RESUMO: O mandado de segurança constitui uma ação civil de rito sumário especial, previsto na Constituição Federal de 1988, com o objetivo de garantir ao cidadão provimento jurisdicional em face de ato de autoridade que viole ou ameace violar direito líquido e certo. Tendo em vista que o mandado de segurança visa à proteção de direito líquido e certo, é legitimado ativo para impetrar o writ o titular do direito violado ou em vias de sê-lo. Todavia, tal intelecção não pode ser aplicada em relação à legitimidade passiva. Isso porque a doutrina tem entendido que deve figurar no pólo passivo do mandamus a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, no caso de haver delegação de função pública, a cujo quadro funcional pertença a autoridade coatora, uma vez que esta teria praticado o ato em nome da entidade pública. Contudo, nesses casos de delegação de função, não há necessidade de citação da entidade pública, cabendo ao juiz, ao despachar a inicial, ordenar que se promova a notificação da autoridade coatora para prestar informações e que se dê ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada para que, querendo, ingresse no feito. Vê-se que, como não há previsão legal de citação da entidade pública, surge daí a necessidade de ser promovida a correta indicação da autoridade coatora, sob pena de extinção do processo sem julgamento do mérito. Assim, no intuito de salvaguardar as hipóteses de indicação errônea da autoridade coatora, evitando-se a extinção do feito, em consonância com os princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas, tem-se considerado cabível a aplicação da teoria da encampação em sede de mandado de segurança, desde que a autoridade indicada no mandamus seja hierarquicamente superior à que praticou o ato impugnado, fazendo-se mister ainda que a autoridade indicada na ação tenha defendido o próprio ato tido por ilegal ou abusivo, ingressando no mérito da ação, bem como que haja razoável dúvida quanto à autoridade coatora e que não provoque a modificação da competência.
PALAVRAS-CHAVES: Mandado de Segurança. Pólo passivo relativizado pela teoria da encampação. Princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas.
1. INTRODUÇÃO
Para se ter uma melhor compreensão sobre o presente estudo, faz-se mister, inicialmente, recordar em que consiste o mandado de segurança, bem como os seus pressupostos de cabimento.
Pois bem, o mandado de segurança constitui uma ação civil de rito sumário especial, prevista no art. 5º, LXIX[1], da Constituição Federal, como garantia fundamental destinada a afastar lesão a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, em decorrência de ato de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Segundo Hely Lopes Meirelles, o mandado de segurança pode ser compreendido como “o meio Constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerçam”[2].
Da análise do conceito acima exposto, depreende-se que o mandado de segurança é uma ação residual, ou seja, não pode ser ajuizada em qualquer circunstância, estando sujeita ao preenchimento dos seguintes pressupostos específicos de cabimento: a) existência de direito líquido e certo; b) prática de ato ilegal ou realizado com abuso de poder por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; c) prazo de até 120 dias para ajuizamento da ação, contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado; e d) o direito não pode ser amparado por habeas corpus ou habeas data.
Partindo-se do pressuposto de que o mandado de segurança visa à proteção de direito líquido e certo, tem-se que será legitimado ativo para impetrar o writ o titular do direito violado ou em vias de sê-lo.
Todavia, não se pode chegar à mesma ilação quanto à legitimidade passiva do mandamus, bem como no tocante às consequências de uma imputação equivocada do pólo passivo, o que motivou a elaboração do presente estudo.
2. DESENVOLVIMENTO
É pacífico na doutrina e na jurisprudência pátria que deve figurar no pólo passivo do Writ a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, no caso de haver delegação de função pública, a cujo quadro funcional pertença a autoridade coatora.
Embora o ato tido como ilegal ou abusivo tenha sido praticado pela autoridade coatora, esta não figurará no pólo passivo da lide, uma vez que o ato foi praticado em nome da entidade pública.
Tal entendimento, aliás, está em perfeita consonância com a intenção manifesta pelo legislador infraconstitucional. Prova disso é o fato da lei que regula o writ ter conferido legitimidade à pessoa jurídica de direito público para o oferecimento do recurso em face da sentença que conceder o mandamus, de modo que a autoridade coatora somente terá legitimidade para recorrer na hipótese remota da sentença lhe atingir diretamente.
Contudo, não obstante a legitimidade para figurar no pólo passivo do mandado de segurança seja atribuída à pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, no caso de haver delegação de função pública, não há necessidade de citação da entidade pública, cabendo ao juiz, ao despachar a inicial, consoante estabelece o art. 7º, da Lei n. 12016/2009, ordenar que se promova a notificação da autoridade coatora para prestar informações e que se dê ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada para que, querendo, ingresse no feito.
Vê-se que, como não há previsão legal de citação da entidade pública, surge daí a necessidade de ser promovida a correta indicação da autoridade coatora, sob pena de extinção do processo sem julgamento do mérito.
Ocorre que, a esse respeito, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reconhecido, em homenagem aos princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas, a possibilidade de ser aplicada a teoria da encampação para preservar o mandamus impetrado com indicação errônea da autoridade coatora.
Pela teoria da encampação, o ato de autoridade tido por ilegal ou abusivo pode ser encampado, ou seja, pode ser referendado pela autoridade superior hierárquica, de modo a permitir o prosseguimento da ação, mesmo tendo sido ajuizada em face de autoridade diversa da que praticou o ato.
Todavia, para que se possa aplicar tal teoria ao mandado de segurança, o STJ estabeleceu a necessidade de observância dos seguintes requisitos:
a) haver vínculo hierárquico entre a autoridade erroneamente apontada e aquela que efetivamente praticou o ato ilegal;
b) a extensão da legitimidade não modificar regra constitucional de competência;
c) houver razoável a dúvida quanto à legitimação passiva na impetração; e
d) a autoridade impetrada tem que ter defendido a legalidade do ato impugnado, ingressando no mérito da ação de segurança.
Vê-se que não basta o fato da autoridade indicada no Writ ter superioridade hierárquica sobre a que praticou o ato impugnado, fazendo-se mister, ainda, que a autoridade indicada na ação tenha defendido o próprio ato tido por ilegal ou abusivo, ingressando no mérito da ação, bem como que haja razoável dúvida quanto à autoridade coatora e que não provoque a modificação da competência.
Tal entendimento restou consolidado nos informativos n. 354 e 397 do E. STJ, podendo ser facilmente evidenciado pelas decisões proferidas no AgRg no REsp 1270307/MG e no RMS 30848/MT. Observe-se:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA AUTORIDADE APONTADA COMO COATORA. TEORIA DA ENCAMPAÇÃO. REQUISITOS. AUSÊNCIA DE SUPERIORIDADE HIERÁRQUICA PARA REVER O ATO. INAPLICABILIDADE.
1. Deve ser aplicada a Teoria da Encampação quando a autoridade apontada como coatora no mandado de segurança - hierarquicamente superior à autoridade efetivamente legítima para figurar no pólo passivo -, mesmo aduzindo sua ilegitimidade, defende o mérito do ato impugnado, desde que não haja modificação da competência.
2. No concernente ao requisito da subordinação hierárquica, há que se ter em mente o seguinte desdobramento: para verificação da referida teoria, a submissão deve ser aquela que permite à "autoridade superior" rever o ato do seu subordinado. Se não existe tal competência, não se pode falar em encampação.
3. In casu, o que se observa é mera subordinação administrativa, isto é, o Superintendente apenas tem o "poder" de coordenar e gerenciar os processos de trabalho no âmbito da região fiscal. Como bem colocado no acórdão recorrido, não tem ele competência para interferir nas atividades de lançamento, donde se conclui não configurada a subordinação hierárquica como exigido.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1270307/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/03/2014, DJe 07/04/2014)
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. ICMS. TRANSFERÊNCIA DE BENS DO ATIVO IMOBILIZADO. MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA O SECRETÁRIO DA FAZENDA DO ESTADO DO MATO GROSSO PARA QUE SE ABSTENHA DE COBRAR ICMS. ILEGITIMIDADE PASSIVA. EXTINÇÃO DO FEITO. (...)
3. Também não cabe invocar a Teoria da Encampação. A Primeira Seção, ao apreciar o MS nº 10.484/DF, em 24.08.05, traçou os requisitos mínimos para a sua aplicação. Ficou esclarecido, na oportunidade, que a tese somente incide se: (a) houver vínculo hierárquico entre a autoridade erroneamente apontada e aquela que efetivamente praticou
o ato ilegal; (b) a extensão da legitimidade não modificar regra constitucional de competência; (c) for razoável a dúvida quanto à legitimação passiva na impetração; e (d) houver a autoridade impetrada defendido a legalidade do ato impugnado, ingressando no mérito da ação de segurança. (...)
6. Assim, mostram-se ausentes dois dos requisitos necessários à aplicação válida da Teoria da Encampação: (a) inexistência de modificação de regra constitucional de competência e (b) dúvida razoável quanto à legitimação passiva na impetração. Desse modo, deve ser acolhida a preliminar de ilegitimidade passiva da autoridade coatora.
7. Recurso ordinário não provido. (STJ, RMS n. 30848/MT, Relator Min. Castro Meira, DJe 11/06/2010)
Depreende-se, dos julgados supratranscritos, que a teoria da encampação, por representar manifesta economia processual, vem sendo aceita no direito brasileiro, embora condicionada ao preenchimento de alguns requisitos, possibilitando a manutenção do mandamus já em curso, mesmo tendo havido indicação errônea da autoridade coatora.
3. CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que, em consonância com os princípios da economia processual e da instrumentalidade das formas, é perfeitamente cabível a aplicação da teoria da encampação em sede de mandado de segurança, como bem sinaliza o Superior Tribunal de Justiça, desde que a autoridade indicada no mandamus seja hierarquicamente superior à que praticou o ato impugnado, fazendo-se mister ainda que a autoridade indicada na ação tenha defendido o próprio ato tido por ilegal ou abusivo, ingressando no mérito da ação, bem como que haja razoável dúvida quanto à autoridade coatora e que não provoque a modificação da competência.
4. REFERÊNCIAS
BUENO, Cássio Scarpinella. “Mandado de Segurança: Comentários às Leis n. 1.533/51, 4.348/64 e 5.021/66”. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo,
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
LOPES, Mauro Luís Rocha. Mandado de Segurança. Niterói: Ímpetus, 2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. “Mandado de Segurança: Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, "Habeas Data", Ação Direta de Constitucionalidade, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, O Controle Incidental de Normas no Direito Brasileiro”. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
TAVARES, André Ramos. Manual do Novo Mandado de Segurança. São Paulo: Atlas, 2009.
STJ. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em www.stj.jus.br.
Acesso em 07 de maio de 2014.
[1] LXIX – “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por ‘habeas corpus’ ou ‘habeas data’, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público.”
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data. 18º. Edição, São Paulo: Malheiros. 1997, p. 21.
Advogada da União. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduada em Direito Constitucional e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Alynne Andrade. A possibilidade de utilização da teoria da encampação em sede de mandado de segurança Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39487/a-possibilidade-de-utilizacao-da-teoria-da-encampacao-em-sede-de-mandado-de-seguranca. Acesso em: 10 dez 2024.
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