RESUMO: A pesquisa objetiva analisar sobre o direito de morrer com dignidade. Metodologicamente, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, sendo possível reunir livros, artigos e seus consequentes autores para análise do assunto ora em comento. No campo acadêmico/cientifico este trabalho é relevante por que discute o direito das pessoas decidirem sobre o seu próprio direito de escolha entre viver vegetativamente e morrer com dignidade; no campo social este trabalho é relevante por discutirá os fundamentos do princípio da dignidade humana e, contraponto aos termos da autonomia da vontade. Dividiu-se a pesquisa em 04 itens, quais sejam, dignidade humana; morte através dos tempos; ortotanásia e suas considerações jurídicas, e a autonomia da pessoa em optar por morrer com dignidade.
Palavras-chave: direito; morte; dignidade.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. DIGNIDADE HUMANA NA HISTÓRIA - 3. A MORTE ATRAVÉS DOS TEMPOS - 4. CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE ORTOTANÁSIA - 5. O PAPEL DA AUTONOMIA DO PACIENTE QUANTO À DECISÃO SOBRE O MOMENTO DE SUA MORTE - 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS - 7. REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Brasileira (CF) de 1988 enumerou uma série de direitos individuais no art. 5º. Esses direitos não podem de forma algumas serem desrespeitados pelo Estado brasileiro em função de esses direitos possuírem características importantes (SILVA, 1998)B.
A primeira dessas características é a de que esses direitos são imprescritíveis, ou seja, eles não possuem espaço temporal para serem utilizados. Valem a qualquer tempo; a segunda características é de que eles são indisponíveis, ou seja, eles pertencem não só a individualidade, bem como a coletividade com exceção da intimidade e a privacidade; e, por fim esses direitos são indivisíveis, ou seja, eles fazem parte de um conjunto de direitos e não podem, em hipótese alguma serem analisados de maneira separada. Assim quando se desrespeita um deles, o desrespeito é para todos (ROCHA, 2009).
O Art. 5º da CF de 1988 garante o direito a vida quando fala que todos são iguais perante a lei e assegura a “inviolabilidade do direito à vida”. Segundo Boff (2012) a vida é um presente de Deus e se constitui no principal bem do ser humano. Dessa forma, todas as cartas normativas protegem esse bem maior do ser humano, criminalizando todos os atentados contra a vida das pessoas.
Também os ordenamentos jurídicos do mundo inteiro, pelo menos nos sistemas democráticos, garantem o princípio da dignidade humana está garantido no Art. 1º, inciso III da CF, como um dos mais importantes fundamentos do Estado Democrático de Direito. A dignidade humana e os direitos humanos não são vividos como conceitos abstratos. Eles têm significado e peso tangíveis no contexto da experiência humana concreta - história, liberdade, razão e comunidade (SANTOS, 2009).
Essa lacuna entre universal e particular é o cerne do problema com o qual "Dignidade Humana e Interpretação Judicial dos Direitos Humanos” de McCrudden (2013) luta, bem como o fulcro dos direitos individuais das pessoas.
A dificuldade, claro, não é exclusiva do conceito de dignidade humana. É comum a todos os princípios amplos e gerais envolvidos na interpretação e julgamento dos direitos humanos: por exemplo, aspirações fundamentais como igualdade, justiça e paz; critérios de limitação, como as necessidades de uma decisão pessoal de interromper a sua própria vida em nome da dignidade humana e como fundamento do princípio da autonomia da vontade. Esse princípio se originou com o nascimento do Estado Democrático de Direito. Dentro das questões do principio da autonomia da vontade e considerando as questões da dignidade humana indaga-se: é possível se interromper a vida como princípio da autonomia da vontade, pra se morrer com dignidade dentro do ordenamento jurídico brasileiro? (SOARES, 2017).
Para responder a esse questionamento, este estudo terá como objetivo geral será de refletir sobre a intrincada questão do direito de morrer com dignidade, focalizando a atenção no papel dos entes queridos do paciente, além de especificamente entender à noção de dignidade humana dentro da Constituição Federal de 1988; avaliar os melhores interesses de uma pessoa ao longo do tempo para determinar se ela está revogando declarações e prioridades anteriores; e, verificar o direito de morrer com dignidade dentro dos princípios constitucionais brasileiros (TORRES, 2014).
Deve-se ter muita cautela com os incidentes em que os melhores interesses dos entes queridos do paciente vêm em detrimento dos melhores interesses do paciente. Deve-se levar em consideração os argumentos em que deve-se considerar a questão de saber se as pessoas amadas do paciente demonstram uma posição unificada em relação ao destino do paciente (GLÓRIA, 2018).
O termo as pessoas amadas do paciente refere-se a pessoas que estão emocionalmente relacionadas ao paciente em questão. Essa relação próxima não significa necessariamente que apenas aqueles que têm apegos biológicos e conjugais devam dar seu consentimento e conselho (COSTA, 2015).
No Brasil a legislação não enfatiza o indivíduo e pode aplicar regras e códigos de comportamento diferentes daqueles que considerados verdadeiros como democracias liberais subjacentes, ou seja, respeito e preocupação pelos outros e não prejudicar os outros, o que justifica este trabalho em função de que existe algumas necessidades universais básicas que todas as pessoas desejam garantir, como comida, roupas e abrigo. Mas não se pode falar dos valores universais subjacentes na sociedade brasileira (SARLET, 2014).
Os cuidados básicos de saúde são agora reconhecidos como um bem público, em vez de um bem privado que se espera que compre para si mesmo. Como afirma a Constituição da Organização Mundial da Saúde: `O gozo do mais alto padrão atingível de a saúde é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, crença política, condição econômica ou social’ (ROCHA, 2009).
O esclarecimento adicional refere-se aos termos respeito e preocupação. Respeito por uma pessoa significa conceber o outro como um fim e não como um meio para algo. Como explica Immanuel Kant apud Soares (2017), os seres racionais são chamados de pessoas na medida em que somente sua natureza indica que são fins em si mesmos, ou seja, como algo que não deve ser usado apenas como meio, o que justifica este estudo. O estudo será realizado por revisão integrativa que é uma revisão geral da literatura existente como um processo sistemático que envolve estudos quantitativos e qualitativos - portanto, integrativos (inclusivos) (TORRES, 2014).
Dividiu-se a pesquisa em 04 itens, quais sejam, dignidade humana; morte através dos tempos; ortotanásia e suas considerações jurídicas, e a autonomia da pessoa em optar por morrer com dignidade.
2. DIGNIDADE HUMANA NA HISTÓRIA
A literatura romana clássica dispersa conceitos mais amplo de dignidade humana e encontra-se particularmente em Cícero, onde dignitas se referia também à dignidade dos seres humanos como seres humanos, independente de qualquer status adicional específico (TORRES, 2014).
Neste uso da dignidade, o homem é contrastado com os animais: ‘é vitalmente necessário que nos lembremos sempre de quão amplamente superior é a natureza do homem em relação ao gado e outros animais; seu único pensamento é para satisfação corporal” A mente do homem, ao contrário, é desenvolvida pelo estudo e reflexão. Disto pode-se aprender que o prazer sensual é totalmente indigno da dignidade da raça humana (CICERO apud SOARES, 2017, p. 133).
Visto desta forma, onde os seres humanos são considerados como tendo um certo valor em virtude de serem humanos, o conceito de dignidade humana levanta questões importantes como: Que tipo de seres somos nós? Como expressamos apropriadamente o tipo de seres que somos? Respostas radicalmente diferentes são possíveis, é claro, e aí está a raiz do problema com o conceito de dignidade humana (TORRES, 2014).
Desde então, basicamente três estratégias foram adotadas na tentativa de responder a essas perguntas. A primeira é, amplamente, de base religiosa – pode-se responder às perguntas vendo-as como ligadas ao sobrenatural. A segunda estratégia é filosófica – pode-se responder a essas perguntas usando o rigor filosófico. O terceiro é histórico – pode-se responder a essas perguntas observando que tipos específicos de ações ocorreram que se considera constituir uma violação da dignidade humana (GLÓRIA, 2018).
Essas três estratégias podem ser vistas como um jogo contínuo entre si. Cada um dos principais desenvolvimentos na compreensão e uso da dignidade ilustra uma ou mais dessas estratégias em operação. Durante a Idade Média, com o fermento do debate nos círculos intelectuais sobre a relação entre Deus e o Homem, a ideia de dignitas passou a ser utilizada como forma de distinguir entre o Homem e as outras criaturas, como o fez em Cícero (COSTA, 2015).
Os humanistas tentaram reconciliar o pensamento clássico e a teologia dogmática, enfatizando a ideia de que a humanidade tem dignidade porque o homem é feito à imagem de Deus, distinguindo o homem das outras espécies. Como Arieli apud Torres (2014, p. 234) argumentou: “a expressão a dignidade inerente do homem define o status ontológico do homem que deriva, em última análise, das concepções fundamentais do Ocidente criadas pela fusão do monoteísmo judaico-cristão com aqueles derivados do clássico e concepções humanísticas do homem. O Catecismo da Igreja Católica incorpora esta ideia do homem como feito à imagem de Deus como central para sua concepção da dignidade humana. Torres (2014, p. 237) diz com propriedade:
De todas as criaturas visíveis, apenas o homem é "capaz de conhecer e amar seu criador". Ele é ‘a única criatura na terra que Deus desejou para seu próprio bem’, e somente ele é chamado a compartilhar, por conhecimento e amor, a própria vida de Deus. Foi para isso que foi criado, e esta é a razão fundamental da sua dignidade ... Sendo à imagem de Deus, o indivíduo humano possui a dignidade de uma pessoa, que não é apenas algo, mas alguém. Ele é capaz de se conhecer, de se dominar e de se dar livremente e entrar em comunhão com as outras pessoas. E ele é chamado pela graça a uma aliança com seu Criador, para oferecer-lhe uma resposta de fé e amor que nenhuma outra criatura pode dar em seu lugar.
Pode-se identificar um exemplo interessante dos usos práticos para os quais foi dada a ideia emergente da dignidade como inerente ao Homem e, portanto, digna de proteção. Em Sobre a Lei da Guerra e da Paz, publicado em 1625, Hugo Grotius apud Torres (2014) considerou como deve-se tratar os restos mortais de inimigos mortos, e isso resultou em uma longa digressão sobre por que os rituais funerários eram importantes
Em primeiro lugar, embora seja tudo menos claro o que exatamente ele pretendia, uma passagem em que o termo é usado na Metafísica da Moral tornou-se a fonte mais conhecida para a crença subsequente de que a compreensão de Kant da dignidade humana exigia que os indivíduos fossem tratados como fins e não simplesmente como meios para um fim (ARENDT, 2012).
Em segundo lugar, com o tempo, essa conexão entre dignidade e Kant tornou-se provavelmente a concepção de dignidade não religiosa mais citada. Alguns, de fato, consideram-no como o pai do conceito moderno de dignidade humana (ARENDT, 2012).
Em terceiro lugar, seja certo ou errado, a concepção de dignidade mais intimamente associada a Kant é a ideia de dignidade como autonomia; isto é, a ideia de que tratar as pessoas com dignidade é tratá-las como indivíduos autônomos, capazes de escolher seu destino. E aqui se encontra com a ciência do direito (ARENDT, 2012).
O conceito de dignidade passou a ser usado como um grito de guerra para uma variedade de outros movimentos sociais e políticos que defendiam tipos específicos de reforma social durante o século XIX. Um dos epigramas de Friedrich Schiller, Würde des Menschen (1798) apud Soares (2017), coloca bem a conexão entre dignidade e condições sociais que estava começando a se desenvolver. Assim a dignidade passou a ser particularmente associada à abolição da escravatura. Simon Bolivar, o líder militar latino-americano, estadista e ícone, justificou a abolição da escravidão como uma violação descarada da dignidade humana e as leis que a perpetuam como sacrilégio. Um dos decretos da República Francesa estabelecido como resultado da revolução de 1848 aboliu a escravidão como uma afronta à dignidade humana.
A ideia da dignidade do trabalho foi usada para encapsular algumas das ambições igualitárias desses movimentos sociais, bem como fornecer um grito de guerra do crescente Movimento Trabalhista para mobilizar as classes trabalhadoras e defender o Estado para fornecer bem-estar social (AZEVEDO, 2002).
O uso da dignidade nos textos jurídicos, no sentido de se referir à dignidade humana como inerente ao Homem, surge nas primeiras três décadas do século XX. Vários países da Europa e das Américas incorporaram o conceito de dignidade em suas constituições: no México de 1917; em 1919 na Constituição de Weimar na Alemanha e Finlândia; em 1933 em Portugal; em 1937 na Irlanda; em 1940 em Cuba. No Brasil na Constituição de 1934 (SILVA, 1998).
No Brasil, embora uma revisão constitucional em 1937 tenha ocorrido com a instituição do Estado Novo em 1937, um sistema ditatorial, os princípios da dignidade humana permaneceram. em 1946 com o processo de redemocratização do país esse princípio foi reforçado; mantido nos textos constitucionais de 1967 e 1969, e profundamente valorizados no texto constitucional de 1988 (SILVA, 1998).
Assim a CF de 1988 reforçou a ênfase colocada sobre a dignidade do homem como seu valor central. Destas referências constitucionais nacionais à dignidade, a influência do pensamento católico, socialdemocrata e kantiano na redação dessa constituição é bem conhecida, e a dignidade tem o lugar mais proeminente de todas na Lei Básica que surgiu em 1934 no Brasil e reforçada em 1988 (SILVA, 1998).
3. A MORTE ATRAVÉS DOS TEMPOS
Pensar a vida é, ao mesmo tempo, pensar a morte. Talvez nós, homens e mulheres, sejamos os únicos a ter certeza de nossa finitude, de que somos mortais, de que vivemos por um determinado tempo, em uma determinada época e cultura específica. E, por que não dizer, representando a vida e a morte de uma maneira muito própria e elaborando um conjunto de discursos para afirmar ou negar, justificar e/ou convencer-nos de que a morte física não é o fim de tudo. Ela seria apenas o início de uma “nova” vida, mais plena e mais feliz. Penso, junto com Bauman (2008), que as culturas humanas podem ser decodificadas como mecanismos engenhosos calculados para tornar suportável a vida com a consciência da morte. E nesse aspecto, a inventividade das culturas de “tornar possível conviver com a inevitabilidade da morte” é, ainda para Bauman (2008, p. 46), assombrosa embora não infinita.
Fustel de Coulanges (2001, p.13) inicia uma de suas mais importantes obras, A Cidade Antiga, referindo-se às crenças antigas e, especialmente, às crenças sobre a alma e sobre a morte, afirmando que, até onde nos é dado remontar na história da raça indo-européia, de onde se originaram as populações gregas e italianas, observamos que esta raça jamais acreditou que, depois desta curta existência, tudo terminasse com a morte do homem. As gerações mais antigas, bem antes que existissem filósofos, já acreditavam em uma segunda existência, para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte, não como uma aniquilação do ser, mas como simples mudança de vida.
E Coulanges (2001) finaliza suas considerações afirmando que foi, talvez, diante da morte que o homem, pela primeira vez, teve a ideia do sobrenatural e quis abarcar mais do que seus olhos humanos podiam lhe mostrar. A morte foi o seu primeiro mistério, colocando-o no caminho de outros mistérios. O ser humano deslocou o seu pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano ao divino.
Trouxe a obra acima para referendar a tese segundo a qual a religião seria, possivelmente, o mais bem elaborado sistema de representação construído para negar a morte biológica. Nessa perspectiva, cito novamente Bauman (2008, p. 46-47) quando afirma que,
de longe a mais comum e aparentemente efetiva das invenções culturais relevantes, e assim também a mais tentadora é negar a finalidade da morte: a ideia [...] de que a morte não é o fim do mundo, mas a passagem de um mundo para outro. Os moribundos não vão deixar o único mundo que existe para se dissolver e desaparecer no submundo da não-existência, apenas mudarão para outro mundo – onde continuarão existindo, conquanto numa forma um tanto diferente daquela que se acostumaram a chamar sua. [...] Os corpos usados e gastos podem se desintegrar, mas o “estar no mundo” não está confinado a esta carapaça de carne e ossos aqui e agora. Com efeito, a atual existência corpórea pode muito bem ser apenas um episódio recorrente numa existência interminável, embora constantemente mudando de forma (como no caso da reencarnação) – ou uma abertura para a vida eterna da alma que começa com a morte, transformando dessa forma o momento da morte num momento de libertação da alma de seu revestimento corporal (como na visão cristã da vida após a morte).
Ainda para Elias (2001, p. 86), a natureza da morte nas sociedades industriais desenvolvidas, com o isolamento emocional como uma das características preeminentes, surge de modo particularmente claro, se compararmos os procedimentos e atitudes relativos à morte nas sociedades industrializadas e acentuadamente individualizadas, em relação aos dos países menos desenvolvidos. Contudo, apesar de estarmos familiarizados com pinturas de períodos anteriores que retratam famílias inteiras – mulheres, homens e crianças – em torno do leito da matriarca ou do patriarca moribundo, talvez essa seja uma idealização romântica da morte.
Elias (2001, p.86) afirma que famílias nessa época podem ter sido muitas vezes negligentes, brutais e frias. Os ricos nem sempre morreram de maneira suficientemente rápida para seus herdeiros. Os pobres podem ter ficado estendidos sobre sua sujeira e passado fome. Pode-se dizer que antes do século XX, ou talvez do XIX, a maioria das pessoas morria na presença de outras apenas porque estavam menos acostumadas a viver e estar sós.
Apesar de não ser mais tranquila, o certo é que a morte era tema mais aberto e frequente nas conversas da Idade Média do que hoje. Em comparação com o presente, a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar. Isso não quer dizer que era mais pacífica. Além disso, a experiência do medo da morte não foi constante nos muitos séculos da Idade Média, tendo se intensificado durante o século XIV. As cidades cresceram. A peste se tornou mais renitente e varria a Europa em grandes ondas. As pessoas temiam a morte ao seu redor. Pregadores e frades mendicantes reforçavam tal medo. Em quadros, surgiu o motivo das danças da morte, as danças macabras (Elias, 2001, p.21).
Entre os recentes ícones de imortalidade pelos feitos individuais, um dos rostos mais conhecidos, principalmente nos países denominados de “Terceiro Mundo”, seria o do revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara, imortalizado por sua participação na Revolução Cubana que derrubou a tirania de Fulgêncio Batista. Outro indivíduo conhecido e imortalizado, pelo menos aqui no Brasil, seria Airton Senna, piloto de Fórmula Um, que morreu num acidente na corrida de Ímola na Itália, em 1994.
No que diz respeito à eutanásia, o termo foi criado apenas no século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon, derivado do grego eu (boa), thanatos (morte), ou seja, “boa morte”, “morte apropriada, morte piedosa, morte benéfica, fácil, crime caritativo, ou simplesmente direito de matar. Contudo, tal prática é herdeira de uma longa tradição (Sá, 2005). Comum, entre os povos denominados de primitivos, que sacrificavam doentes, velhos e débeis, era praticada publicamente numa espécie de ritual de expiação, na Índia antiga, Esparta, Idade Média, entre outras épocas. Em poucos termos, a eutanásia foi largamente praticada, sob uma diversidade de argumentos. Algumas vezes aplicados como punição ou como higienização social. Outras, com uma conotação humanitária.
A partir da Modernidade, contudo, através da racionalização e humanização do Direito moderno, tal prática adquiriu um caráter criminoso, sob o argumento da proteção ao mais valioso dos bens: a vida. Assim, o ordenamento jurídico dos chamados países civilizados, herdeiros do pensamento jurídico Greco-romano, e dos princípios jurídicos das diversas correntes filosófico-jurídicas de pensamento, se sobrepõe à liberdade de escolha do próprio indivíduo quanto à morte com dignidade ou à vida indesejada. Como se verá na próxima sessão, o principal fundamento jurídico desse discurso provém do fortalecimento do Estado Moderno e do Biopoder.
4. CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS SOBRE ORTOTANÁSIA
Denota-se que as resoluções do Conselho Federal de Medicina 1.805/2006 e 1.931/2009 em situações em que haja terminalidade de vida, houve recomendação no sentido de aplicar a ortotanásia como prática ética.
Assim, Leo Pessino (2005) fazendo uma alusão sobre a questão histórica entrelaçada nos Códigos de Ética Médica, destacou que até o ano de 1988 se ocorre uma mudança de paradigma para os dias de hoje, no sentido de entender que nem sempre a tentativa de prolongamento da vida dos enfermos será estritamente prioritários, havendo a necessidade de viabilizar uma visão sobre o bem-estar do paciente, sendo recomendável:
No atual código de ética médica, de 1988, notamos importante mudança de ênfase. O objetivo da medicina não é apenas prolongar ao máximo o tempo de vida da pessoa. O alvo da atenção do médico é a saúde do ser humano e o critério para avaliar seus procedimentos é se eles vão beneficiá-lo ou não (cf. art. 2º). O compromisso com a saúde, principalmente se entendido como bem-estar global da pessoa e não apenas ausência de doença, abre a possibilidade para outras questões no tratamento do doente terminal, além das questões curativas. Mesmo assim, continua firme a convicção, também encontrada em códigos anteriores, de que “O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana (...)” (art. 6º). (PESSINI, 2005, p.41).
Ressalta-se que uma das resoluções acima mencionada foi questionada juridicamente por meio de uma Ação Civil Publica movida pelo Ministério Público Federal, trazendo como bojo argumentativo sobre a questão do abreviamento da vida, sendo necessário que seja combatido o risco da utilização inadequada desses fatores.
Na referida Ação, o magistrado Roberto Luis Luchi Demo julgou improcedente, aludindo que a prática da ortotanásia é atípico, bem como a postura médica ética sobre a terminalidade da vida é relevante. O referido julgamento trabalhou com princípios de Ética Médica consagrados originalmente no relatório Belmont e na obra Princípios de Ética Biomédica, de Beauchamp e Childress (2016), especialmente os da beneficência e da não maleficência:
É que, diagnosticada a terminalidade da vida, qualquer terapia extra se afigurará ineficaz. Assim, já não se pode aceitar que o médico deva fazer tudo para salvar a vida do paciente (beneficência), se esta vida não pode ser salva. Desse modo, sendo o quadro irreversível, é melhor - caso assim o paciente e sua família o desejem - não lançar mão de cuidados terapêuticos excessivos (pois ineficazes), que apenas terão o condão de causar agressão ao paciente. Daí é que se pode concluir que, nessa fase, o princípio da não-maleficência assume uma posição privilegiada em relação ao princípio da beneficência - visto que nenhuma medida terapêutica poderá realmente fazer bem ao paciente. Então, o que propugna a medicina paliativa, em cujo contexto está a ortotanásia, é que, na impossibilidade de salvar a vida, deve-se deixar correr o processo natural - e irreversível - da morte, conferindo-se ao paciente o maior conforto que possa ter nos seus últimos dias (o que pode se limitar ao alívio da dor ou chegar até a desospitalização, se esta for a vontade do próprio paciente e de sua família.
Dentre os defensores da ortotanásia destaca-se José Oliveira (2013) que dentre os fundamentos traçados em sua obra tem-se a ideia de morte com dignidade, em virtude de não haver regulamentações jurídicas que haja a manutenção de forma forçosa da vida em situações de terminalidade ou estado vegetativo, justificando-se, portanto, pela opção de ortotanásia.
Na mesma toada de pensamento, Gerson Camata (2010), criticando a legislação brasileira vigente sustenta ser a ortotanásia medida humanitária e o direito a morte digna verdadeiro direito fundamental:
A ortotanásia, nunca é demais repetir, é uma medida humanitária. A morte digna é um dos direitos fundamentais do homem, e ele está sendo roubado a muita gente que sofre, em nosso país, por culpa da inadequação da lei, que obriga os profissionais da medicina a submeterem seus pacientes a tratamento sem utilidade, causadores apenas de um martírio adicional. É a hora de acabarmos com isso, e de nos juntarmos aos países civilizados, que há muito tempo legalizaram o fim da submissão compulsória de pacientes desenganados a tratamentos inúteis.
Idêntico raciocínio é esposado por Luiz Roberto Barroso (2014), conforme se depreende da seguinte passagem:
Esta postura legislativa e doutrinária pode produzir consequências graves, pois ao oferecer o mesmo tratamento jurídico para situações distintas, o paradigma legal reforça condutas de obstinação terapêutica e acaba por promover a distanásia. Com isso, reforça um modelo médico paternalista que se funda na autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condição de sujeito do enfermo. Ainda que os médicos não mais estejam vinculados eticamente a este modelo superado de relação, o espectro da sanção pode levá-los a adotá-lo. Não apenas manterão ou iniciarão um tratamento indesejado, gerador de muita agonia e padecimento, como, por vezes, adotarão algum não recomendado pela boa técnica, por sua desproporcionalidade. A arte de curar e evitar o sofrimento se transmuda, então, no ofício mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condições. Não é apenas a autonomia do paciente que é agredida. A liberdade de consciência do profissional de saúde pode também estar em xeque.
Pablo Stolze Gagliano (2014) lembra que o anteprojeto do novo código penal expressamente descriminaliza a prática da ortotanásia, o que afastaria os receios da comunidade médica quanto a possíveis consequências penais, minimizando as críticas feitas pelos autores supra:
Parte-se do pressuposto de que a supressão de mecanismos artificiais que retardam o falecimento do enfermo, além de por fim ao seu martírio, possibilitará a conclusão natural do processo patológico iniciado. Não se caracteriza omissão de socorro, tipificada no art. 135, CP, uma vez que, no caso, deixa-se de utilizar aparelho que prolonga a vida do paciente sem a possibilidade de reversão ou cura(GAGLIANO, FILHO/2014/p. 204).
Depreende-se, da análise das contribuições acima mencionadas, uma preocupação em preservar a liberdade de consciência do profissional médico e, acima de tudo, da autonomia do paciente. Tal qual a questão da eutanásia (e mesmo a distanásia, quando seja o desejo do enfermo “viver a sua morte em sua intensidade e significado”), a autonomia passa a desempenhar papel crucial, pelo que se passa (dentro do que permitem os limites deste trabalho) a abordá-la.
5. O PAPEL DA AUTONOMIA DO PACIENTE QUANTO À DECISÃO SOBRE O MOMENTO DE SUA MORTE
A palavra autonomia é de origem grega, composta pelo adjetivo pronominal autos, que significa "o mesmo", "ele mesmo" e "por si mesmo"; e pelo substantivo nomos, com o sentido de "compartilha", "instituição", "lei", "normas", "convenção" ou "uso" (ALMEIDA, 1999). O dicionário Aurélio (FERREIRA, 2000) define autonomia como faculdade de governar-se por si mesmo, sendo autônomo aquele que não depende do outro. Conforme já se disse em outra passagem:
Percebe-se a noção de autonomia privada como a capacidade de que é dotada a pessoa de realizar escolhas e opções, que implicarão em consequências jurídicas e extrajurídicas. Mesmo os ordenamentos mais totalitários e mais restritivos reconhecem a capacidade do ser humano de determinar os rumos de seu comportamento. Mesmo as sociedades mais marcantemente caracterizadas pela padronização dos Standards de comportamento e consumo não podem suprimir (mas somente buscar influenciar) esta liberdade de autorregulação das próprias condutas (SILVEIRA; ROCHA, 2016, p. 10).
A ideia de autonomia é essencial onde se considera pessoa autônoma como aquela capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir na direção dessa deliberação – afirma que o princípio da autonomia não pode mais ser entendido apenas como sendo a autodeterminação de um indivíduo, já que esta é apenas uma de suas características e, tomada isoladamente, desconsidera o componente social.
Desse modo, retirando-se a questão de forma exclusiva patrimonialmente falando, abrange igualmente a proteção à liberdade de escolhas referentes a situações jurídicas existenciais, que permitam a realização dos projetos de vida do sujeito: “Liberdade significa, cada vez mais, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais –mais: o próprio projeto de vida, exercendo-o como melhor convier”(Op. cit., p. 108).
Luiz Roberto Barroso (2014) afirma que esta concepção da dignidade como um empowerment é característica dos grandes documentos relativos aos Direitos Humanos do século XX, e das constituições pós Segunda Guerra Mundial. A mesma pressupõe o entendimento de quatro elementos. Inicialmente, temos a capacidade de autodeterminação “poder de realizar as escolhas morais relevantes, assumindo a responsabilidade pelas decisões tomadas”.
Seu exercício pode sofrer restrições, justificadas pelo interesse público, na medida em que este possa ser afetado. Entretanto, ainda quando colida com o interesse coletivo, seu reconhecimento enquanto expressão da dignidade impõe que lhe seja preservado um núcleo (core) essencial que, a toda evidência, parece englobar as situações existenciais que mais intensamente lhe afetam, dentre as quais se destaca a possibilidade de realizar escolhas que reduzam ao máximo (ou mesmo suprimam em absoluto) a dor e o sofrimento.
Existem situações em que é lícito impor algum nível se sofrimento a uma pessoa em nome de um interesse público (e.g., o cumprimento de pena privativa de liberdade pelo indivíduo condenado pela prática de um crime). Não parece ser, contudo, o caso da terminalidade da vida. Por mais que a vida humana possua um valor intrínseco, e que haja um evidente interesse em preservá-la, o mesmo não vai ao ponto de impor ao sujeito a perpetuação de uma condição que não mais permite a realização de seus projetos existenciais. Inexiste aqui uma justificativa racional que permita a restrição da autonomia pro societate.
Nesta toada, um ordenamento que se propõe garantidor da dignidade humana deve reconhecer e preservar a autonomia do indivíduo nas questões que afetam a sua concepção de vida digna.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa atendeu rigorosamente seus objetivos ora traçados, sendo possível denotar inicialmente a respeito da dignidade humana. Em seguida, discorreu-se sobre a morte através dos tempos, aludindo-se conceitualmente e culturalmente. Após essa análise, debruçou-se inteligentemente sobre a ortotanásia e suas considerações jurídicas. E por fim, sobre a autonomia do paciente escolher pela morte em situação de terminalidade e em estado vegetativo permanente.
Diante disso, conclui-se que, mesmo diante da complexidade do assunto, a dignidade humana deve prevalecer em todas as escolhas humanas. Sabe-se que o direito de morrer com dignidade deve ser observado com atenção. Exemplo disso, em situações em que os pacientes estão dotados de irreversibilidade, cabe ao médico optar pela ortotanásia, no sentido de não utilizar mecanismos e ferramentas tecnológicas que incidam no prolongamento da vida e o consequente aumento do sofrimento.
7. REFERÊNCIAS
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BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008a.
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Artigo publicado em 28/06/2021 e republicado em 29/10/2024
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, QUÉREN HAPUQUE. Direito de morrer com dignidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2024, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/56892/direito-de-morrer-com-dignidade. Acesso em: 04 nov 2024.
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