Em novembro de 2006, entrou em vigor a Resolução nº 1.805 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabelece e regulamenta, no âmbito disciplinar, a chamada “limitação do esforço terapêutico”. Inicio minha abordagem a respeito deste assunto, colocando-me a favor da eutanásia. Já faz certo tempo que a discussão sobre sua legitimidade está em pauta no Brasil e no mundo. No entanto, mais do que questionar se a eutanásia é ou não legítima, é necessário perguntar sobre o limite entre o cuidado das pessoas e a tortura que o prolongamento de uma pseudo-vida pode implicar.
A palavra eutanásia deriva dos vocábulos gregos eu, que literalmente significa “bem”, ethanasia, que equivale a “morte”: boa morte. A expressão ganhou relevância no século 17, quando empregada pelo filósofo inglês Francis Bacon em seu Novum Organum. O conceito não é unívoco e passou por transformações. Atualmente, o vocábulo é empregado no sentido da abreviação piedosa do sofrimento de portador de doença em estágio terminal, a pedido deste, através da antecipação provocada de sua morte.[1]
Quanto ao consentimento e à vontade do paciente, a eutanásia pode ser voluntária, involuntária e não voluntária. A eutanásia é voluntária quando a morte é provocada em atendimento à solicitação do paciente, que decide de forma consciente por fim à vida após informado da irreversibilidade de seu quadro de saúde. Eutanásia é involuntária nos casos em que o enfermo tem sua morte induzida contra sua vontade. Na eutanásia não voluntária, o doente não manifesta vontade nem consente com a prática. Quanto à forma de ação, a eutanásia pode ser ativa ou passiva. A eutanásia ativa voluntária, também denominada comissiva ou positiva, consiste na morte provocada deliberadamente, movida por sentimento de piedade, a uma pessoa que sofre de enfermidade incurável e muito penosa, ou que vive em estado vegetativo permanente. Realiza-se através da administração ao doente de substâncias que causam a morte de forma rápida e indolor. A eutanásia ativa involuntária ocorre quando as ações médicas efetuadas para trazer alívio ao paciente acabam por, indiretamente, acelerar sua morte.A morte é conseqüência das medidas voltadas a fazer suportável a vida próxima ao fim. Não é objetivo imediato da conduta médica, mas resultado indireto de se ministrar medicamentos que aliviem a dor. A eutanásia passiva ou ortotanásia é também denominada eutanásia negativa. Etimologicamente, ortotanásia significa “morte correta”. Consiste na não aplicação de recursos terapêuticos nem de meios artificiais de manutenção da vida do doente em estado incurável e grave, com o fim de evitar-lhe sofrimento prolongado. Estas hipóteses, porém,foram expressamente acolhidas pela Resolução nº 1.805/2006 do CFM, com exceção da Eutanásia ativa..
Quando se discute o direito à eutanásia, discute-se justamente a disponibilidade da vida humana face ao princípio da dignidade. Princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal e fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade está ligada ao respeito e à valorização do ser humano.
Nas palavras de Dwokin, a dignidade, na concepção kantiana, deve ser compreendida como o direito de as pessoas nunca serem “tratadas de maneira que se negue a evidente importância de suas próprias vidas.”[2]
Além do princípio da dignidade da pessoa humana, é, também, primordial lembrarmo-nos do princípio da autonomia. Semanticamente, a expressão autonomia vem do grego autos - que significa “por si mesmo” - e nomos - que significa “uso”, “lei”, “convenção”. Nesse sentido, autonomia significa propriamente a competência humana em “dar-se suas próprias leis”[3]
A autonomia refere-se ao direito do paciente no uso pleno de sua razão - ou de seus responsáveis, quando lhe faltar consciência - de estabelecer os limites em que gostaria de ver respeitada sua vontade. É a liberdade do indivíduo de pensar livremente e tomar decisões sobre sua própria vida. Envolve três condições: agir com intencionalidade; com conhecimento de causa; e sem influências controladoras que determinem sua ação.
No debate da eutanásia, confrontam-se o valor absoluto da vida e o direito de se colocar fim a uma vida quando o processo de morte já se instalou. De um lado, a corrente pró-vida defende a sacralidade da vida e, portanto, sua indisponibilidade; do lado oposto, a corrente pró-escolha defende que, em prol da autonomia e da dignidade do doente em estado terminal, a eutanásia deve ser permitida em casos específicos.
Argumenta o jurista Luiz Flávio Gomes:
“Em nossa opinião, dono da vida, o ser humano deve ser também, dentro de determinadas circunstâncias e segundo certos limites, o dono da sua própria morte. Não há nenhuma censura (reprovação) ética ou jurídica na chamada “morte digna”, que é a morte desejada por quem já não tem mais possibilidade de vida e que, em estado terminal, está sofrendo muito. A morte nessas circunstâncias, rodeada de vários cuidados (para que não haja abuso nunca), não se apresenta como uma morte arbitrária, ou seja, não gera um resultado jurídico desvalioso, aocontrário, é uma morte “digna”, constitucionalmente incensurável.”[4]
Nesse sentido, a eutanásia, apesar de formalmente ser crime, não pode ser vista como um fato materialmente típico, pois não atenta contra a dignidade humana já que a morte, neste caso, não é arbitrária.
Ante o exposto, tem-se que a ortotanásia (eutanásia passiva) é prática corrente na realidade brasileira e regulamentada pelo Conselho Nacional de Medicina. As controvérsias referem-se, portanto, à prática da eutanásia ativa.Tal conduta se enquadra na previsão de homicídio, na modalidade privilegiada, do Código Penal Brasileiro, sendo o consentimento do enfermo irrelevante para descaracterizar a ilicitude do ato.
A melhor corrente, pró-escolha, vê a eutanásia como meio adequado para aliviar o sofrimento desnecessário de doentes em estado terminal com qualidade de vida comprometida. A antecipação da morte seria um meio de atender ao interesse do enfermo que optou por morrer com dignidade, sem o prolongamento inútil, em face da incurabilidade e de seu padecimento, em respeito à autodeterminação e integridade da pessoa. Já a corrente pró-vida defende a santidade da vida humana, da qual nem o indivíduo nem o Estado podem dispor. Apóia-se no fato de que um diagnóstico ou prognóstico equivocados gerariam resultados irreparáveis. Entende-se que a vida humana não pode ser resumida a seu aspecto biológico. Deve-se levar em conta também a qualidade de vida. Assim, o prolongamento da vida de um enfermo só é válido se trouxer benefícios à pessoa como um todo. Os princípios constitucionais da dignidade humana e da liberdade constituem a base da chamada “morte digna”. Com base nesses princípios, justifica-se a prática da eutanásia em determinadas condições não podendo ser considerada um ato de crueldade; pelo contrário: trata-se de ampla proteção ao indivíduo. Num quadro de sofrimento físico e psíquico intenso e sem perspectiva de reversão, o alívio da morte não pode ser visto como negação, mas afirmação da dignidade da pessoa humana em plena conformidade com a Constituição Federal.
Bibliografia:
CARVALHO, Gisele Mendes de. Ortotanásia é eutanásia, mas não é crime
(Considerações a respeito da Resolução nº 1.805/2006 do CFM e sua
compatibilidade com o Código Penal). Disponível em: www.ibccrim.org.br.
Acesso em: 20.03.2008. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela penal dos
bens jurídicos individuais, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP – IPAN - REDE LFG.
COLLUCCI, Claudia. SILVEIRA, Julliane. Juiz obriga médicos a tentar
prolongar vida de doentes terminais. Da Assessoria de Comunicação do
Cremepe. Folha de São Paulo de 27.11.2007. Disponível em:
<http://portal.cremepe.org.br/publicacoes_noticias_ler.php?cd_notici
a=1704>. Material da 1ª aula da Disciplina Tutela Penal dos Bens
Jurídicos Individuais, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP – IPAN - REDE LFG.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes,2003.
Espanha aprovou ‘Testamento Vital’. Material da 1ª aula da Disciplina
Tutela Penal dos Bens Jurídicos Individuais, ministrada no Curso de
Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP –
IPAN - REDE LFG.
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: liberdade e responsabilidade. SãoPaulo: Saraiva, 1992.
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de; PESSINI, Léo. Problemas atuais de bioética. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2000.
GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? Disponível em: http://www.novacriminologia.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=1842..
Acesso em: 20 de outubro de 2008.
MORAES, Alexande de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4 ed. São Paulo:Atlas, 2004.
[1] SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia: liberdade e responsabilidade. SãoPaulo: Saraiva, 1992. p. 209.
[2] DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes,2003. p. 339
[3] SCHRAMM, Fermim R., SEGRE, Marco, SILVA, Franklin Leopoldo e. O contexto histórico, semântico e filosófico do princípio de autonomia. in Revista Bioética. v. 6 n. 1. 1998. Disponível em:<http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v6/conthistorico.htm>. Acesso em: 20 de outubro de 2008.
[4] GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia: dono da vida, o ser humano é também dono da sua própria morte? Disponível em: http://www.novacriminologia.com.br/artigos/leiamais/default.asp?id=1842..
Acesso em: 20 de outubro de 2008.
Pós-graduando em Direito Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Breno Antonio Rodrigues de. Eutanásia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jun 2010, 00:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20039/eutanasia. Acesso em: 01 dez 2024.
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