RESUMO: Este artigo discute a constitucionalidade da imposição legal do regime de separação de bens para indivíduos com mais de 70 anos no contexto brasileiro. Argumenta-se que tal imposição pode ser considerada inconstitucional à luz dos princípios constitucionais de igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade de escolha. Ao explorar as bases legais e constitucionais, bem como jurisprudências pertinentes, o artigo propõe uma análise crítica das razões por trás da obrigação legal e as possíveis alternativas para garantir a proteção dos interesses dos idosos sem infringir direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Regime de Bens, Separação de Bens, Constitucionalidade, Direitos Fundamentais.
ABSTRACT: This article discusses the constitutionality of the legal imposition of the separation of assets regime for individuals over 70 years of age in the Brazilian context. It is argued that such imposition may be considered unconstitutional in light of the constitutional principles of equality, human dignity and freedom of choice. By exploring the legal and constitutional bases, as well as relevant case law, the article proposes a critical analysis of the reasons behind the legal obligation and the possible alternatives to ensure the protection of the interests of the elderly without infringing fundamental rights.
KEYWORDS: Property Regime, Separation of Assets, Constitutionality, Fundamental Rights
Sumário: 1. Introdução; 2. Contexto legal e fundamentação constitucional; 3. Princípios constitucionais; 3.1 Igualdade; 3.2 Dignidade da pessoa humana; 3.3 Liberdade; 4. Pessoa idosa no Brasil; 5. O Estatuto da Pessoa Idosa; 6. Análise jurisprudencial e doutrinária; 7. Conclusão; 8. Referências.
1.INTRODUÇÃO
No Brasil, a legislação atual impõe o regime de separação obrigatória de bens para pessoas com mais de 70 anos que desejam contrair matrimônio. Esta exigência legal, embora destinada a proteger os interesses patrimoniais dos idosos, suscita questões relevantes quanto à sua constitucionalidade. Este artigo propõe uma análise detalhada da inconstitucionalidade dessa imposição, à luz dos princípios constitucionais fundamentais.
2.CONTEXTO LEGAL E FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL
A imposição do regime de separação de bens para os maiores de 70 anos encontra-se prevista no artigo 1.641 do Código Civil. Segundo este dispositivo, as pessoas nessa faixa etária são obrigadas a adotar tal regime, exceto nos casos previstos em lei. Esta medida legislativa visa, teoricamente, proteger o patrimônio dos idosos de possíveis fraudes ou abusos por parte de terceiros, especialmente em contextos matrimoniais.
No entanto, ao impor esta restrição automática, a legislação brasileira pode estar infringindo princípios constitucionais como o da igualdade (art. 5º, caput), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a liberdade de escolha (art. 5º, II). A Constituição Federal de 1988 consagra a igualdade de direitos entre todos os cidadãos, independentemente de idade, gênero ou qualquer outra condição pessoal. A obrigatoriedade do regime de separação de bens para os maiores de 70 anos, portanto, poderia ser interpretada como uma discriminação injustificada baseada exclusivamente na idade.
3.PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS VIOLADOS
3.1 Igualdade
A Constituição Federal de 1988 garante a igualdade de todos perante a lei, vedando qualquer forma de discriminação, inclusive por idade. A imposição do regime de separação de bens baseada unicamente na idade dos cônjuges configura uma discriminação arbitrária, ferindo esse princípio fundamental.
3.2 Dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade humana assegura que todos os indivíduos sejam tratados com respeito e consideração, sem restrições indevidas aos seus direitos fundamentais. A imposição de um regime patrimonial sem considerar a vontade dos envolvidos pode comprometer essa dignidade, limitando a autonomia das escolhas pessoais.
3.3 Liberdade
A autonomia da vontade é um direito civil fundamental, permitindo aos indivíduos estabelecerem livremente seus direitos e obrigações no âmbito patrimonial. A obrigatoriedade do regime de separação de bens para os maiores de 70 anos restringe essa liberdade, impondo uma forma de organização patrimonial sem considerar as circunstâncias individuais de cada casal.
4.PESSOA IDOSA NO BRASIL
Com base no artigo “A interdição dos idosos” de Gisele Beretta Notti (2011) expõe que a partir da segunda metade do século XIX, a velhice foi tratada como uma etapa da vida caracterizada pela decadência física e ausência de papeis sociais.
É nesse sentindo que a repórter Mariana Tokarnia (2014) trouxe o entendimento do presidente da sociedade brasileira de Geriatria e Gerontologia, João Bastos Freire Neto, que acredita que “a sociedade tem visão estereotipada do idoso, com doenças, que consomem recursos da saúde. Que a velhice significa doença e não fazer nada”.
Nessa mesma reportagem, Max Petrucci, o fundador da Garage IM, relatou que:
Hoje, o idoso é retratado como uma pessoa em decadência, curvada e dependente de uma bengala (como nas imagens que o representam), da ajuda de terceiros. Isso não é mais verdade. Há perda de vitalidade, mas o idoso hoje vive mais, está mais saudável, ativo e produtivo. O país está em processo de envelhecimento e levantar essas questões é uma forma de começar a conscientização da sociedade sobre o tema.
Segunda a repórter Mariana Tokarnia (2014):
Os idosos são hoje no país 26,3 milhões, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número representa 13% da população. A expectativa é que esse percentual aumente e que em 2060 chegue a 34%, segundo previsão do próprio IBGE.
Curiosidade essa também retrata por Roberto Mendes de Freitas Junior (2008, p. 04) que aduz que a Organização Mundial de Saúde estimou que até o ano de 2025, o Brasil será o sexto país mais envelhecido do mundo, possuindo mais de 34 milhões de idosos.
Compreende-se, então, que “o idoso, por questões biológicas, pode apresentar algumas limitações ou pequenas dificuldades, mas isso não significa a incapacidade de realizar tarefas”. O que se pode perceber, nos tempos atuais, é que a população dos idosos sofrem estereótipos da velhice que foram rotulados pela geração mais “nova”, sendo assim, é preciso compreender que o envelhecimento humano não pode ser considerado apenas do ponto de vista cronológico (SCORTEGAGNA e OLIVEIRA, 2012).
É preciso considerar que, conforme Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomão Leite (2013):
Ao erigir a dignidade humana a um dos fundamentos da República, a Carta Magna sinaliza que todo indivíduo é merecedor de igual respeito e consideração, pelo simples fato de ser humano, de modo que toda pessoa deverá receber o mesmo tratamento jurídico, independentemente de quaisquer atributos ou características, como a cor da pele, orientação sexual, gênero sexual, caracteres físicos, idade etc.
Por sua vez, a Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso IV (BRASIL, 1988), afirma que a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação é um dos objetivos da República Federativa do Brasil.
Com isso, percebe-se que:
A dignidade da pessoa humana não está relacionada às suas características externas, tampouco se liga à classe social a qual essa pessoa pertence, nem mesmo ao seu gênero, cor, idade ou etnia. (...) Afinal, a dignidade não tem preço, não pode ser medida, é irrenunciável e inalienável, sendo, dessa forma, é atributo de todos os seres humanos (SANTIN, 2013).
5.O ESTATUTO DA PESSOA IDOSA
O artigo 1º, do Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003), informa que regulamentará os direitos das pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Percebe-se que, por haver dificuldades para estabelecer parâmetros definidores para o início da chamada “terceira idade”, já que são diversos fatores que atuam no processo de envelhecimento e variam de caso a caso, o Estatuto se baseou apenas na idade, impondo o “status” de idoso para aqueles com idade igual ou superior a 60 anos.
A Constituição Federal, constituída em Estado Democrático de Direito, veda, expressamente, discriminação em razão da idade, bem como assegura especial proteção ao idoso, em seu artigo 3º, inciso, IV (BRASIL. 1988).
Segundo o estatuto do idoso (BRASIL, 2003), em seu art. 2º preconiza que:
Art. 2º A pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
A dignidade da pessoa humana de acordo com Sarlet, citado por Ramiro L. P. da Cruz e Gisele P. J. Leite (2005) é a seguinte:
A qualidade intrínseca e distinta de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Logo, percebe-se que a dignidade humana gira em torno da ideia de que todas as pessoas nascem livres, iguais e dotadas de racionalidade, nos diferenciando, assim, dos outros animais, permitindo que cada um concretize o seu próprio projeto de vida, tomando decisões livremente. Onde qualquer obstáculo jurídico à capacidade de autodeterminação e ao exercício da liberdade individual, revela-se inconstitucional, exatamente por violar a dignidade humana (FERRAZ e LEITE, 2013).
Da mesma forma Roberto Mendes de Freitas Junior (2008, p. 58) entende, aduzindo que o “idoso deve ter liberdade de pensar e expressar suas opiniões, independentemente de qualquer doutrina ou orientação por parte do Poder Público”.
O caput do artigo 3º, do Estatuto do Idoso (BRASIL,2003) dispõe que:
Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
O art. 10, § 1º, II e V, do Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003), dispõe que:
Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)
§ 1o O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos:
(...)
II – opinião e expressão;
(...)
V – participação na vida familiar e comunitária;
(...)
Dessa forma, pode-se extrair desse artigo que:
Resta claro que o avançar da idade não implica diminuição na capacidade jurídica de autodeterminação nem na garantia das liberdades individuais. Qualquer restrição à liberdade baseada tão somente na maturidade fere a Carta Magna, por violar indevidamente direitos fundamentais da pessoa, revelando-se medida discriminatória, uma vez que se consubstancia em mera arbitrariedade (FERRAZ e LEITE, 2013).
Diante disso, pode-se concluir que a pessoa idosa é absolutamente capaz pelo ordenamento jurídico brasileiro, e, portanto, o direito à liberdade deve ser respeitado por todos, o que ocasiona em total liberdade para direcionar sua própria vida, estabelecendo que nada justifique a imposição de limites a sua capacidade. Dessa forma, a pessoa idosa possui a consciência de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que a rodeia.
6.ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIA
A jurisprudência brasileira tem abordado de forma variada a questão da constitucionalidade do regime obrigatório de separação de bens para os idosos. Algumas decisões têm reconhecido a necessidade de revisão dessa imposição à luz dos princípios constitucionais, enquanto outras têm mantido a aplicação estrita do dispositivo legal.
A doutrina jurídica tem oferecido diferentes perspectivas sobre o tema. Alguns juristas argumentam pela manutenção da obrigatoriedade como forma de proteção patrimonial, destacando casos de vulnerabilidade dos idosos em relações matrimoniais. Por outro lado, há aqueles que defendem a inconstitucionalidade da medida, sugerindo alternativas que conciliem a proteção patrimonial com o respeito aos direitos individuais dos idosos.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu, no tema de Repercussão Geral nº 1236, que “o regime obrigatório de separação de bens nos casamentos e nas uniões estáveis que envolvam pessoas maiores de 70 anos pode ser alterado pela vontade das partes, mediante escritura pública, firmada em cartório. Caso não se escolha outro regime, prevalecerá a regra disposta em lei (art. 1.641, II, CC/2002).”.
Assim, percebe-se a preocupação em adequar a norma legal aos atos da vida contemporânea, trazendo ampliações interpretativas para que seja subvertido o entendimento de que as pessoas maiores de 70 anos não possuem capacidade para determinar o seu regime de bens.
7.CONCLUSÃO
Em síntese, a imposição do regime de separação de bens para os maiores de 70 anos suscita questões significativas quanto à sua constitucionalidade à luz dos princípios fundamentais da Constituição Federal. Este artigo argumentou que tal imposição pode ser considerada inconstitucional por violar direitos fundamentais, propondo uma revisão legislativa que respeite a autonomia e a dignidade das pessoas idosos. A proteção patrimonial dos mais vulneráveis deve ser assegurada sem comprometer os direitos individuais garantidos pela Carta Magna.
Assim, é fundamental que o debate jurídico e legislativo sobre este tema continue visando alcançar um equilíbrio entre a proteção dos interesses patrimoniais dos idosos e o respeito aos seus direitos constitucionais.
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