RESUMO: O presente artigo trata do direito ao esquecimento, analisando o tema à luz do Estado Democrático de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade de informação, discorrendo sobre a necessidade de ponderação entre a liberdade de expressão/informação e a privacidade, a honra e a intimidade.
1. DO DIREITO à informação
Com o advento da Constituição da República de 1988 foi introduzida uma nova ordem constitucional, pautada no Estado Democrático de Direito.
Neste contexto, o direito à informação constitui valor fundamental, tendo em vista que decorre diretamente da liberdade de expressão.
O direito à informação foi assegurado de forma expressa pela Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, inciso XIV.
No que tange à liberdade de informação jornalística, o artigo 220, “caput”, in verbis:
Art. 220 - A manifestac?a?o do pensamento, a criac?a?o, a expressa?o e a informac?a?o, sob qualquer forma, processo ou vei?culo na?o sofrera?o qualquer restric?a?o, observado o disposto nesta Constituic?a?o.
Desta forma, o direito de auferir, transmitir e buscar informac?o?es não pode restringido ou embaraçado, exceto no que tange a mate?ria sigilosa constante no artigo 5º, inciso XXXIII, in fine, da Constituição da República.
2. DA privacidade, DA honra e DA intimidade
No ordenamento jurídico pátrio os direitos fundamentais à privacidade, à honra e à intimidade foram garantidos de forma expressa no artigo 5º, inciso X, da Constituição da República de 1988, in verbis:
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
Desta forma, por expressa disposição constitucional, os indivíduos possuem direito público subjetivo de evitar que sua vida privada seja exposta.
Ao discorrer sobre a norma insculpida no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal, BASTOS[1] afirma que tal disposição:
“oferece guarida ao direito à reserva da intimidade assim como ao da vida privada. Consiste ainda na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhe o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano”.
E, como leciona COSTA JUNIOR[2], o direito à intimidade:
“é o direito que dispõe o indivíduo de não ser arrastado para a ribalta contra a vontade. De subtrair-se á publicidade e de permanecer recolhido em sua intimidade. Direito ao recato, portanto, não é o direito de ser recatado, mas o direito de manter-se afastado dessa esfera de reserva de olhos e ouvidos indiscretos, bem como o direito de impedir a divulgação de palavras, escritos e atos realizados nessa esfera de intimidade.”
Em síntese, no Brasil todos os indivíduos têm assegurado constitucionalmente os direitos à privacidade, à honra e à intimidade, sendo, pois, vedada aos demais a prática de qualquer conduta ofensiva a tais direitos, inclusive a divulgação de informações.
3. DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
O direito ao esquecimento, também denominado direito de estar só ou direito de ser deixado em paz, conforme leciona CAVALCANTE[3], “é o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos”.
No ordenamento jurídico pátrio o direito ao esquecimento possui a proteção de direito da personalidade, decorrente do direito à privacidade, à intimidade e à honra. Segundo leciona GRECO[4]:
“Não somente a divulgação de fatos inéditos pode atingir o direito de intimidade das pessoas. Muitas vezes, mesmo os fatos já conhecidos publicamente, se reiteradamente divulgados, ou se voltarem a ser divulgados, relembrando acontecimentos passados, podem ferir o direito à intimidade. Fala-se, nesses casos, no chamado direito ao esquecimento.”
O direito ao esquecimento constitui corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, durante a VI Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado n. 531, que reconheceu o direito ao esquecimento como uma das formas de expressão do princípio da dignidade da pessoa humana na sociedade de informação.
No direito comparado, o direito ao esquecimento ganhou notoriedade no julgamento, pelo Tribunal Constitucional Alemão, do “caso Lebach”.
Em tal caso, quando da libertação de um dos responsáveis pelo crime, que já havia cumprido pena, uma emissora de televisão alemã pretendia exibir um documentário relembrando o ato criminoso. Analisando o pedido formulado em ação inibitória, o Tribunal Constitucional Alemão proibiu a exibição do documentário, por entender que, não havendo mais interesse atual na informação, tendo em vista que o crime havia ocorrido há muito tempo, e ante os prejuízos que a divulgação causaria ao autor da ação, o princípio da proteção da personalidade deveria preponderar sobre a liberdade de informação.
No ordenamento jurídico pátrio, a divulgação de informações relativas a fatos ocorridos há longa data, vinculando-os à imagem dos envolvidos à época, ao mesmo tempo em que encontra amparo na liberdade de informação, também encontra vedação nos direitos à privacidade, à honra e à intimidade.
Para resolver tal conflito de forma efetiva deve-se considerar que o ordenamento jurídico é uma “unidade sistemática”[5], aplicando-se o juízo de ponderação de modo a buscar a conjugação de ambas as normas aparentemente excludentes, sua convivência harmônica no mundo dos fatos. Ou seja, deve ser aplicada a técnica da ponderação, preservando-se o máximo possível do conteúdo de cada norma. Eis o Enunciado n. 274 da IV Jornada de Direito Civil:
“Os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação.”
Acerca do juízo de ponderação, assevera BARROSO[6]:
“A colisão de princípios constitucionais ou de direitos fundamentais não se resolve mediante o emprego dos critérios tradicionais de solução de conflitos de normas, como o hierárquico, o temporal e o da especialização. Em tais hipóteses, o intérprete constitucional precisará socorrer-se da técnica de ponderação de normas, valores ou interesses, por via da qual deverá fazer concessões recíprocas entre as pretensões em disputa, preservando o máximo possível do conteúdo de cada uma. Em situações extremas, precisará escolher qual direito irá prevalecer e qual será circunstancialmente sacrificado, devendo fundamentar racionalmente a adequação constitucional de sua decisão.”
Desta forma, o juízo ponderação deve ser realizado no caso concreto, mediante uma interpretação que preserve, ao máximo, a convivência harmônica dos princípios e direitos fundamentais aparentemente conflitantes.
Em consequência, nos casos em que há aparente conflito entre o direito à informação e os direitos à privacidade, à honra e à intimidade, deve-se buscar a conjugação de tais normas, no sentido de dar publicidade às informações em torno das quais haja interesse público atual, preservando os dados íntimos e a informações que já tenham deixado de atrair notoriedade. Eis a lição de MENDES:
“Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária.” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374)
Neste contexto, no ano de 2013 o Superior Tribunal de Justiça proferiu duas importantes decisões acerca do direito ao esquecimento.
No julgamento do REsp 1.334.097, o Superior Tribunal de Justiça condenou uma emissora de televisão ao pagamento de compensação por danos morais em razão da violação ao direito ao esquecimento. No caso, a emissora exibiu, treze anos depois do fato, um programa televisivo no qual veiculou o nome e a imagem de um dos acusados pela “Chacina da Candelária”, que já havia sido absolvido.
Para o Superior Tribunal de Justiça, o programa poderia ter sido exibido sem a menção à pessoa já absolvida, reconhecendo seu direito a ser deixada em paz. Vejamos os seguintes trechos da ementa:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA. SEQUÊNCIA DE HOMICÍDIOS CONHECIDA COMO CHACINA DA CANDELÁRIA. REPORTAGEM QUE REACENDE O TEMA TREZE ANOS DEPOIS DO FATO. VEICULAÇÃO INCONSENTIDA DE NOME E IMAGEM DE INDICIADO NOS CRIMES. ABSOLVIÇÃO POSTERIOR POR NEGATIVA DE AUTORIA. DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS CONDENADOS QUE CUMPRIRAM PENA E DOS ABSOLVIDOS. ACOLHIMENTO. DECORRÊNCIA DA PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DAS LIMITAÇÕES POSITIVADAS À ATIVIDADE INFORMATIVA. PRESUNÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DE RESSOCIALIZAÇÃO DA PESSOA. PONDERAÇÃO DE VALORES. PRECEDENTES DE DIREITO COMPARADO.
(…)
2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, que reabriu antigas feridas já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança da sociedade quanto à sua índole. O autor busca a proclamação do seu direito ao esquecimento, um direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado.
3. No caso, o julgamento restringe-se a analisar a adequação do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações.
(…)
5. Há um estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do qual nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode descurar - nem o povo, nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática.
(…)
7. Assim, a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores.
8. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o fato de que, a despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11, 20 e 21 do Código Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria da dignidade da pessoa humana, segundo a qual o ser humano tem um valor em si que supera o das "coisas humanas".
9. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada época. Todavia, a historicidade da notícia jornalística, em se tratando de jornalismo policial, há de ser vista com cautela. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos; mas também há crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos, obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do "bandido" vs. "cidadão de bem".
10. É que a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada à custa de vários desvios de legalidade, por isso não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo - a pretexto da historicidade do fato - pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos, o reconhecimento do "direito ao esquecimento" pode significar um corretivo - tardio, mas possível - das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia.
(…)
12. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, é imperiosa a aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com base não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente do direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. Precedentes de direito comparado.
(…)
16. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória - que é a conexão do presente com o passado - e a esperança - que é o vínculo do futuro com o presente -, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
17. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos - historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.
18. No caso concreto, a despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado - com muita razão - um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede nacional. Nem a liberdade de imprensa seria tolhida, nem a honra do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.
19. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado. No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma reconhecida "vergonha" nacional à parte.
(…)
21. Recurso especial não provido.
(REsp 1334097/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013)
Enquanto isso, no segundo julgamento, relativo ao caso “Aída Curi” (REsp 1.335.153), o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não havia sido violado o direito ao esquecimento, tendo em vista que se tratava de fato histórico, de interesse público, que não poderia ser contado sem se mencionar o nome da vítima. Vejamos a ementa do acórdão:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA. HOMICÍDIO DE REPERCUSSÃO NACIONAL OCORRIDO NO ANO DE 1958. CASO "AIDA CURI". VEICULAÇÃO, MEIO SÉCULO DEPOIS DO FATO, DO NOME E IMAGEM DA VÍTIMA. NÃO CONSENTIMENTO DOS FAMILIARES. DIREITO AO ESQUECIMENTO. ACOLHIMENTO. NÃO APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO. RECONHECIMENTO DA HISTORICIDADE DO FATO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESVINCULAÇÃO DO NOME DA VÍTIMA. ADEMAIS, INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE IMAGEM. SÚMULA N. 403/STJ. NÃO INCIDÊNCIA.
1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o entendimento dos autores, reabriu antigas feridas já superadas quanto à morte de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958.
Buscam a proclamação do seu direito ao esquecimento, de não ter revivida, contra a vontade deles, a dor antes experimentada por ocasião da morte de Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas passadas.
3. Assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime (REsp. n. 1.334/097/RJ), as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento - se assim desejarem -, direito esse consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana solução de reconhecer esse direito ao ofensor (que está relacionado com sua ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos, permitindo que os canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas pelas quais passaram.
4. Não obstante isso, assim como o direito ao esquecimento do ofensor - condenado e já penalizado - deve ser ponderado pela questão da historicidade do fato narrado, assim também o direito dos ofendidos deve observar esse mesmo parâmetro. Em um crime de repercussão nacional, a vítima - por torpeza do destino - frequentemente se torna elemento indissociável do delito, circunstância que, na generalidade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se pretenda omitir a figura do ofendido.
5. Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi.
6. É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca de como o crime tornou-se histórico, podendo o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada exploração midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso só porque o primeiro já ocorrera. Porém, no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos.
7. Não fosse por isso, o reconhecimento, em tese, de um direito de esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar. Em matéria de responsabilidade civil, a violação de direitos encontra-se na seara da ilicitude, cuja existência não dispensa também a ocorrência de dano, com nexo causal, para chegar-se, finalmente, ao dever de indenizar. No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um "direito ao esquecimento", na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes.
8. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança.
9. Por outro lado, mostra-se inaplicável, no caso concreto, a Súmula n. 403/STJ. As instâncias ordinárias reconheceram que a imagem da falecida não foi utilizada de forma degradante ou desrespeitosa. Ademais, segundo a moldura fática traçada nas instâncias ordinárias - assim também ao que alegam os próprios recorrentes -, não se vislumbra o uso comercial indevido da imagem da falecida, com os contornos que tem dado a jurisprudência para franquear a via da indenização.
10. Recurso especial não provido.
(REsp 1335153/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013)
Resta certo, pois, que a interpretação sistemática e o juízo de ponderação levam à conclusão de que os indivíduos devem ter assegurado o direito ao esquecimento, como corolário da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais à privacidade, à intimidade e à honra.
Devem ser ressalvados, contudo, os fatos genuinamente históricos, cujo interesse público permaneça mesmo com o decorrer do tempo, desde que a narrativa não tenha como ser desvinculada dos envolvidos.
4. CONCLUSão
Por todo o exposto, podem ser extraídas as seguintes conclusões:
a) A Constituição da República de 1988, expressão legítima da vontade do povo brasileiro, introduziu uma nova ordem constitucional, pautada no Estado Democrático de Direito.
b) O direito à informação foi assegurado de forma expressa pela Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, inciso XIV. O direito à liberdade de informação jornalística foi previsto no artigo 220, “caput”.
c) No ordenamento jurídico pátrio, a divulgação de informações relativas a fatos ocorridos há longa data, vinculando-os á imagem dos envolvidos à época, ao mesmo tempo em que encontra amparo na liberdade de informação, também encontra vedação nos direitos à privacidade, à honra e à intimidade.
d) Para que tal conflito seja resolvido de forma efetiva, deve-se considerar que o ordenamento jurídico é uma “unidade sistemática”[7], e aplicar-se o juízo de ponderação, de modo a buscar a conjugação de ambas as normas aparentemente excludentes, sua convivência harmônica no mundo dos fatos.
e) Neste sentido, a interpretação sistemática e o juízo de ponderação levam à conclusão de que os indivíduos devem ter assegurado o direito ao esquecimento, como corolário da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais à privacidade, à intimidade e à honra. Devem ser ressalvados, contudo, os fatos genuinamente históricos, cujo interesse público permaneça mesmo com o decorrer do tempo, desde que a narrativa não tenha como ser desvinculada dos envolvidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista Jurídica da FIC. Fortaleza, v. 3, abr. 2004/out. 2004.
BASTOS, Celso Ribeiro. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A Constituição na Visão dos Tribunais – Interpretação e Julgados- Artigo por Artigo. vol. I. Brasília: Editora Saraiva, 1997.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasilia: UNB, 1996.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp 1334097/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. Julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. REsp 1335153/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. Julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e do STJ comentados. Manaus: Dizer o Direito, 2014.
COSTA JUNIOR, Paulo José. Agressões à intimidade. São Paulo: Malheiros, 1997.
DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.
GRECO, Rogério. Principiologia penal e garantia constitucional à intimidade. in Temas Atuais do Ministério Público. 4 ed. Salvador: Jus Podvm, 2013.
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NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional para concursos. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
[1] BASTOS, Celso Ribeiro. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A Constituição na Visão dos Tribunais – Interpretação e Julgados- Artigo por Artigo. vol. I. Brasília: Editora Saraiva, 1997. p. 30.
[2] COSTA JUNIOR, Paulo José. Agressões à intimidade. São Paulo: Malheiros, 1997, p, 33.
[3] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e do STJ comentados. Manaus: Dizer o Direito, 2014, p. 198.
[4] GRECO, Rogério. Principiologia penal e garantia constitucional à intimidade. in Temas Atuais do Ministério Público. 4 ed. Salvador: Jus Podvm, 2013, p. 761.
[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, UNB, 1996, p. 73.
[6] BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista Jurídica da FIC. Fortaleza, v. 3, abr. 2004/out. 2004, p. 9-44.
[7] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, UNB, 1996, p. 73.
Procurador do Estado. Especialista em Direito Público.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Vinicius Magno Duarte. O direito ao esquecimento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40265/o-direito-ao-esquecimento. Acesso em: 09 dez 2024.
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