RESUMO: A estabilidade de um sistema jurídico, nasce aliada a um horizonte de previsibilidade e racionalidade de sua produção legislativa e jurisdicional. No Brasil, esse cálculo de previsão tem sido frustrado, seja pela criação de precedentes judiciais, seja pela produção legislativa que relativizam a coisa julgada e afetam a segurança jurídica. O presente estudo, faz sintética análise de alguns dos elementos mais graves que atentam contra esses institutos, ponderando os riscos e as implicações de um sistema processual irregular.
Palavras-chave: Segurança jurídica. Coisa julgada. Direito Processual Civil.
ABSTRACT: The stability of a legal system is allied to a horizon of predictability and rationality in its legislative and judicial output. In Brazil, this foresight has been frustrated, either by the creation of judicial precedents or by legislation that relativises res judicata and affects legal certainty. This study summarises some of the most serious elements that undermine these institutes, weighing up the risks and implications of an irregular procedural system.
Keywords: Legal Certainty – Res Judicata – Civil Procedure.
1.INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil diz no inciso XXXVI do artigo 5º que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
A disciplina constitucional consagra o princípio da segurança jurídica, definido por Almino do Couto e Silva como[1]:
“'conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida'. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”
Ainda sobre o tema, diz Ingo Wolfgang Sarlet:
“No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição Federal de 1988, após mencionar a segurança jurídica como valor fundamental no seu preambulo, incluiu a segurança no seleto elenco dos direitos “invioláveis” arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade. Muito embora em nenhum momento tenha o nosso Constituinte referido expressamente um direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos da Constituição, a começar pelo principio da legalidade e do correspondente direito de a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), passando pela expressa proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI), bem como pelo principio da legalidade e anterioridade em matéria penal (de acordo com o artigo 5º, inciso XXXIX, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem previa cominação legal) e da irretroatividade da lei penal desfavorável (artigo 5º, inciso XL), ate chegar às demais garantias processuais (penais e civis), como é o caso da individualização e limitação das penas (artigo 5º, incisos XLV a XLVIII), das restrições à extradição (artigo 5º, incisos LI e LII), e das garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla devesa (artigo 5º, incisos LIV e LV), apenas para referir algumas das mais relevantes, limitando-nos aqui aos exemplos extraídos do artigo 5º, que, num sentido amplo, também guardam conexão com a noção de segurança jurídica”
Avaliando o tema, Rennan Thamay e Vanderlei Garcia Junior[2] ensinam que:
“Em verdade, a segurança jurídica acaba por ser mecanismo que, de forma ampla, assume sentido de garantia, proteção e estabilidade de uma situação ou pessoa em vários campos, enquanto, de outro lado, de forma restrita, consiste em garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos garantido às partes dessa obrigação, por ser estável, por mais que haja modificação sob a norma que regeu o negócio”
Interessa, para fins desse estudo, a dimensão de segurança jurídica que envolve o direito processual, em seu sentido de segurança institucional, previsibilidade e certeza, que entendemos materializado dentre outros princípios comezinhos à disciplina do processo, pela coisa julgada.
É certo, porém, que o conceito de coisa julgada foi modificado ao longo dos anos, tendo variado em seu núcleo entre as acepções de imutabilidade e estabilidade. Liebman dizia, há tempos, que as próprias palavras usadas para definir coisa julgada seriam uma forma elíptica afim de designar a autoridade da coisa julgada, sendo disposições como imutabilidade, intangibilidade, incontestabilidade, termos que exprimem todos eles uma propriedade, mas que seriam, por si só, expressões vazias, privadas de conteúdo e de sentido.
No direito brasileiro, o conceito de coisa julgada é legislativo, presente na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/42) no parágrafo terceiro de seu artigo 6º, vejamos:
“Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 3º chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”
Também o Código de Processo Civil:
Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
A verdade, no entanto, é que essas acepções de coisa julgada se tornaram simplistas, reducionistas, ou mesmo inadequadas diante da extensão de modificações legislativas que permitiram a fragilização gradual dos efeitos do instituto no Direito brasileiro, levantando o questionamento: há incorreção no conceito de coisa julgada ou de seus efeitos diante do ordenamento vigente?
O trabalho defende que existem ao menos dois elementos do ordenamento jurídico que contribuem para a fragilização da coisa julgada como instituto, e por consequência, afetam a segurança jurídica.
2. A COISA JULGADA DIANTE DA DECISÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
A Medida Provisória n. 2.180/2001 introduziu parágrafo único no artigo 741 do Código de Processo Civil de 1973, que dizia respeito a um novo fundamento de inexigibilidade do título executivo judicial, consistente na superveniência à sentença de decisão do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário em matéria constitucional, vejamos:
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre:
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)
Poucos anos depois, a Lei n. 11.232/2005 ratificou essa inovação, ampliando a redação do parágrafo único do artigo 741 e introduzindo um novo artigo 475-L, que reiterava a opção legislativa pela inexequibilidade de obrigações quando da hipótese de inconstitucionalidade superveniente.
Essa relativização, muito embora tenha sido o prelúdio de diversos problemas, para fins desse estudo será compreendida precisamente como tal. Interessa-nos a visão do que dispõe os parágrafos 12, 13, 14 e 15 do Código de Processo Civil de 2015, vejamos:
Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.
§ 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.
§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.
§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Se a redação do Código de 1973 já colocava a estabilidade do sistema jurídico em ameaça, a opção do legislador nos parágrafos 12 a 15 no CPC/15 insere verdadeiro catalizador para um tumulto em nosso sistema processual, alguns são os motivos: (i) primeiro, porque permite que em determinados momentos a decisão de inconstitucionalidade retroaja, e em outros, que seus efeitos sejam ex nunc, (ii) estabelece mais uma causa para a hipótese excepcional da ação rescisória e por fim (iii) favorece os grandes litigantes e premia a procrastinação no cumprimento das decisões judiciais.
Acerca dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade no tempo, o Supremo Tribunal Feral já se manifestou, no julgamento dos Embargos de Declaração na ADI 2996/SC[3], que “não está o Tribunal compelido a manifestar-se em cada caso: se silenciou a respeito, entende-se que a declaração de inconstitucionalidade, como é regra geral, gera efeitos ex tunc, desde a vigência da lei inválida.”
Aqui, muito embora se reconheça o efeito ex tunc da decisão que reconhece a inconstitucionalidade de norma, a natureza de decisão que o faz é meramente o que indica: declaratória. Outorgá-la natureza desconstitutiva é, sem dúvida alguma, nulificar por via oblíqua, decisões tomadas de maneira legítima. Essa, porém, não é a opção adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
No final dos anos 2000, o Conselho Federal da OAB ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade com o objetivo de questionar a compatibilidade das alterações promovidas pela MP 2.027-43, com os artigos 1º, 5º, caput e incisos XXII, XXIV e LIV, e 62, da Constituição Federal de 1988, que versam sobre o direito de propriedade, devido processo legal e justa indenização nas ações de desapropriação.
Em 05 de dezembro de 2001, o plenário do c. Supremo Tribunal Federal deferiu, por maioria, o pedido liminar pleiteado pelo CFOAB, para, com eficácia ex nunc, suspender, no caput do artigo 15-A do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, a expressão "de até seis por cento ao ano", bem como o §1º do referido dispositivo.
O mérito da ação só seria conhecido 16 anos depois, e em virada de posicionamento, a corte declarou a constitucionalidade dos dispositivos invocados. A situação, por certo, gerou cenário prático caótico, uma vez que a declaração de constitucionalidade do artigo 15-A do Decreto-Lei nº 3.365/1941 implicaria em reconhecer que, desde sua edição, deveria ser aplicado.
Entretanto, essa retroatividade afetaria milhares de decisões proferidas nos 16 anos de suspensão cautelar da medida, motivo pelo qual a OAB opôs embargos de declaração onde pugnou pela modulação temporal dos efeitos dessa declaração de constitucionalidade, pleito rejeitado pelo STF, de acordo com a ementa abaixo transcrita:
“A modulação de efeitos em declaração de constitucionalidade é medida excepcional e restrita a hipóteses específicas, o que não ocorre no presente caso. Ademais, a atribuição de efeitos ex tunc possui três finalidades: (i) reparar injustiças históricas; (ii) evitar enriquecimento sem causa dos expropriados; e (iii) aliviar o ônus imposto aos entes expropriantes.
(STF - ADI: 2332 DF, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 17/05/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 16/04/2019)”
No mesmo sentido, também decidiu a corte:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Julgamento. Sentença de mérito. Oponibilidade erga omnes e força vinculante. Efeito ex tunc. Ofensa à sua autoridade. Caracterização. Acórdão em sentido contrário, em ação rescisória. Prolação durante a vigência e nos termos de liminar expedida na ação direta de inconstitucionalidade. Irrelevância. Eficácia retroativa da decisão de mérito da ADI. Aplicação do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. Liminar concedida em reclamação, para suspender os efeitos do acórdão impugnado. Agravo improvido. Voto vencido. Reputa-se ofensivo à autoridade de sentença de mérito proferida em ação direta de inconstitucionalidade, com efeito ex tunc, o acórdão que, julgando improcedente ação rescisória, adotou entendimento contrário, ainda que na vigência e nos termos de liminar concedida na mesma ação direta de inconstitucionalidade. (STF - Rcl-AgR: 2600 SE, Relator: CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 14/09/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00031 EMENT VOL-02283-02 PP-00349)
A tese parece, permissa vênia, problemática, e capaz de esvaziar o próprio conceito de coisa julgada. Ainda que sob a vigência de norma inconstitucional ou posteriormente constitucional, fato é que a prestação jurisdicional - tomada sob a égide de produção legislativa entendida a posteriori como incompatível com o ordenamento pelo Supremo Tribunal Federal – é aperfeiçoada por meio da legitimidade do processo que conduziu à determinada conclusão.
Nesse sentido, filiamo-nos a tese defendida por Leonardo Grecco:
“Não há, portanto, no caso da sentença exequenda transitada em julgado, uma coisa julgada anterior que caracterize um vício da decisão capaz de retirar-lhe eficácia, ou uma coisa julgada posterior, apta a desfazer a anterior, formada em processo quanto a um bem da vida específico, mas sim dois atos de vontade do Estado com as suas respectivas eficácias delimitadas pelos respectivos objetos litigiosos”
Permanece ainda pertinente, raciocínio apresentado por Luiz Guilherme Marinoni[4], quase 20 anos atrás, também citado por Leonardo Grecco:
“eliminar a coisa julgada diante de uma nova interpretação constitucional não só retira o mínimo que o cidadão pode esperar do Poder Judiciário – que é a estabilização da sua vida após o encerramento do processo que definiu o litígio – como também parece ser uma tese fundada na ideia de impor um controle sobre as situações pretéritas”
Eros Grau citando Webber, diz que o mercado exige calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem jurídica como elemento fundamental do capitalismo industrial. A verdade, também segundo Grau, é que a existência de previsões seguras é poder contar com estabilidade, segurança e confiabilidade da ordem jurídica.
Os vais e vens vacilantes da jurisprudência do Supremo Tribunal, sejam em controle concentrado, seja em controle difuso, seja em hipótese remota de Tribunal Recursal, têm esvaziado paulatinamente a certeza do direito, e dizem respeito a consequências econômicas gravosas ao país, tema esse merecedor de outro estudo.
3. A AÇÃO RESCISÓRIA E SUAS IMPROPRIEDADES
Tendo compreendido a racionalidade que envolve a coisa julgada como instituto, outra hipótese gravosa de sua relativização, é a ação rescisória da forma como pensada pelo legislador processualista brasileiro.
Humberto Theodoro Júnior[5] traz conceito de ação rescisória:
“A ação rescisória é tecnicamente ação, portanto. Visa a rescindir, a romper, a cindir a sentença como ato jurídico viciado. Conceituam-na Bueno Vidigal e Amaral Santos como “a ação pela qual se pede a declaração de nulidade da sentença”.Assim, hoje, não se pode mais pôr em dúvida que a rescisória “é ação tendente à sentença constitutiva” (muito embora o direito atual a afaste do campo das nulidades propriamente ditas)”
Pontes de Miranda, por sua vez, em seu tratado das ações[6], diz que:
“na ação rescisória há julgamento de julgamento. É, pois, processo sobre outro processo. Nela, e por ela, não se examina o direito de alguém, mas a sentença passada em julgado, a prestação jurisdicional, não apenas apresentada (seria recurso), mas já entregue. É remédio jurídico processual autônomo. O seu objeto é a própria sentença rescindenda – porque ataca a coisa julgada formal de tal sentença – a setentia lata et data. Retenha-se o enunciado: ataque à coisa julgada”
Suas hipóteses de cabimento, são dispostas no Art. 966 e seus parágrafos do Código de Processo Civil. Acerca delas, adverte o Ministro Luiz Fux[7]:
As causas de rescindibilidade vêm previstas nos incisos do art. 966 do CPC em numerus clausus, impedindo, assim, interpretação que dilargue os seus casos de cabimento.
As violações perpetradas na decisão transita e que autorizam a propositura da ação rescisória ora são de índole formal ora de índole material. De toda sorte, no âmbito dos vícios de rescindibilidade, “não se contempla o da injustiça da decisão” que se purga com o simples trânsito em julgado da sentença.
Deveras, como a causa petendi não é integrada pela norma jurídica aplicável nem pela qualificação jurídica do fato, conforme já assentado, pouco importa que a parte autora reproponha uma ação rescisória com base no mesmo fato rescindendo, atribuindo-lhe categorização jurídica diversa, porquanto na hipótese, haverá repetição obstativa da análise do pedido rescisório.
Destarte, o princípio de que cumpre ao juiz aplicar o direito e à parte comprovar o alegado (jura novit curia e da mihi factum, dabo tibi jus) são aplicáveis às ações rescisórias. Consequentemente, cabe ao autor indicar os fatos que autorizam a rescindibilidade, incumbindo ao juiz conferir-lhes o adequado enquadramento legal. Assim, v.g., se o autor indica uma causa e sugere dispositivo equivocado, nada obsta que o julgador, atribuindo correta qualificação jurídica às razões expostas na inicial, acolha o pedido. O que não se admite é a procedência do pedido por fatos diversos dos sustentados encerrando essa hipótese julgamento extra petita. Deveras, esse raciocínio não autoriza, v.g., o tribunal a ignorar a lei apontada como violada, no caso da propositura da ação com base no inciso V (violação de norma jurídica). É que, nessa hipótese, a norma indicada como violada integra a causa de pedir e limita a cognição do juízo por força da regra da congruência.
A hipótese de impugnação de decisão judicial transitada em julgado, não é privilégio do ordenamento jurídico brasileiro. Encontramos correspondência semelhante em pelo menos outros 5 sistemas processuais que compartilham a influência romano-germânica: a revocazione italiana, a requête civile e o recurso de cassação no direito processual francês, a wiederaufnahme des verfahrens no complexo sistema processual alemão, e o recurso de revisão em Colombia e Uruguai.
Em que pese tais sistemas admitirem essa relativização do instituto da coisa julgada, nos parece que as hipóteses defendidas pelo legislador processual brasileiro são mais amplas, contribuindo para a fragilização da res judicata, e ao mesmo tempo, criando hierarquia entre espécies de decisão judicial em nosso ordenamento.
Se nos parecem naturais as possibilidades dos incisos I, II e III do artigo 966 do Código de Processo Civil[8] por estabelecerem um elemento de validade da decisão judicial como um todo, as hipóteses dos incisos V, VI, VII e VIII abrem risco ao casuísmo, arbítrio e discricionariedade do órgão julgador, aí sim, acrescentando elevado grau de incerteza no trato das relações judiciais.
Isso porque, não é crível aceitar que decisões judiciais que – em regra – tenham sido submetidas ao duplo grau de jurisdição, e seus recursos aviados dentro do manto da devolutividade, continuem a padecer de vícios completamente sanáveis de acordo com a sistemática recursal vigente. Se eventualmente não sujeitos à recurso, a ação rescisória não pode ser albergue para ineficácia processual de uma das partes.
Por outro lado, assumir hipótese em meio excepcional de impugnação judicial, que todo o sistema de jurisdicional tenha falhado, é sem dúvida nenhuma, desprestigiar o próprio ordenamento e a missão constitucional de prestação judiciária.
Quando se fala em ação rescisória de causas levadas aos juizados especiais cíveis – conforme veremos a seguir – o Supremo Tribunal Federal entendeu em diversas oportunidades que o seu não cabimento decorria em razão de o controle excepcional das decisões oriundas do sistema ser feito pelo próprio STF, em sede de recurso extraordinário.
Ora, sabe-se que as hipóteses que autorizam a interposição de Recurso Extraordinário são restritivas, mas a tese aqui nos parece a mesma: se as decisões judiciais que comportam ação rescisória são sujeitas ao sistema recursal, porque então permitir a fragilização da res judicata, se não nos casos previstos nos incisos I, II e III do artigo 966? Aqui, parece-nos que o casuísmo é a justificativa.
Acerca da ação rescisória nos juizados especiais, outra hipótese não expressamente prevista no Art. 966 do Código de Processo Civil, mas sim, no Art. 59 da Lei 9.099/95, diz respeito ao seu não cabimento no âmbito das decisões tomadas nesse sistema.
Ainda que possamos admitir como pertinentes somente as possibilidades dos incisos I, II e III do artigo 966 do Código de Processo Civil, já citadas acima, ao vedar a rescindibilidade de decisões oriundas dos juizados especiais, o legislador acabou por criar uma hierarquia entre sistemas processuais, que em nossa visão, merece inclusive discussão acerca de constitucionalidade.
Essa vedação, acaba por se relevar extremamente prejudicial pois (i) permite que decisão tomada por juiz incompetente, impedido ou que tenha de qualquer forma prevaricado, se estabilize no ordenamento jurídico e produza efeitos, a despeito de seus vícios, e (ii) desconsidera a estrutura dos juizados especiais cíveis que em razão da hiperlitigiosidade e de seu congestionamento, erra muito.
A preocupação – com todo o judiciário – é exposta por Leonardo Greco, em obra citada anteriormente:
“De outro lado, a fragilidade da coisa julgada parece inevitável para corrigir erros de uma Justiça sem credibilidade, afogada no excesso de causas, que justifica a perda da qualidade e da confiabilidade das suas decisões e propicia que se consolidem julgamentos iníquos”
O efeito dessa peculiaridade, por certo, descredibiliza o microssistema, que já sofre há anos com as mazelas oriundas da hiperjudicialização, e de sua opção por criar regras processuais particulares e que conflitam com o ordenamento processual. Com efeito, se vamos admitir hipótese ampla de cabimento de ação rescisória, os juizados especiais não podem ser esquecidos.
Outra impropriedade digna de nota, é a disposição do Art. 969[9] do Código de Processo Civil, e o risco oriundo de tutela provisória em ação rescisória que suspenda a executoriedade da decisão transitada em julgado, ainda que doutrina a reconheça como hipótese excepcional.
Aqui, pedimos vênia para discordar de Donizetti[10] em seu Código de Processo Civil Comentado, quando afirma que a opção do legislador pela redação do dispositivo fala do prestígio à coisa julgada. É justamente o contrário.
As tutelas provisórias tem como traço definidor justamente sua precariedade. É isso que leciona Eduardo Arruda Alvim[11]:
“Importa destacar que a sumariedade da cognição, que caracteriza os provimentos provisórios em análise, não significa que o juiz deva ter conhe- cimento de parte dos atos, mas sim que deva ter conhecimento superficial deles, que será aprofundado no curso do processo, antes da prolação da decisão final”
Não há, ou é diminuto o prestígio à coisa julgada, se a legislação permite ao juiz com grau de cognição menor, eliminar as camadas protetoras da decisão judicial e obste sua eficácia. Para que se entenda a gravidade do efeito dessa medida cautelar, relembramos a lição de Teresa Arruda Alvim[12] quando afirma que a natureza desconstitutiva da ação rescisória se opera primeiramente em barreira que se forma ao redor das sentenças de mérito, que é a coisa julgada ou a eficácia em seu efeito, para posteriormente desfazer a sentença rescindenda. Depois de descoberta a coisa julgada material, isto é, retirado o "manto protetor", transposta a "barreira", passa-se a desfazer mérito, que na sentença rescindenda constituía a lide, pretensão do autor no pedido, resistido pelo réu na contestação.
É sem dúvida nenhuma, gravoso admitir, que mesmo em hipótese excepcional – se de fato o é – juízo monocrático possa, em cognição precária, suspender não só os efeitos da coisa julgada, mas a consequência lógica do exercício da jurisdição: a expressão legal da vontade do Estado para pacificação social.
Com essa possibilidade, surgem diversos riscos, inclusive aqueles aptos a obstar a efetividade do provimento jurisdicional, ainda que improcedente a posteriori a ação rescisória.
É certo que a ideia de pacificação social através de veredito imposto, talvez seja utópica, e que o próprio conceito de justiça comporta múltiplas interpretações. A única maneira, adequada de solução definitiva dos conflitos oriundos dos nossos complexos de relações jurídicas, é o amparo do direito, na legalidade, e no devido processo legal.
Ainda que se assuma que elementos como os questionados acima são fruto da inquietude de um Direito em crise, esta jamais pode ser endógena, jamais interpretativa, e sempre ligada ao fato social. Nesse vácuo, nasce a insegurança.
4. DA CONCLUSÃO – O FUTURO DA COISA JULGADA NO BRASIL
A problematização dos temas acima é ponto central para definir a maturação do sistema judicial brasileiro.
Temos sofrido dia a dia os efeitos da incerteza oriunda de nossa produção legislativa: seja no campo econômico, seja no campo social com a descredibilizarão de nossas instituições.
Podemos atribuir tais elementos – como o fiz em outras oportunidades – a jovialidade do sistema judicial brasileiro. O sistema normativo oriundo de uma Constituição recente e que por si só gera debates, naturalmente passará por fase de adaptação, onde não estará imune a críticas, mas ainda que assim o seja, não podemos admitir, partindo de um ponto de vista de racionalidade, a fragilização ou reforço de determinado instituto com base em necessidades individuais.
O desenho de uma instituição é o espelho de nosso desejo para sua missão. Assim como compreendemos a forma de nossa Constituição como garantidora, racional e humanista, precisamos estabelecer um desenho de nossa atuação processual com os elementos que dele desejamos: segurança, racionalidade e previsibilidade.
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[1] SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Brasileiro de Direito Público - RBDP, v. 2, n. 6, p. 7-59, jul./set. 2004.
[2] Thamay, Rennan Faria Kruger, Garcia Junior, Vanderlei. Decisão Judicial. São Paulo, Almedina, 2019.
[3] STF - ADI: 2996 SC, Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 14/12/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 16/03/2007
[4] MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da coisa julgada material). Revista Jurídica, São Paulo, n. 317, mar. 2004, p. 23
[5] JÚNIOR, Humberto T. Curso de Direito Processual Civil. v.3. Grupo GEN, 2023.
[6] MIRANDA, Pontes de. Tratado das ações, tomo IV. Ações constitutivas. São Paulo: RT, 1973, pág. 499.
[7] Fux, L. (2023). Curso de Direito Processual Civil. 6th edição. Grupo GEN, 2023.
[8] Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
[9] Art. 969. A propositura da ação rescisória não impede o cumprimento da decisão rescindenda, ressalvada a concessão de tutela provisória.
[10] DONIZETTI, Elpídio. Novo Código de Processo Civil Comentado, 3ª edição. Grupo GEN, 2018.
[11] ALVIM, Eduardo Arruda. Tutela provisória, 1ª edição. Editora Saraiva, 2017.
[12] ARRUDA ALVIM, Teresa Celina in Ação Rescisória. Revista de Processo n. 40, out - dez de 1985. p. 136
Advogado, especialista em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Professor do curso de Direito da Faculdade Santa Teresa (FST-AM), Mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP), membro da comissão de direito eleitoral da seccional do Amazonas da Ordem dos Advogados do Brasil para o triênio 2021-2024, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, SERGIO ROBERTO BULCAO BRINGEL. Breves anotações acerca da fragilidade da coisa julgada no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 maio 2025, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/68469/breves-anotaes-acerca-da-fragilidade-da-coisa-julgada-no-brasil. Acesso em: 01 maio 2025.
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