesmo a palavra estéril é proibida. A lei é clara, não se pode falar de uma coisa que oficialmente não existe, homens estéreis não existem, afinal, a esterilidade é “privilégio” feminino.
Em uma passagem do livro, a própria Esposa do comandante diz “– Talvez ele não possa” (ATWOOD, 2017 p. 243). Isso mostra claramente que, mesmo se submetendo à cerimônia todos os meses, a gravidez não acontece com Offred, porque, assim como os dois comandantes anteriores, Fred também é estéril, até Serena Joy, sua esposa sabe disso, que o motivo dela e de outras aias não engravidarem é a esterilidade do comandante.
O poder é mais importante do que a reprodução; os homens, mesmo sendo inférteis (embora Gilead não reconheça a esterilidade masculina), não perdem seu status social e poder, já as mulheres consideradas inférteis ou dissidentes do sistema são enviadas às colônias para realizarem trabalhos forçados.
As mulheres que ainda são férteis foram escravizadas e transformadas em “úteros ambulantes”, as Aias servem ao propósito de gerarem os filhos dos comandantes de Gilead, visto que as esposas não são férteis e não podem dar-lhes herdeiros.
Embora este ato seja “condenado” na república de Gilead, eles praticavam mensalmente uma espécie de cerimônia onde as Aias eram estupradas e usavam um versículo da Bíblia para justificar tal ato.
Quando Raquel viu que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã. Por isso disse a Jacó: "Dê-me filhos ou morrerei! "Jacó ficou irritado e disse: "Por acaso estou no lugar de Deus, que a impediu de ter filhos?". Então ela respondeu: "Aqui está Bila, minha serva. Deite-se com ela, para que tenha filhos em meu lugar e por meio dela eu também possa formar família" (Gênesis 30:1-3)
Essa é toda a premissa das castas das Aias, é como os comandantes usam a justificativa bíblica para existência das Aias, que, além de passarem por abusos mensalmente, são obrigadas a gerar, carregar uma criança em seu ventre e, no final, entregá-la para o comandante e a esposa, pois as crianças geradas pela aia pertencem ao comandante de Gilead.
No capítulo XVI do livro, Offred descreve a cerimônia:
A Cerimônia se desenrola como de hábito. Deito-me de barriga para cima, completamente vestida exceto pelos amplos calções de algodão. [...] Não há calor neste quarto. Acima de mim, em direção à cabeceira da cama, Serena Joy está posicionada, estendida. Suas pernas estão abertas, deito-me entre elas, minha cabeça sobre seu estômago, seu osso púbico sob a base de meu crânio, suas coxas uma de cada lado de mim. Ela também está completamente vestida. Meus braços estão levantados; ela segura minhas mãos, cada uma das minhas numa das dela. Isso deveria significar que somos uma mesma carne, um mesmo ser. O que realmente significa é que ela está no controle do processo e portanto do produto. Se houver algum. Os anéis de sua mão esquerda se enterram em meus dedos. Pode ser ou não vingança. Minha saia vermelha é puxada para cima até minha cintura, mas não acima disso. Abaixo dela o Comandante está fodendo. O que ele está fodendo é a parte inferior de meu corpo. Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular também seria inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma está envolvida. Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu não tenha concordado formalmente em fazer. Não havia muita escolha, mas havia alguma, e isso foi o que escolhi. (ATWOOD, 2017, p. 115)
Conseguimos observar o corpo da Aia sendo transformado em um objeto. Um corpo que sente a rejeição pelo ato sexual, uma violação não só do corpo, mas da decência, dos sentimentos, ao mesmo tempo em que é colocado um ideal político. Apesar da descrição da cerimônia ser de um estupro, não é considerado como se fosse porque, quando uma mulher se torna aia, já sabe o que vai acontecer com ela, qual a função dela perante o Estado de Gilead e se presume que ela tenha dado o consentimento para que isto aconteça.
No entanto, a outra opção para as mulheres férteis, caso elas não queiram se tornar aias, é se tornarem uma não-mulher e limpar lixo tóxico nas colônias, sem nenhuma espécie de proteção, para que, no prazo de até dois anos, pereça vítima de câncer, com dores terríveis pelo corpo, levando as mulheres a uma morte lenta e dolorosa por não se submeterem ao jugo de Gilead.
Essas cerimônias, onde os comandantes estupram as Aias acontecem mensalmente até que as aias engravidem. Depois do nascimento da criança, a aia permanecerá com a família durante o prazo de seis meses, enquanto amamenta, depois é enviada a outro comandante para tentar novamente engravidar. O machismo presente em Gilead descreve esse ato como um privilégio para as aias, pois estão trabalhando para o futuro da humanidade.
Janine está em uma roda fazendo confissões com as outras aias no Centro Vermelho e, logo após falar do estupro coletivo que sofreu quando tinha catorze anos, uma das tias questiona de quem foi a culpa, e as aias induzidas pela tia respondem apontando para Janine que a culpa foi dela pelo que aconteceu.
É Janine, contando como foi currada por uma gangue aos catorze anos e fez um aborto. Ela contou a mesma história na semana passada. Parecia quase orgulhosa do ocorrido, enquanto o relatava. É possível que nem sequer seja verdade. Durante o testemunho é mais seguro inventar coisas do que dizer que você não tem nada a revelar. Mas sendo Janine, é provável que seja mais ou menos verdade.
Mas de que foi a culpa?, diz Tia Helena, levantando um dedo roliço.
Dela, foi dela, foi dela, foi dela, entoamos em uníssono.
Quem os seduziu? Tia Helena sorri radiante, satisfeita conosco.
Ela seduziu. Ela seduziu. Ela seduziu.
Por que Deus permitiu que uma coisa tão terrível acontecesse?
Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma lição. Para lhe ensinar uma lição. (ATWOOD, 2017, p.88)
Essa culpabilização da vítima chama-se cultura do estupro, que leva a uma objetificação sexual das mulheres, a negação dos estupros, a normalização de comportamentos violentos no sexo.
Essa cultura mostra que a sociedade vê esses tipos de comportamentos sexuais violentos e indesejáveis como“normais”, sempre buscando uma justificativa para as ações dos agressores, enquanto continuam responsabilizando as vítimas pela violência que sofreram, questionando-se seu comportamento, sua roupa, ou se falou alguma coisa que abriria possibilidade para isso.
É importante lembrar que a pessoa que foi estuprada não é a responsável pelo que lhe aconteceu, de forma alguma.O único responsável por causar o estupro é o estuprador. A culpa é inteiramente dele, que não vê a mulher como um ser humano, mas apenas como um corpo disponível para a obtenção do prazer sexual masculino.
“Foi depois da catástrofe, quando mataram a tiros o presidente e metralharam o Congresso, e o exército declarou um estado de emergência. Na época, atribuíram a culpa aos fanáticos islâmicos.” (ATWOOD, 2017, p. 208). Assim os Estados Unidos tornavam-se a República de Gilead, com o propósito de retornar aos valores tradicionais. Para isso, suspenderam a Constituição, sob o pretexto de que seria temporário, e qualquer resistência foi combatida com o uso da força.
Com a suspensão da Constituição, a nova Carta Magna passou a ser a Bíblia, aplicada totalmente em sentido literal. Os direitos fundamentais, como a dignidade, a honra, a liberdade e a propriedade, deixaram de existir, restringindo a existência das mulheres apenas à sua função reprodutiva, isso fica evidente quando Offred fica emocionada quando escuta um cumprimento tão comum como “Oi” vindo do Comandante.
Um direito fundamental, para nós tão simples, como o direito ao lazer, é motivo de sentimentos muitos intensos por parte de Offred. Observando a ação de ler, como uma forma de lazer, essas foram as palavras de Offred ao ver uma revista feminina:
Olhando fixamente para a revista, enquanto ele a levantava e balançava diante de mim como uma isca para peixe, eu a quis. Quis a revista com uma força que fez doerem as pontas de meus dedos. Ao mesmo tempo vi esse meu desejo intenso como algo trivial e absurda, porque outrora havia menosprezado e considerado essas revistas muito levianamente.” (ATWOOD, 2017, p. 187).
O lazer permite a construção do ser social, daquele que se afasta do ambiente ou atividade laboral para o crescimento pessoal e vida em comunidade, além de ser um indicativo para a satisfação do direito à dignidade. Nota-se que o Estado, na obra de Atwood, não enxerga as mulheres como seres humanos que necessitam de lazer para o seu crescimento pessoal, pois elas são vistas mais como objetos do que pessoas.
Outro direito fundamental extinto foi o direito à liberdade. As mulheres, na República de Gilead, não tinham permissão, por exemplo, para trafegar onde quisessem. Seus passos eram constantemente vigiados. Existiam postos de controle que monitoravam a entrada e a saída de todos, de modo que se poderia acompanhar a trajetória de alguém. As Aias, por exemplo, só podiam ir a determinados lugares, com trajetórias estabelecidas e sempre acompanhadas. “Não tínhamos permissão para sair, exceto para caminhadas, duas vezes por dia, duas a duas...” (ATWOOD, 2017, p.12). Essa era a liberdade que as aias tinham. Este cenário de coerção e vigilância constante nos coloca diante do contexto no qual se estabeleceram as relações de poder na sociedade Gilead.
No “O Conto da Aia”, observa-se que o papel social da mulher é extremamente bem definido, estando elas inclusive separadas em castas: as Aias, as Martas, as Esposas e as Tias. Na obra, as mulheres não têm qualquer espaço na esfera pública, sequer poderiam ter um emprego, elas existiam apenas na esfera privada, dentro de casa, como é possível ler no seguinte trecho:
É estranho, agora, pensar em ter um trabalho. Trabalho. É uma palavra engraçada. Isso é trabalho para homem. Já fez o trabalho, diziam para crianças quando estavam sendo ensinadas a usar o banheiro. Ou cachorros: ele fez o trabalho no tapete. Você devia bater neles com um jornal enrolado, minha mãe dizia. Lembro-me de quando havia jornais, embora nunca tenha tido um cachorro, só gatos. O Livro de Job, a Bíblia, o livro do trabalho de Deus. Todas aquelas mulheres tendo emprego fazendo seu trabalho: difícil de imaginar, agora, mas milhares delas tinham empregos, milhões. Era considerado uma coisa normal. Agora é como lembrar dinheiro em papel-moeda, quando eles ainda tinham isso. Minha mãe guardou algumas notas, coladas em seu livro de lembranças, junto com as fotos antigas. Naquele tempo já era obsoleto, não se podia comprar nada com ele. (ATWOOD, 2017, p. 207).
Com a perda de um dos principais direitos conquistados pelas mulheres, os únicos cargos que exerciam agora eram de Esposas e empregadas, ou qualquer outro que seja direcionado para casa, sendo assim a única coisa que restou foi cuidar da casa como as mulheres faziam antigamente. Acreditavam que o trabalho era uma responsabilidade exclusiva dos homens, por isso que os mesmos eram encarregados pelo sustento da casa.
A análise de alguns direitos fundamentais extintos pela República de Gilead demonstra a importância desses direitos na nossa realidade. São eles que garantem às mulheres a sua autonomia. Se com esses direitos à luta já é árdua, sem eles sequer existiria luta.
3 CONCLUSÃO
Após a análise de diversos pontos da obra, conclui-se que o Conto da Aia, mesmo sendo uma distopia, é uma demonstração crua do que as mulheres passam desde o princípio, e mostra a importância da ficção ao ajudar as pessoas enxergarem a o mundo como ele é muitas vezes cruel e desumano.
Segundo estudo, é notório que se perceba que a sociedade de hoje ainda possui os aspectos sociais e culturais do sistema patriarcal, pois muitas vezes os corpos das mulheres são objetivados e sofrem algum tipo de violação dos cidadãos todos os dias e vistos como um comportamento correto. Apesar de muitas conquistas, a imagem feminina ainda é vítima de abusos de longa data. Está à mercê dos homens, que dizem como as mulheres devem se vestir, se comportar, que empregos devem ter, que posições trabalhistas ocupar, se devem ou não serem mães e quando isso deve acontecer. Quando assediadas ou estupradas a culpa é delas porque não se comportaram de forma adequada e seduziram os homens.
Outro aspecto claramente colocado no livro é o controle do corpo feminino através da padronização das castas dividindo as mulheres em: esposas, tia, marthas e aias. Os corpos destas eram utilizados para a reprodução, e também para identificação de controle populacional. No Brasil, também é possível analisar as tentativas de controle do corpo das mulheres, através da cultura do estupro, do impedimento do aborto legal e seguro e a criminalização da mulher que comete o aborto, da falta de informação sobre sexo seguro e dos métodos contraceptivos nas classes sociais mais pobres.
Observa-se também na obra que as mulheres são apenas objetos do Estado e por isso não tem direitos, por exemplo o direito ao trabalho, à liberdade e ao lazer. A falta deles deixam as mulheres o mais longe possível de ter uma existência digna. Tal existência, hoje, existe graças às muitas lutas das mulheres ao longo do tempo e é constante alvo de conservadores, que assim como os fundamentalistas religiosos da obra, enxergam as mulheres como simples corpos com propósito reprodutivo.
Muito espanta as pessoas quando uma mulher não aceita ser diminuída ou menosprezada, mas a obra de Atwood, mesmo distópica, mostra porque é tão importante uma mulher se posicionar quando se depara com alguma injustiça. Da noite para o dia, os direitos conquistados com tanto esforço podem ser exterminados por aqueles que se sentem ameaçados por algo tão natural: a força feminina.
REFERÊNCIAS
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[1] Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. E-mail: nascimentoliliane512@gmail.com
[2] Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí (2007). E-mail: rrosapi@yahoo.com.br
Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Ailana do Nascimento. Direito ao corpo à luz da obra o Conto da Aia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2020, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55618/direito-ao-corpo-luz-da-obra-o-conto-da-aia. Acesso em: 08 out 2024.
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