RESUMO: A inconstitucionalidade de normas tem sido objeto de inúmeras discussões tanto na Doutrina quanto na jurisprudência brasileira, havendo consenso no sentido de que referido fenômeno não se encaixa na mera relação de desconformidade da norma com a Constituição Federal. Isso porque, em determinadas situações, a declaração de inconstitucionalidade da norma pode provocar insegurança jurídica ou até mesmo impossibilitar o regular desenvolvimento das relações jurídicas na sociedade, dependendo da realidade vivenciada no país, que muitas vezes não permite a imediata extirpação da norma. Assim, para salvaguardar tais hipóteses, tem-se utilizado a técnica da “inconstitucionalidade progressiva”, a qual permite que a norma aparentemente inconstitucional permaneça válida enquanto não sobrevierem as circunstâncias necessárias para concretizar seu caráter inconstitucional.
PALAVRAS-CHAVES: Inconstitucionalidade progressiva. Manutenção temporária da constitucionalidade. Adequação à realidade do país.
1. INTRODUÇÃO
Ao longo dos anos vêm sendo travadas, no direito brasileiro, inúmeras discussões sobre a inconstitucionalidade das normas. Todavia, não obstante tais debates, hodiernamente, há quase que um consenso no sentido de que referido fenômeno não se encaixa na mera relação de desconformidade da norma com a Constituição Federal.
A respeito do tema, aliás, os ilustres doutrinadores Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco[1], no Curo de Direito Constitucional, consignaram que “inconstitucional será o ato que incorrer em sanção – de nulidade ou anulabilidade – por desconformidade com ordenamento constitucional.”.
Pois bem, diante das inúmeras características que envolvem a inconstitucionalidade da norma, a doutrina acabou classificando-a em diversos tipos, bem como desenvolvendo algumas técnicas para sua aplicação, sendo, uma deles, a denominada “inconstitucionalidade progressiva”, a qual ainda pode ser chamada de “inconstitucionalidade temporária”, de “declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade”, ou, também, de “normas ainda constitucionais”.
Ora, a chamada “inconstitucionalidade progressiva” constitui, em verdade, uma técnica para adequar a nova ordem constitucional à realidade, tendo em vista que a implementação da nova ordem não ocorre de forma instantânea.
Vê-se que a “inconstitucionalidade progressiva” ocorre apenas quanto ao aspecto material da norma, pois diz respeito à inércia do Poder Público em concretizar os objetivos idealizados pela nova ordem constitucional.
Tem-se, desse modo, uma norma que, embora já seja, de certo modo, incompatível com a Carta Magna, ainda pode ser considerada constitucional, enquanto não sobrevierem as circunstâncias que concretizem seu caráter de inconstitucionalidade.
Consoante esclarece o Ministro Gilmar Ferreira Mendes[2], a “inconstitucionalidade progressiva” é, em verdade, uma técnica que permite que uma norma constitucional fique num estágio intermediário “entre os estados de plena constitucionalidade ou de absoluta inconstitucionalidade”.
Alguns doutrinadores consideram importante diferenciar a “inconstitucionalidade progressiva” da “inconstitucionalidade circunstancial” ou “lei ainda inconstitucional”.
Isso porque, para tais doutrinadores, na denominada “inconstitucionalidade circunstancial”, uma determinada norma, embora seja válida, quando confrontada com uma situação específica, torna-se inconstitucional em decorrência do seu contexto particular[3], enquanto que na “inconstitucionalidade progressiva” a norma é de certo modo incompatível com a nova ordem constitucional, mas permanece válida enquanto não sobrevierem as circunstâncias que possam concretizar seu caráter inconstitucional.
Feitas tais considerações, cabe, no momento, analisar a aplicabilidade da técnica da “inconstitucionalidade progressiva” pelo Supremo Tribunal Federal.
2. DESENVOLVIMENTO
A Suprema Corte brasileira, na condição de guardiã da Constituição Federal, já vem utilizando, há certo tempo, a técnica da “inconstitucionalidade progressiva”, no intuito de evitar que determinada norma venha a ser considerado inconstitucional, ante a inércia do Poder Público em concretizar os objetivos idealizados pela nova ordem constitucional.
Da análise das hipóteses em que a Suprema Corte efetivamente aplicou a técnica da “inconstitucionalidade progressiva”, merecem destaque três situações concretas, quais sejam: os julgados relativos à aplicabilidade, do art. 5º, § 5º, da Lei nº 1.060/1950, do art. 68 do Código de Processo Penal (CPP) e do art. 10 da Lei nº 6880/80.
O art. 5º, § 5º[4], da Lei nº 1.060/50 estabelece que todos os prazos para manifestação do Defensor Público nos autos serão contados em dobro. Contudo, como na esfera do processo penal o Ministério Público não possui tal prerrogativa, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 70.514/SP, proferido em 23/03/1994, decidiu por bem manter a aplicabilidade do citado dispositivo, não obstante tal medida constituísse, aparentemente, violação ao princípio da isonomia, até que a Defensoria Pública estivesse regularmente organizada, momento em que referida norma seria considerada inconstitucional.
Por sua vez, o art. 68[5] do CPP, o qual dispõe que, na hipótese do titular do direito à reparação do dano ser pobre, a execução da sentença condenatória ou a ação civil será promovida pelo Ministério Público, também foi objeto de aplicação da técnica da “inconstitucionalidade progressiva”.
O Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 341.717-SP, de 05/08/2003, no qual restou analisada situação concreta do estado de São Paulo, não obstante o aparente descompasso entre o art. 68 do CPP e os arts. 127[6] e 134[7] da Constituição Federal, decidiu manter a aplicabilidade do art. 68 do CPP, até que fosse instituída e organizada a Defensoria Pública local, ante a manifesta omissão do estado no adimplemento de imposição da nova ordem Constitucional.
Cabe registrar ainda que a Suprema Corte, ao julgar o RE nº 147.776/SP, de 06/04/1999, enfatizou que, enquanto não forem criadas as Defensorias Públicas em todos os estados do Brasil, o art. 68 do CPP permanece constitucional, tendo em vista que, ao ser retirada a atribuição do Ministério Público de garantir a reparação de danos do hipossuficiente, decorrente de ilícito penal, referidos indivíduos, bem como a própria sociedade, restariam prejudicados.
Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal promoveu o julgamento do RE nº 600885/RS, em 09/02/2011, pelo Plenário, reconhecendo a repercussão geral e consignando, expressamente, que, embora a definição dos requisitos para o ingresso nas Forças Armadas deva se dar por lei, faz-se mister modular os efeitos da decisão, a fim de que seja mantida a validade dos limites de idade fixados em editais e regulamentos, com fundamento no art. 10 da Lei n. 6880/80, até 31 de dezembro de 2011, ressalvado apenas o direito daqueles que já tivessem ajuizado ações com o mesmo objeto jurídico. Veja-se:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA INGRESSO NAS FORÇAS ARMADAS: CRITÉRIO DE LIMITE DE IDADE FIXADO EM EDITAL. REPERCUSSÃO GERAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. SUBSTITUIÇÃO DE PARADIGMA. ART. 10 DA LEI N. 6.880/1980. ART. 142, § 3°, INCISO X, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DECLARAÇÃO DE NÃO RECEPÇÃO DA NORMA COM MODULAÇÃO DE EFEITOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
(...)
5.O princípio da segurança jurídica impõe que, mais de vinte e dois anos de vigência da Constituição, nos quais dezenas de concursos foram realizados se observando aquela regra legal, modulem-se os efeitos da não-recepção: manutenção da validade dos limites de idade fixados em editais e regulamentos fundados no art. 10 da Lei n. 6.880/1980 até 31 de dezembro de 2011.
Ocorre que, diante da iminência de ser expirado o prazo de validade dos concursos, sem que a nova Lei fixadora dos critérios de admissibilidade nas Forças Armadas fosse publicada, a União, em 08/08/2011, opôs embargos declaratórios perante o Plenário do STF, solicitando a prorrogação do prazo anteriormente assinalado.
Assim, em 29/06/2012, o Plenário do Supremo Tribunal Federal acolheu os embargos de declaração da União para prorrogar, até 31 de dezembro de 2012, o prazo de modulação dos efeitos da declaração da não-recepção pela Constituição da República de 1988 da expressão 'nos regulamentos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica' do art. 10 da Lei 6.880/1980.
Vê-se que o STF prorrogou os efeitos do julgado proferido no RE 600885/RS para todos os editais e regulamentos que surgiram até 31/12/2012, considerando-os válidos, não obstante a fixação de limite etário para ingresso nas Forcas Armadas tenha que se dar por lei, consoante estabelece a Constituição Federal de 1988.
Ora, ao assim entender, a Suprema Corte considerou constitucional o art. 10 da Lei n. 6880/80, que delegou aos regulamentos a fixação dos requisitos para ingresso nas Forças Armadas, no tocante ao estabelecimento de limite etário, até a data de 31/12/2012, por entender que se trata de lapso temporal suficiente para que seja publicada lei estabelecendo os requisitos para ingresso nas Forças Armadas, consoante determina a Constituição Federal.
Ao utilizar a técnica da “inconstitucionalidade progressiva”, nas hipóteses acima elencadas, o Supremo Tribunal Federal evitou a insegurança jurídica das relações constituídas durante o período em que a norma ainda não tinha sido declarada inconstitucional, bem como no lapso temporal imediatamente seguinte à declaração, mantendo, assim, a constitucionalidade das normas até que se configurasse a adequação da nova ordem constitucional à realidade vivenciada no Brasil.
3. CONCLUSÃO
Diante do exposto, pode-se concluir que a técnica da “inconstitucionalidade progressiva” constitui importante veículo de adequação da nova ordem constitucional à realidade do país, possibilitando que normas aparentemente inconstitucionais permaneçam válidas enquanto não sobrevierem as circunstâncias necessárias para concretizar seu caráter inconstitucional, e, assim, evitando que a insegurança jurídica se instale nas situações abrangidas pela norma.
4. REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1990.
SOUZA, Renée do Ó. SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Da inconstitucionalidade progressiva e sua aplicação abstrata. Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7094.
STF. Supremo Tribunal Federal. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 20 de novembro de 2013.
[1] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 954.
[2] MENDES, GILMAR FERREIRA, "Controle de Constitucionalidade", Ed. Saraiva. São Paulo: 1990, p. 21.
[3] A “inconstitucionalidade circunstancial” já foi abordada pelo STF no julgamento da ADI nº 223. Atualmente, referida inconstitucionalidade está sendo objeto da ADI nº 4.068.
[4] "Art. 5º (...)
§ 5° Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos. (Incluído pela Lei nº 7.871, de 1989)" (grifou-se)
[5] “Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e 2o), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.”
[6] “Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
[7] “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.”
Advogada da União. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduada em Direito Constitucional e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Alynne Andrade. A "inconstitucionalidade progressiva" no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 maio 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39389/a-quot-inconstitucionalidade-progressiva-quot-no-direito-brasileiro. Acesso em: 10 dez 2024.
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