ANDERSON JÚNIO SANTOS DE LIMA[1]
(coautor)
RESUMO: Este artigo analisa a possibilidade jurídica de promoção em ressarcimento de preterição no Exército Brasileiro em casos de militares condenados criminalmente. Defende-se que, em determinadas situações, a aplicação estrita das normas que impedem a promoção de militares durante o trâmite de processos criminais e após condenação pode gerar injustiças, ferindo princípios constitucionais como o da proporcionalidade e da eficiência administrativa. Argumenta-se que o direito à promoção em ressarcimento de preterição, fundamentado em uma “solução favorável a recurso interposto”, a depender do caso, deve ser interpretado de forma a garantir que o militar não seja penalizado de forma desproporcional pelo tempo de tramitação do processo judicial, mas apenas pelo período da pena imposta.
Palavras-chave: militar, exército, promoção em ressarcimento de preterição, desconto de tempo de serviço, condenação, tempo do processo.
ABSTRACT: This article examines the legal possibility of promotion through compensation for preterition in the Brazilian Army in cases involving military personnel convicted of criminal offenses. It argues that, in certain situations, the strict application of regulations that prevent promotions during the processing of criminal cases and after conviction can lead to injustices, violating constitutional principles such as proportionality and administrative efficiency. The article contends that the right to promotion for compensation of preterition, based on a “favorable solution to an appealed case”, should be interpreted in a way that ensures the military personnel are not disproportionately penalized for the time spent in the judicial process, but only for the duration of the sentence imposed.
Keywords: military, army, promotion for compensation of preterition, service time deduction, conviction, duration of the process.
SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Contexto normativo e a promoção em ressarcimento de preterição – 3 Análise crítica e a necessidade de um novo entendimento – 4 Proposta de interpretação conforme a Constituição – 5 Considerações finais
1 INTRODUÇÃO
A questão da promoção de militares condenados criminalmente é um tema complexo que envolve a ponderação de princípios como a hierarquia, a disciplina, a moralidade administrativa e os direitos fundamentais. A legislação militar, em geral, estabelece restrições à progressão na carreira de militares que respondem a processos criminais ou que foram condenados, visando a preservar a credibilidade das Forças Armadas e a garantir que apenas militares com conduta ilibada alcancem postos de comando e chefia.
No entanto, a aplicação rígida dessas normas pode gerar situações deflagrantes injustiças, especialmente quando o processo judicial se estende por longos períodos ou quando a pena imposta é de baixa gravidade. Nesses casos, o militar pode ser impedido de concorrer a promoções por um tempo significativamente maior do que o período da pena, sofrendo um prejuízo desproporcional em sua carreira.
A Constituição Federal de 1988 consagra um arcabouço principiológico robusto que irradia efeitos sobre todo o ordenamento jurídico pátrio. Dentre esses princípios, destaca-se o da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), que impõe à administração da justiça o dever de prestar tutela jurisdicional de forma célere e eficaz. No entanto, a realidade processual brasileira, especialmente na seara penal, revela situações em que a morosidade judicial extrapola limites aceitáveis, causando prejuízos que transcendem o âmbito jurídico e adentram o campo da dignidade pessoal e profissional dos indivíduos, como ocorre com militares impedidos de ascender hierarquicamente devido à pendência de processos que se arrastam por décadas.
Diante desse cenário, surge a necessidade de analisar a possibilidade de interpretação das normas que regem a promoção em ressarcimento de preterição de forma a mitigar essas injustiças, garantindo que o militar seja penalizado de forma proporcional à sua conduta, sem que o tempo de tramitação do processo judicial seja um fator determinante para o prejuízo profissional.
Expandindo este argumento, é crucial reconhecer que a carreira militar é estruturada em progressões hierárquicas que impactam diretamente a remuneração, responsabilidades e o reconhecimento profissional do indivíduo. A estagnação na carreira, resultante de um processo judicial prolongado, não apenas afeta o moral do militar, mas também pode comprometer sua capacidade de sustento e planejamento familiar.
A complexidade do sistema jurídico brasileiro, caracterizado por múltiplos recursos e instâncias, frequentemente leva a atrasos significativos na resolução de processos. Imputar ao militar as consequências negativas dessa morosidade estatal representa uma falha na distribuição da justiça, onerando desproporcionalmente o indivíduo em detrimento da responsabilidade do Estado.
É imperativo, portanto, que a interpretação das normas de promoção militar considere a realidade do sistema judicial brasileiro e busque um equilíbrio entre a necessidade de preservar a disciplina e a hierarquia e o imperativo de garantir a justiça e a proporcionalidade. A análise criteriosa de cada caso, com base em critérios objetivos e transparentes, é fundamental para evitar decisões arbitrárias e injustas.
Por fim, a promoção em ressarcimento de preterição não deve ser vista como uma forma de impunidade, mas sim como um mecanismo de reparação de uma injustiça, garantindo que o militar seja tratado de forma equitativa e proporcional à sua conduta, sem que o tempo de tramitação do processo judicial seja um fator determinante para o prejuízo profissional.
2 CONTEXTO NORMATIVO E A PROMOÇÃO EM RESSARCIMENTO DE PRETERIÇÃO
A legislação militar (Estatuto dos Militares, regulamentos internos das Forças Armadas e leis de promoção) estabelece que o militar respondendo a processo criminal fica impedido de concorrer às promoções até o trânsito em julgado da decisão. Caso condenado, o militar só volta a concorrer após o cumprimento integral da pena. Em regra, o ressarcimento de preterição está previsto, dentre outros, para casos de solução favorável de recurso interposto e absolvição ou impronuncia no processo que o militar estiver respondendo.
O ressarcimento de preterição é uma medida corretiva destinada a reparar situações em que o militar foi indevidamente preterido em sua carreira. Trata-se de um instituto que visa restabelecer o direito do militar ao reconhecimento de sua evolução funcional, garantindo-lhe não apenas a promoção retroativa, mas também os efeitos financeiros e funcionais correspondentes.
Tradicionalmente, esse mecanismo é aplicado quando há comprovação de irregularidades administrativas, como erros materiais, violação de critérios objetivos de avaliação ou descumprimento de normas regulamentares, casos de solução favorável de recurso interposto e absolvição ou impronuncia no processo que o militar estiver respondendo.
Contudo, discute-se juridicamente a possibilidade de atribuir uma nova interpretação desse instituto, em especial naquilo que dispõe como solução favorável de recurso interposto, para abarcar situações de prejuízo decorrente da morosidade judicial, especialmente quando esta não pode ser atribuída ao próprio militar.
Na legislação pertinente, a Lei nº 5.821/72 (LPOAFA), em seu art. 4º, estabelece os critérios de promoção, incluindo a antiguidade, o merecimento, a escolha, a bravura e o “post mortem”. O parágrafo único do mesmo artigo prevê a promoção em ressarcimento de preterição em casos extraordinários. O art. 10 detalha que essa promoção ocorre quando é reconhecido ao oficial o direito à promoção que lhe caberia. O art. 18 estabelece que o oficial será ressarcido da preterição desde que seja reconhecido o seu direito à promoção, quando: “a) tiver solução favorável a recurso interposto”.
O Decreto nº 90.116/84 (RIPQAO), que regulamenta o ingresso e a promoção no Quadro Auxiliar de Oficiais (QAO), também prevê a promoção em ressarcimento de preterição em casos especiais. O art. 19 estabelece que o oficial ou subtenente será ressarcido da preterição desde que seja reconhecido o seu direito à promoção, quando: “a) tiver solução favorável a recurso interposto”.
O Decreto nº 4.853/03 (Regulamento de Promoções de Graduados do Exército) também prevê a promoção em ressarcimento de preterição, existindo justa causa, e independente de vagas. O art. 37 estabelece que o graduado é ressarcido da preterição, desde que comprovado o seu direito à promoção, quando: “I - tiver solução favorável a recurso interposto”.
Em todos os casos, tanto para oficiais, quanto para o QAO, quanto para praças, há previsão de promoção em ressarcimento de preterição quando há solução favorável a recurso interposto.
A análise do arcabouço normativo demonstra que a promoção é estruturada em critérios objetivos (antiguidade e merecimento) e subjetivos (escolha). A promoção por bravura e “post mortem” representam exceções que visam reconhecer atos de heroísmo ou o sacrifício em prol da pátria. Conforme dito alhures, a promoção em ressarcimento de preterição surge como um mecanismo de correção de injustiças, garantindo que o militar não seja prejudicado por erros ou omissões da Administração.
Nesse sentido, é fundamental destacar que a Lei nº 5.821/72 e os decretos que a regulamentam não definem o que se entende por “solução favorável a recurso interposto”. Essa lacuna permite diferentes interpretações, abrindo espaço para a análise da possibilidade de incluir, nessa definição, casos em que o militar, embora condenado criminalmente, tenha sofrido um impacto negativo pela morosidade do processo judicial decorrente de atos não imputáveis a ele.
A legislação específica do QAO (Decreto nº 90.116/84) detalha os requisitos para ingresso e promoção nesse quadro, incluindo a necessidade de possuir mérito suficiente e conclusão com aproveitamento do Curso de Habilitação ao QAO.
A regulamentação das promoções de graduados (Decreto nº 4.853/03) estabelece que a promoção em ressarcimento de preterição ocorre independentemente do número de vagas fixado para as promoções. Essa previsão reforça o caráter excepcional e reparador dessa modalidade de promoção, que visa corrigir uma injustiça e garantir que o graduado não seja prejudicado em sua carreira.
A Portaria nº 1.496/14, do Comandante do Exército, que aprova as Instruções Gerais para Ingresso e Promoções no QAO, complementa o RIPQAO e detalha os documentos básicos necessários para a seleção dos militares a serem apreciados para ingresso nos Quadros de Acesso. A Ficha de Valorização do Mérito (FVM) e o Registro de Informações Pessoais (RIP) são instrumentos importantes para avaliar a conduta e o desempenho do militar, e podem influenciar a decisão sobre a promoção em ressarcimento de preterição.
3 ANÁLISE CRÍTICA E A NECESSIDADE DE UM NOVO ENTENDIMENTO
A interpretação restritiva das normas que regem a promoção em ressarcimento de preterição, que a condiciona exclusivamente aos casos de absolvição, não se coaduna com os princípios constitucionais da razoável duração do processo, proporcionalidade, da eficiência e da dignidade da pessoa humana.
O princípio da razoável duração do processo visa assegurar que o tempo da tramitação processual seja compatível com a efetividade da tutela jurisdicional. Ocorre que, no contexto militar, a demora processual penal pode ter efeitos colaterais gravíssimos, impactando diretamente o direito à promoção, que é regido por critérios objetivos e subjetivos, inclusive a inexistência de pendências judiciais relevantes.
O princípio da proporcionalidade exige que as restrições impostas aos direitos dos militares sejam adequadas, necessárias e proporcionais à finalidade almejada. A desproporcionalidade se manifesta quando o militar é impedido de concorrer a promoções por um período excessivamente longo em relação à gravidade da infração cometida e à pena imposta.
Igualmente, a desproporcionalidade emerge quando se verifica que o militar, após mais de uma década respondendo a um processo, sofre consequências que extrapolam a própria sanção penal. O princípio da proporcionalidade, nesse cenário, atua como vetor interpretativo para evitar que a sanção extrajurídica, derivada da morosidade estatal, seja mais gravosa do que a própria pena imposta.
O princípio da eficiência, por sua vez, impõe à Administração Pública o dever de buscar o melhor resultado possível na gestão dos recursos humanos. Manter um militar qualificado estagnado na carreira por um longo período, em razão de um processo judicial moroso, representa um desperdício de potencial e prejudica a própria instituição militar.
O princípio da dignidade da pessoa humana, também aplicável aos militares, exige que o tratamento dispensado aos mesmos seja compatível com o respeito à sua condição de ser humano e profissional. A impossibilidade de concorrer a promoções por um período excessivamente longo pode gerar frustração, desmotivação e comprometer o desempenho do militar.
A aplicação automática e inflexível das normas que impedem a promoção de militares condenados criminalmente ignora a complexidade das situações individuais e a possibilidade de reerguimento da carreira dos militares. Um militar que cometeu um erro no passado, mas demonstrou arrependimento, ressocialização e comprometimento com a Força Terrestre, merece ter a oportunidade de seguir em frente e contribuir para o Exército Brasileiro.
Um exemplo que ilustra a situação descrita pode ser encontrado na seguinte hipótese: imaginemos dois militares pertencentes à mesma Organização Militar, que praticam infrações de natureza diversa, sendo que um deles comete um crime mais grave, enquanto o outro comete um crime de menor gravidade.
O primeiro militar é acusado de envolvimento em um crime de natureza militar mais grave, como um crime de corrupção ativa envolvendo altos valores ou até mesmo o desvio de recursos públicos relacionados a operações militares, o que caracteriza uma infração de grande magnitude. A denúncia contra esse militar é tratada com mais celeridade devido à gravidade da infração. O processo é instruído rapidamente, considerando a urgência de se responsabilizar os indivíduos envolvidos em crimes dessa natureza. Ao final do processo, esse militar é condenado a uma pena de 10 anos de reclusão, em razão da gravidade do delito praticado.
Por outro lado, o segundo militar está sendo processado pelo crime de “perturbação de processo licitatório”, do art. 337-I da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, que tem como preceito secundário a pena mínima de detenção de 6 meses. Nesse processo há inúmeros réus e em um contexto em que a apuração demanda uma série de diligências e a análise de extensa documentação. Embora a conduta específica desse militar, no caso concreto, seja de menor gravidade comparado ao primeiro, o processo desse militar se arrasta por um longo período devido à complexidade do caso e ao grande número de réus envolvidos. O trâmite processual é moroso, com diversas etapas de apuração, audiências e recursos, o que acaba prolongando substancialmente o tempo até o julgamento final. Ao término de um processo que dura cerca de 10 anos, o segundo militar é condenado a uma pena muito inferior, de 6 meses de detenção, por sua participação no crime, dada a menor gravidade de sua conduta.
Contudo, o impacto para o militar condenado à pena de detenção é significativamente maior do que o do militar condenado a uma pena de reclusão mais severa. A longo prazo, o militar que foi condenado a 6 meses de detenção sofrerá um prejuízo considerável, pois o processo demorou uma década para transitar em julgado, impactando sua vida profissional e pessoal. A incerteza, o desgaste emocional e as consequências para sua reputação e carreira ao longo desse período serão muito mais profundos, apesar da pena mais branda imposta ao final do processo. Por outro lado, o militar condenado a 10 anos de reclusão enfrentará o impacto direto da pena, mas o processo, por sua natureza, tende a ser mais célere, o que reduz o tempo de sofrimento judicial, ainda que a pena seja substancialmente mais alta.
Esse exemplo ilustra como o tempo de tramitação do processo pode ter um impacto desproporcional sobre a vida do réu, independentemente da gravidade do crime cometido, evidenciando que, em algumas situações, o dano processual pode ser mais danoso do que a própria pena imposta, especialmente quando o processo se arrasta por um longo período, prejudicando a vida do acusado de maneira significativa.
O impacto dessa situação é duplo: o prejuízo funcional causado pela impossibilidade de ascensão e o estigma social e institucional decorrente da prolongada indefinição de sua situação jurídica. Tal panorama evidencia a necessidade de se reinterpretar a legislação infraconstitucional à luz dos princípios constitucionais, especialmente considerando que a lentidão processual não pode ser imputada ao militar, mas sim ao Estado.
Uma eventual alteração nas definições dos critérios para a análise dos casos de promoção em ressarcimento de preterição resultaria em um aumento da segurança jurídica. É fundamental que a Administração Militar estabeleça parâmetros justos e equitativos para a avaliação de cada caso, garantindo a isonomia e a imparcialidade no tratamento dos militares.
A promoção em ressarcimento de preterição deve ser vista como um instrumento de justiça e de valorização do mérito. Ao reconhecer o direito à promoção de um militar que superou seus erros e demonstrou comprometimento com a instituição, o Exército Brasileiro fortalece seus valores e incentiva a superação e a excelência.
A aplicação dos princípios constitucionais da razoável duração do processo e da proporcionalidade poderia fundamentar a tese de que a preterição, ainda que indireta, causada pela morosidade do Judiciário, merece tratamento especial na apreciação do recurso formulado pelo militar, de modo que a autoridade competente, possa avalizar o caso em concreto e atribuir entendimento em conformidade constitucional, enquadrando a promoção requerida ao permissivo legal da solução favorável.
Tal interpretação busca mitigar a injustiça material sofrida pelo militar, reconhecendo-lhe o direito à promoção retroativa, com os respectivos efeitos financeiros e funcionais, em consonância com os princípios da proporcionalidade, da eficiência, da dignidade da pessoa humana e da possibilidade de reconstrução da carreira.
Uma abordagem mais flexível pode até mesmo fortalecer a imagem da instituição e garantir que os militares sejam tratados de forma justa e equitativa.
4 PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
Diante do desafio constante de harmonizar as normas disciplinares militares com os princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito, é fundamental propor uma interpretação da legislação sobre promoções que salvaguarde os direitos dos militares sem comprometer a hierarquia e a disciplina, pilares essenciais para a operacionalidade e eficácia das Forças Armadas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm, em diversas ocasiões, afirmado a prevalência dos princípios constitucionais na interpretação de normas infraconstitucionais. Consoante preleciona Celso Antônio Bandeira de Mello, apenas são compatíveis com a Constituição Federal os tratamentos normativos diferenciados que estabeleçam finalidade razoável e proporcional ao fim visado (Mello, C. A. B. de. Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e permitidas. Revista Trimestral de Direito Público, n.º 1, p. 79).
De acordo com o voto do ilustríssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin, na ocasião do julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade 7.487/MT, a Constituição Federal é dotada de força normativa, impondo que o direito seja analisado na perspectiva dos direitos fundamentais, com a valorização e o respeito à dignidade da pessoa humana. A hermenêutica jurídica impõe que a interpretação e a aplicação das leis, portanto, obedeçam às normas constitucionais e aos princípios jurídicos”, e nesse sentido, conforme assegurado acima, deve-se observar tais parâmetros nas ocasiões em que a morosidade judicial afeta de maneira voraz e desproporcional a carreira funcional do militar.
A aplicação da técnica da ponderação, conforme desenvolvida por Robert Alexy, permite sopesar valores em conflito, buscando uma solução que minimize restrições desnecessárias a direitos fundamentais. O referido autor assegura que, diferentemente das regras onde há a subsunção, no caso dos princípios o que temos é a ponderação, pois além de encontrarem os fatos, eles colidem com outros princípios e precisam ser ponderados de acordo com o caso concreto para que se tenha uma solução da colisão.
No caso do militar prejudicado pela demora processual, a ponderação entre o interesse público na moralidade administrativa e o direito individual à razoável duração do processo e à proporcionalidade das sanções poderia autorizar a revisão dos efeitos funcionais da condenação. Isso poderia significar, por exemplo, o reconhecimento do direito à promoção retroativa, com efeitos financeiros e funcionais, mitigando o prejuízo causado pela mora estatal.
A chave para essa conciliação reside na promoção em ressarcimento de preterição, um mecanismo já previsto nas leis e regulamentos militares, mas que carece de uma interpretação mais abrangente e alinhada com os valores constitucionais.
A Lei nº 5.821/72 (LPOAFA), que estabelece os critérios para as promoções dos oficiais das Forças Armadas, o Decreto nº 90.116/84 (RIPQAO), que regulamenta o ingresso e a promoção no Quadro Auxiliar de Oficiais e o Decreto nº 4.853/03 (R196), que regulamenta as promoções de graduados do Exército, preveem a promoção em ressarcimento de preterição quando existe uma “solução favorável a recurso interposto”. No entanto, a legislação não define o que exatamente configura essa “solução favorável”.
É aqui que a interpretação conforme a Constituição se torna crucial, permitindo que a norma infraconstitucional seja aplicada de forma a não violar os direitos fundamentais assegurados pela Carta Magna.
A interpretação conforme a Constituição é um método hermenêutico que busca compatibilizar a aplicação da legislação infraconstitucional com os princípios e preceitos constitucionais. No âmbito das promoções militares, isso significa interpretar as normas reguladoras de forma a evitar soluções inconstitucionais, assegurando a efetividade dos direitos fundamentais dos militares.
A aplicação desse método permite defender que a preterição indireta, resultante da demora judicial não imputável ao militar, deve ser equiparada àquela decorrente de erro administrativo direto. Tal compreensão busca garantir a efetividade material da justiça, promovendo a isonomia e corrigindo situações de injustiça estrutural.
Propõe-se, então, que a expressão “solução favorável a recurso interposto” seja interpretada de forma a reconhecer o direito do militar de ser compensado pelo tempo de serviço perdido devido à duração de um processo criminal, desde que certos requisitos sejam atendidos, demonstrando que a busca pela justiça e a valorização do indivíduo são compatíveis com a rigidez da carreira militar.
Nesse sentido, o militar deve ter sido condenado, reconhecendo sua responsabilidade pelo ato ilícito, pois a assunção da responsabilidade é um passo fundamental para a reintegração e a demonstração de que o militar compreende a importância da lei e da ordem.
Além disso, a pena imposta não pode ser excessivamente grave, a ponto de comprometer a imagem da instituição militar, pois a gravidade da pena reflete a gravidade do delito, e a promoção não pode servir como um incentivo à impunidade ou descrédito da justiça.
Na mesma linha, o militar deve demonstrar um comportamento exemplar, comprovando seu comprometimento com os valores e princípios da instituição, pois a demonstração de conduta ilibada e compromisso com o serviço é essencial para que a promoção seja vista como um reconhecimento do mérito e da capacidade de superação.
O processo criminal deve ter se prolongado excessivamente, ultrapassando o tempo da pena imposta, prejudicando a carreira do militar de forma desproporcional, pois a morosidade da justiça não pode ser um fator de penalização excessiva, e a promoção deve servir como uma forma de atenuar os efeitos negativos do tempo de tramitação do processo.
Nesse contexto, a “solução favorável a recurso interposto” seria o reconhecimento, pela Administração Militar, de que o tempo de tramitação do processo prejudicou o militar de forma desproporcional. Assim, seria concedida a promoção em ressarcimento de preterição, descontando-se do tempo de serviço a ser desconsiderado do militar o tempo imposto na condenação, não permitindo que o tempo da tramitação do processo criminal o prejudicasse.
Essa medida visa a garantir que o militar não seja duplamente penalizado, tanto pela pena imposta quanto pela demora na resolução do processo.
Essa interpretação está alinhada com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade, proporcionalidade e razoabilidade, devido processo legal e presunção de inocência. Ao garantir que os militares sejam tratados de forma equitativa e proporcional à sua conduta, o Exército Brasileiro fortalece seus valores e cumpre sua missão de defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.
A jurisprudência dos tribunais superiores tem evoluído no sentido de reconhecer a necessidade de interpretações mais flexíveis e adequadas aos princípios constitucionais, especialmente em matéria de direitos fundamentais. Decisões que valorizam a dignidade da pessoa humana, a razoável duração do processo e a isonomia têm sido utilizadas como fundamentos para ampliar a proteção de direitos em contextos de preterição.
Essa tendência jurisprudencial reforça a viabilidade de se pleitear o ressarcimento de preterição em casos de prejuízo decorrente da morosidade judicial, desde que comprovada a inexistência de culpa do militar e o nexo causal entre a demora e o dano sofrido.
A implementação dessa política requer a participação ativa da Assessoria de Apoio para Assuntos Jurídicos (Asse Ap As Jurd) da Diretoria de Avaliação e Promoções (D A Prom) do Exército. Esse órgão deve analisar cada caso individualmente, considerando a natureza da infração, o tempo de impedimento, o comportamento profissional do militar e a morosidade processual. A análise individualizada garante que a decisão seja justa e adequada às particularidades de cada situação.
A interpretação da legislação infraconstitucional deve ser permeada pelos princípios constitucionais, especialmente quando se verifica a ocorrência de desproporcionalidades flagrantes decorrentes de falhas estatais, como a morosidade processual. O caso do militar do Exército que, após mais de uma década de espera, é penalizado de forma mais severa pela demora do Judiciário do que pela própria infração cometida, exemplifica a necessidade de uma abordagem hermenêutica que privilegie a justiça material sobre a rigidez formal.
Isso demonstra, inequivocadamente, que é juridicamente possível, e constitucionalmente exigível, reinterpretar dispositivos legais de forma a mitigar os efeitos desproporcionais da demora processual penal na carreira de militares, promovendo uma verdadeira concretização dos direitos fundamentais e da justiça.
A promoção em ressarcimento de preterição, nesse contexto, não deve ser vista como uma forma de impunidade, mas sim como um reconhecimento do direito do militar de ter sua carreira avaliada de forma justa e equitativa, sem ser penalizado excessivamente pelo tempo de tramitação de um processo judicial.
Essa abordagem demonstra que é possível conciliar as normas disciplinares militares com os princípios constitucionais, garantindo a justiça e a valorização do mérito no âmbito das Forças Armadas.
A aplicação do princípio da proporcionalidade exige que a sanção administrativa imposta ao militar seja proporcional à falta cometida, considerando a sua gravidade e o impacto na instituição. Nos casos de condenação criminal, é preciso analisar se o tempo de impedimento para a promoção é excessivo em relação à pena imposta, de modo a não comprometer de forma desproporcional a carreira do militar.
A garantia do devido processo legal assegura ao militar o direito à ampla defesa e ao contraditório no processo administrativo de promoção, permitindo que ele apresente seus argumentos e provas para demonstrar que preenche os requisitos para a promoção em ressarcimento de preterição. A observância do devido processo legal é fundamental para garantir a justiça e a transparência no processo de promoção.
Embora o militar tenha sido condenado, a interpretação conforme a Constituição busca mitigar os efeitos negativos do processo, garantindo que ele não seja prejudicado de forma excessiva. A presunção de inocência, mesmo após a condenação, exige que a Administração Militar avalie cuidadosamente as circunstâncias do caso, considerando o tempo de tramitação do processo e o comportamento do militar após a condenação.
Ademais, a participação de representantes da área jurídica nesse processo é essencial para garantir que a análise dos casos seja realizada à luz da legislação e da jurisprudência aplicáveis. Os assessores podem auxiliar na interpretação das normas de promoção, na análise dos recursos interpostos e na avaliação da proporcionalidade das sanções aplicadas, contribuindo para a tomada de decisões mais justas e equitativas.
Por fim, têm-se que a revisão das hipóteses de promoção em ressarcimento de preterição é essencial para assegurar maior justiça material e efetividade dos direitos dos militares. A interpretação das normas deve ser orientada por princípios constitucionais, permitindo o reconhecimento de direitos mesmo em situações não expressamente previstas na legislação infraconstitucional, mas que se mostram compatíveis com o espírito da Constituição Federal e com a proteção da dignidade do militar.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A promoção em ressarcimento de preterição é um direito fundamental do militar que deve ser interpretado de forma a garantir a justiça e a proporcionalidade. A aplicação estrita das normas que impedem indiscriminadamente a promoção de militares condenados criminalmente pode gerar injustiças e ferir princípios constitucionais.
A proposta de interpretação conforme a Constituição Federal apresentada neste artigo visa a harmonizar o regime jurídico militar com os direitos fundamentais, promovendo justiça entre os militares, sem renunciar aos valores essenciais das Forças Armadas.
Espera-se que este artigo contribua para o debate sobre a necessidade de compatibilização entre o regime jurídico militar e o Estado Democrático de Direito, no qual os direitos fundamentais ocupam posição central, mesmo em contextos institucionais caracterizados pela rigidez normativa.
A implementação de uma política de promoção em ressarcimento de preterição mais justa e equitativa pode fortalecer a imagem do Exército Brasileiro perante a sociedade e aumentar a motivação e o engajamento dos militares.
Ao reconhecer o direito à promoção nos casos em que o militar foi acusado e condenado por uma pena de natureza leve, mas em que o processo criminal se prolongou de maneira excessiva, sendo que o referido militar demonstrou, ao longo desse período, comprometimento com a Instituição, o Exército Brasileiro reafirma e fortalece seus valores, além de incentivar a superação e a busca pela excelência.
O tempo de serviço a ser desconsiderado do militar equivaleria somente ao tempo imposto na condenação, não permitindo que o tempo da tramitação do processo criminal o prejudicasse, já que é um lapso que pode ser estender indefinidamente.
A interpretação das normas de promoção militar à luz dos princípios constitucionais pode contribuir para a construção de um regime jurídico mais justo e equilibrado, que valorize a dignidade da pessoa humana e a eficiência da Administração Pública. Ao garantir que os militares sejam tratados de forma equitativa e proporcional à sua conduta, o Exército Brasileiro fortalece seus valores e cumpre sua missão de defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.
A promoção em ressarcimento de preterição deve ser vista como uma oportunidade excepcional de reconhecer o mérito e o valor dos militares que, apesar de terem cometido erros no passado, demonstraram capacidade de superação e comprometimento com a Instituição. Ao valorizar esses militares, o Exército Brasileiro incentiva o reerguimento da carreira do militar e fortalece os valores militares.
A discussão sobre a possibilidade de promoção em ressarcimento de preterição em casos de condenação criminal é fundamental para a modernização do regime jurídico militar e sua adequação aos princípios do Estado Democrático de Direito, reforçando o compromisso do Exército Brasileiro com a justiça, a equidade e a valorização da categoria especial de servidores da Pátria, os militares.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
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TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
[1] Oficial do Exército Brasileiro e Assessor Jurídico. Bacharel em Direito pelo Instituto de Educação Superior de Brasília, em 2015, com Especialização nas áreas do Direito Público e Direitos Humanos pelo Centro Universitário União das Américas, em 2021; possui o curso de extensão em Direito Militar pela Justiça Militar da União, em 2024.
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7485817848109286
E-mail: [email protected]
Oficial de Assessoria Jurídica, Exército Brasileiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GABRIEL BACCHIERI DUARTE FALCãO, . A possibilidade de promoção em ressarcimento de preterição no Exército Brasileiro em casos de condenação criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2025, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/68642/a-possibilidade-de-promoo-em-ressarcimento-de-preterio-no-exrcito-brasileiro-em-casos-de-condenao-criminal. Acesso em: 22 maio 2025.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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