RESUMO: O presente trabalho tem por abordagem principal a análise da aplicação da imunidade tributária recíproca em face das empresas públicas e sociedades de economia mista sob a ótica do Supremo Tribunal Federal. Para tanto, busca-se uma pormenorizada investigação do instituto, seus fundamentos constitucionais, bem como as classificações e a conceituação, expressadas pela doutrina especializada. Diferenciando os vários institutos que ensejam o não pagamento de tributo, quais sejam, a imunidade, isenção, a não-incidência e a alíquota zero, analisamos cada uma delas para distingui-las sob o ponto de vista dogmático para, enfim, abordar a imunidade recíproca em si, especialmente no que se refere a aplicação ou não em benefício de empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, bem como o seu eventual conflito com o princípio da livre concorrência e da liberdade de iniciativa, tudo sob uma ótica eminentemente prática, através da análise detalhada dos precedentes do guardião máximo da Constituição Federal.
Palavras-chave: Imunidade tributária. Imunidade tributária recíproca. Empresas públicas e sociedades e economia mista.
A ideia da construção de um Estado enquanto ente soberano e capaz de imprimir sua vontade em face dos particulares foi um passo significativo para o desenvolvimento do ser humano, tornando-se, hoje, uma instituição indispensável ao modelo de sociedade na qual vivemos.
Através do Estado obtivemos os meios necessários para que o homem deixasse de viver em uma condição de absoluta selvageria, em guerra constante, para, enfim, se unir em sociedade, abdicando de parte de sua liberdade em prol de um “guarda noturno” invisível capaz de garantir o mínimo de segurança a todos. Nestes termos, Hugo de Brito Machado (2012, p. 23) nos ensina:
[...] para viver em sociedade, necessitou o homem de uma entidade com força superior, bastante para fazer as regras de conduta, para construir o direito positivo. Dessa necessidade nasceu o Estado, cuja noção se pressupõe conhecida de quantos iniciam o estudo do direito tributário.
Assim, o que o homem fez, ao organizar-se em coletividades, foi abdicar de parte de sua liberdade por meio de uma espécie de pacto social para obter um pouco mais de segurança, pois esta sempre foi uma condição imprescindível para o seu pleno desenvolvimento. (Araújo, 2014)
É essa a linha geral que seguem os contratualistas, Thomas Hobbes, John Lock e Jean-Jacques Rousseau, que explicam o surgimento da sociedade civil, ainda que com consideráveis diferenças em suas premissas, a partir de um contrato social celebrado entre os indivíduos, que renunciaram parte de sua liberdade a fim de que uma entidade dotada de autoridade suficiente possa impor sua vontade a todos. (Araújo, 2014)
Nesta toada, Cristiano Carvalho (2013, p. 137) sobre as funções do Estado assim se manifesta:
[...] [O Estado] terá a função de proteger e garantir a liberdade dos mesmos indivíduos que abdicaram de parcela dela ao pactuarem o contrato social. Por paradoxal que possa parecer, é a renúncia parcial da liberdade que possibilita a manutenção dessa mesma liberdade, pelo monopólio estatal do uso da violência, por exemplo, a segurança contra violência interna (polícia), contra violência externa (forças armadas) e árbitros para dirimir conflitos de interesses entre os indivíduos (juízes).
Para executar as suas funções e para a própria manutenção de todo o seu aparelhamento, o Estado demanda uma quantidade vultosa de recursos. Pagar os seus agentes; fornecer serviços públicos para a população como saúde, educação, segurança, assistência social, previdência; custeamento das forças armadas, execução de obras públicas; manutenção da estrutura estatal dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são alguns dos vários gastos que Estado possui. (Araújo, 2014)
Em vista disso, conforme nos ensina Renato Lopes Becho (2014, p. 27), “é necessário que o Estado tenha um sistema de finanças públicas para realizar e suportar os dispêndios, em moeda, para sua manutenção e do seu povo.”
Todavia, não são muitas as forma que o Poder Público detém para capitalizar-se. Muito pelo contrário, os meios de financiamento do Estado utilizados ao longo de toda a história da humanidade resumem-se a apenas cinco: 1) realizar extorsões sobre outros povos ou deles receber doações voluntárias; 2) recolher as rendas produzidas pelo desenvolvimento de seu próprio capital, através de seus bens e empresas; 3) exigir coativamente tributos ou penalidades; 4) tomar ou forçar empréstimos; 5) emitir dinheiro metálico ou de papel. (Araújo, 2014)
Ainda assim, atualmente, não são mais todas essas fontes utilizadas, segundo leciona Renato Lopes Becho (2014, p. 27), que assim afirma:
[...] há algumas possibilidades para arrecadar dinheiro aos cofres públicos: exploração do patrimônio estatal [2], arrecadação de tributos [3] e mecanismos financeiros [4 e 5], por exemplo. O Estado recebe quando explora seu patrimônio, produzindo e extraindo bens que são vendidos em troca de moeda. Arrecada tributos quando exige das pessoas que estão sujeitas a seu império a entrega de parte de suas riquezas a ele, Estado. O Poder Público vale-se de mecanismos financeiros, v.g., quando produz a própria moeda, quando toma empréstimos, quando aplica no mercado financeiro ou quando emite títulos.
Neste diapasão, dentre essas opções que os governos soberanos possuem de arrecadação, destaca Hugo de Brito Machado (2012, p.24):
A tributação é, sem sombra de dúvidas, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar os seus fins sociais a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez única arma contra a estatização da economia.
Podemos, assim, concluir da mesma forma que Machado (2012, p. 23-24), de que:
[...] qualquer que seja a concepção de Estado que se venha a adotar, é inegável que ele desenvolve atividade financeira. Para alcançar seus objetivos precisa de recursos financeiros e desenvolve atividade para obter, gerir e aplicar recursos. Isto não significa que não possa atuar no campo econômico. E atua, com maior ou menor intensidade, ora explorando o patrimônio seu, com o fim de lucrar, ora intervindo no setor privado da economia, na defesa da coletividade. De qualquer forma, pelo menos em princípio, o Estado não prescinde de recursos financeiros que arrecada do setor privado, no exercício de sua soberania.
Portanto, é possível afirmarmos que, sem tributos, não há viabilidade de existência para qualquer tipo de Estado que seja. Os dois institutos estão intimamente ligados. A existência de um, implica necessariamente na existência do outro. É o que destaca Leandro Paulsen (2013, p 15), ao assim afirmar:
A tributação é inerente ao Estado, seja totalitário ou democrático. Independentemente de o Estado servir de instrumento da sociedade ou servir-se dela, a busca de recursos privados para a manutenção do Estado é uma constante na história.
Em razão da importância que a tributação assume como principal fonte de custeio para os serviços públicos, o direito positivo dos atuais regimes democráticos têm uma enorme preocupação em estabelecer limites a essa prerrogativa estatal de exigir coativamente do contribuinte prestações pecuniárias. (Araújo, 2014)
A avidez por recursos do Poder Público é ilimitada e se apresenta como uma ameaça à livre iniciativa e às liberdades individuais, caso não seja restringida. “Por isso, as normas jurídicas que têm por objeto os tributos despontam em importância no quadro das normas de direito público.” (Becho, 2014, p. 27)
O Legislador Constituinte de 1988, prolixo como foi ao longo de todo o texto constitucional, seja a matéria que fosse, deu tratamento especial à Ordem Tributária, separando um título inteiro da Constituição Federal (Título VI) só para o disciplinamento da matéria “tributação e orçamento”, fixando assim as balizas constitucionais do Sistema Tributário Nacional nos arts. 145 a 162.
Nessa esteira, foram estabelecidas as imunidades constitucionais, verdadeiros limites constitucionais no exercício do poder constitucional de tributar, tema sobre o qual o presente trabalho pretende se debruçar, mais especificamente no que tange àquela fixada no art. 150, VI, alínea “a”, da Constituição Federal, mais conhecida como imunidade recíproca ou mútua, a qual se classifica como uma imunidade ontológica, pois veda a imposição de tributos sobre o patrimônio, renda e serviços de um ente político sobre o outro em decorrência lógica do próprio conteúdo e essência do pacto federativo.
Assim, em um primeiro momento, enfrentaremos o tema a respeito da imunidade tributária, sob uma abordagem mais genérica, analisando os conceitos trazidos pela doutrina brasileira, as suas espécies fixadas pela Constituição, sua relação com as normas de competência tributária, bem como os preceitos interpretativos que norteiam a sua aplicação.
Ademais, será destacada a classificação doutrinária a respeito das várias espécies de imunidade tributária, sempre destacando em qual se insere a imunidade intergovernamental recíproca, principal objeto de estudo deste trabalho monográfico.
Mais adiante, se passará a abordar a imunidade tributária recíproca em si, momento no qual será abordado a sua origem histórica e o seu fundamento principiológico, notadamente o princípio federativo, o da isonomia entre os entes estatais e a capacidade contributiva.
Em seguida, abordaremos o verdadeiro alcance da imunidade intergovernamental recíproca, tanto no que tange à expressão “patrimônio, renda e serviços”, como no aspecto das espécies tributárias.
Por derradeiro, faremos uma análise pormenorizada a respeito da aplicação da imunidade tributária recíproca em face das empresas públicas e sociedades de economia mista, as opiniões a respeito do tema, bem como os limites e condições para a sua aplicação na visão do Supremo Tribunal Federal, o que se fará através da análise de quatro casos concretos já enfrentados pelo tribunal, quais sejam, o caso da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO), da Casa da moeda (CMB) e o caso da Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP).
O Estado precisa realizar uma série de despesas para a manutenção de toda a sua estrutura, bem como para o cumprimento dos objetivos para o qual foi criado, especialmente quando falamos do modelo de Estado tal qual configurado pelo constituinte de 1988, onde o Poder Público avocou para si uma relação enorme de deveres a serem cumpridos e de serviços públicos a serem prestados em benefício dos cidadãos.
Sendo assim, para realizar todos os mandamentos constitucionais contidos no Texto Maior, fazendo com que sejam efetivados os direitos fundamentais nele assegurados e cumprindo o seu desiderato maior, que é a satisfação do interesse público, o Estado necessita angariar uma monta significativa de recursos econômicos, o que faz especialmente através da tributação.
É exatamente por isso que a legislação tributária ganha grande importância no ordenamento jurídico brasileiro, pois, sendo a tributação a principal fonte de receita estatal, ao mesmo tempo em que é uma atividade extremamente invasiva, que suprime o patrimônio privado dos contribuintes, preocupou-se, pois, o constituinte em estabelecer balizas bem estruturadas de limitação ao poder constitucional de tributar.
É nesse contexto que a Constituição apresenta toda uma seção (Seção II, do Capítulo I, do Título VI) referente às normas destinadas à limitação do poder de tributar do Estado. Não obstante referida seção, que vai do artigo 150 ao 152 da CF, outros dispositivos limitadores surgem ao longo do texto constitucional, seja de forma explícita ou implícita, além dos princípios constitucionais tributários, tais como legalidade, anualidade, igualdade, uniformidade e irretroatividade.
Se o rol de imunidades mais famoso está no citado artigo, é importante ressaltar, neste momento, que ele não é exaustivo, tão pouco se pode afirmar, conforme já defendeu parte da doutrina (Machado, 2011, p. 286), que a imunidade é figura restrita a espécie tributária impostos.
Renato Lopes Becho (2014, p. 485), por exemplo, em seu livro Lições de Direito Tributário, elenca algumas das normas imunizantes fora do art. 150 e que não se referem a impostos, são elas:
1) art. 5º, XXXIV, a e b: direito de petição, obtenção de certidão etc.
2) art. 5º, LXXIII: ação popular isenta de custas.
3) art. 5º, LXXIV: assistência judiciária gratuita.
4) art. 5º, LXXVI, a e b: certidão de nascimento e óbito para os pobres.
5) art. 5º, LXXVII: habeas corpus e habeas data
6) art. 203, caput: assistência social independente de contribuição
7) art. 208, I: ensino fundamental obrigatório e gratuito.
8) art. 226, §1º: gratuidade da celebração do casamento.
9) art. 230, §2º: gratuidade no transporte coletivo aos maiores de 65 anos.
As razões para a instituição de imunidades são as mais diversas possíveis, mas todas elas visam, em última análise, promover algum valor constitucionalmente consagrado, podendo ser o desenvolvimento nacional através das exportações, a difusão do conhecimento, dentre várias outras logo mais analisadas quando da classificação das imunidades.
Neste contexto, salutar são os ensinamentos de Luciano Amaro (2012, p. 240), em seu curso de direito tributário, a respeito dos fundamentos das normas imunizantes:
O fundamento das imunidades é a preservação de valores que a Constituição reputa relevantes (a atuação de certas entidades, a liberdade religiosa, o acesso à informação, a liberdade de expressão etc.), que faz com que se ignore a eventual (ou efetiva) capacidade econômica revelada pela pessoa (ou revelada situação), proclamando-se, independentemente da existência dessa capacidade, a não tributabilidade das pessoas ou situações imunes.
Isto posto, faz-se necessária uma incursão no conceito de imunidade tributária, definindo os métodos de interpretação aplicados às normas imunizantes, além de distingui-la da isenção, da não-incidência e da alíquota zero. Em seguida, passa-se ao estudo das imunidades genéricas previstas no artigo 150, VI, da CF, ressaltando os valores constitucionalmente protegidos em tais normas.
Conforme já aventado, a competência tributária e os limites para o seu exercício é claramente uma matéria de ordem constitucional. Na Constituição Federal, por exemplo, traz-se ao longo de seu texto a competência da União, Estados e Municípios para instituir impostos, taxas e contribuição de melhoria, consoante art. 145, da mesma forma as imunidades estão espalhadas pelos mais diversos dispositivos da Carta Magna, sendo o mais famoso deles aquele que trata dos impostos, no art. 150, VI.
Desta feita, a noção de imunidade tributária passa diretamente pelo conceito de competência tributária. É que, ao mesmo tempo em que a Constituição outorga a prerrogativa a determinado ente para instituir algum tributo, ela também aponta situações em que ela de forma alguma poderá ser exercida, ou seja, ela define casos em que se fica vedada a incidência tributária, limitando a competência que ela mesma atribui.
Nesse sentido, Ricardo Alexandre (2015, p 319) ensina que as imunidades são limitações ao poder de tributar consistentes na delimitação da competência tributária constitucionalmente conferida aos entes políticos.
Da mesma forma, leciona Hugo de Brito Machado (2011, p 285) sobre a imunidade nos seguintes termos:
Imunidade é o obstáculo decorrente de regra da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação. A imunidade impede que a lei defina com hipóteses de incidência tributária aquilo que é imune. É limitação da competência tributária.
Já Roque Carrazza (2010, p 752) explica a imunidade a partir do ponto de vista de que ela se trata de uma incompetência constitucionalmente qualificada para tributar:
Sempre que a Constituição estabelecer uma imunidade, está, em última análise, indicando a incompetência das pessoas políticas para legislarem acerca daquele fato determinado. Impõe-lhes, de conseguinte, o dever de se absterem de tributar, sob pena de irremissível inconstitucionalidade.
Sabbag (2013, p. 287), por sua vez, defende que a imunidade para tributos representa uma delimitação negativa de competência tributária. Para o autor, o legislador constituinte adotou a técnica de traçar, de modo cuidadoso, as áreas que refutam a incidência das exações tributárias, levando-se em consideração nosso sistema rígido de distribuição de competências impositivas.
Importante destacar, por outro lado, conforme o faz Hugo de Brito Machado (2011, p 286), que há quem diga que a imunidade não é propriamente uma limitação a competência de tributar, tendo em vista que, para que tal ocorresse, teria que ser posterior à outorga. Ou seja, se toda atribuição de competência importa uma limitação, e se a regra que imuniza participa da demarcação da competência tributária, resulta evidente que a imunidade é uma delimitação dessa competência.
Luciano Amaro (2012, p. 240), por exemplo, é um desses autores que defende ser a imunidade não uma limitação ao poder de tributar, mas a sua própria delimitação, o que faz nas seguintes palavras:
Tradicionalmente estudada como uma “limitação do poder tributar”, no sentido de “supressão”, “proibição” ou “vedação” do poder de tributar, a imunidade [...] configura uma simples técnica legislativa por meio da qual o constituinte exclui do campo tributável determinadas situações sobre as quais ele não quer que incida este ou aquele gravame fiscal, cuja instituição é autorizada, em regra, sobre o gênero de situações pelo qual aquelas estariam compreendidas.
Não se trata de uma amputação ou supressão do poder de tributar, pela boa razão de que, nas situações imunes não existe (nem preexiste) poder de tributar.
Paulo de Barros Carvalho (2004, p. 172) também segue a mesma linha e defende que “a imunidade não exclui nem suprime competências tributárias, uma vez que estas representam o resultado de uma conjunção de normas constitucionais, entre elas, as de imunidade tributária.”
Na mesma linha ainda as brilhantes lições do consagrado Aliomar Baleeiro (2005, p. 228) que assim conceitua a imunidade:
[...] é regra constitucional expressa (ou implicitamente necessária), que estabelece a não-competência das pessoas políticas da federação para tributar certos fatos e situações, de forma amplamente determinada, delimitando negativamente, por meio de redução parcial, a norma de atribuição de poder tributário. A imunidade é, portanto, regra de exceção e de delimitação de competência, que atua, não de forma sucessiva no tempo, mas concomitantemente. A redução que opera no âmbito de abrangência da norma concessiva de poder tributário é tão só lógica, mas não temporal.
É que a Constituição Federal, ao partilhar o poder tributário entre as pessoas estatais que integram a Federação, se utiliza da técnica de atribuição e de denegação (ou supressão parcial). De um lado, encontramos atribuições de poder para instituir tributo, concedidas em caráter positivo (arts. 145, 148, 149, 1453 e 156) e normas que reduzem, diminuem, suprimem parcialmente a abrangência das primeiras, realizando a enformação ou a modelagem da competência, constitucionalmente delimitada. A imunidade é, portanto, regra de exceção, somente inteligível se conjugada à outra, que concede o poder tributário, limitando-lhe a extensão, de forma lógica e não sucessiva no tempo.
De toda forma, é bom ficarmos aqui com a conclusão que chega Hugo de Brito Machado ao refletir sobre o tema (2011, p. 286):
O importante é notar que a regra da imunidade estabelece exceção. A constituição define o âmbito do tributo, vale dizer, o campo dentro do qual pode o legislador definir a hipótese de incidência da regra de tributação. A regra de imunidade retira desse âmbito uma parcela, que torna imune. Opera a regra imunizante, relativamente ao desenho constitucional do âmbito do tributo, da mesma forma que opera a regra de isenção relativamente à definição da hipótese de incidência tributária.
Em suma, a imunidade tributária é norma constitucional delimitadora da competência tributária que faz impedir a incidência da norma tributante e o surgimento da obrigação tributária em determinadas situações ou em relação a certas pessoas. Trata-se, portanto, de hipóteses constitucionalmente qualificadas de não incidência tributária, que acaba por conferir aos detentores de tal benefício o direito público subjetivo de não ser tributado nas hipóteses previstas.
2.2 A interpretação das normas imunizantes
Conforme ensina Hugo de Britto Machado (2011, p. 102), a palavra “interpretação” tem vários significados. Pode significar a atividade do interprete, ou o resultado desta. Não diz respeito apenas às normas jurídicas, mas tudo quanto possa ser objeto do conhecimento humano. E sobre o assunto prossegue ainda o autor (Machado, 20111, p. 102):
A interpretação das normas jurídicas pode ser considerada em sentido amplo, como a busca de uma solução para um caso concreto, e em sentido restrito, como busca do significado de uma norma. [...]
Segundo a doutrina tradicional, interpretação é atividade lógica pela qual se determina o significado de uma norma jurídica. O interprete não cria, não inova, limitando-se a considerar o mandamento legal em toda a sua plenitude, declarando-lhe o significado e o alcance.
Quanto ao papel do interprete, embora realmente a doutrina tradicional se coloque, conforme destacado pelo autor, ou seja, no papel de mero porta-voz do seu sentido, não é esse o entendimento que hodiernamente prevalece.
É que, com o desenvolvimento da teoria pós-positivista, entende-se majoritariamente hoje em dia que o interprete não pode ser considerado como sujeito alheio ao processo de criação da norma. Muito pelo contrário, segundo tal entendimento, o juiz no exercício do seu ofício não realiza uma função meramente de conhecimento técnico, direcionado a tão somente reproduzir a solução contida no dispositivo normativo, mas constrói a norma por meio de processo criativo do qual as condições fáticas do caso concreto e as suas próprias convicções e valores são relevantes para o produto final do processo interpretativo.
Sobre o tema, salutares são os ensinamentos de Luis Roberto Barroso[1]:
Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.
A atividade interpretativa é, pois, caracterizada hodiernamente por ser o processo criativo por meio do qual se afere, através dos vários métodos desenvolvidos pela ciência hermenêutica, o real significado e alcance de determinada norma jurídica.
Ademais, conforme destaca Ricardo Alexandre (2015, p. 488), toda norma precisa de interpretação, pois por mais claro que seja o seu texto, é necessário um mínimo de processo interpretativo para se chegar a tal conclusão, não sendo correto o entendimento constante no antigo brocardo in claris cessat interpretatio (as normas claras não precisam ser interpretadas).
Quanto aos métodos interpretativos a doutrina clássica costuma apontar quatro: 1) o método gramatical, 2) o histórico, 3) o sistemático e 4) o teleológico, aplicáveis todos eles a qualquer causa, sem prevalência de um sobre o outro.
Especificando cada um deles, a interpretação gramatical se caracteriza por ser a mais básica e elementar de todas elas e parte da mais pura análise textual, perquirindo-se o sentido das palavras utilizadas pelo legislador no texto normativo. Neste sentido, a interpretação literal ou gramatical leva em conta exclusivamente o rigoroso significado léxico das palavras constantes do texto legal, sem considerar qualquer outro valor. (Alexandre, 2015, p. 490)
A interpretação histórica, por sua vez, vai buscar subsídios nos elementos do contexto histórico em que a norma foi criada ou mesmo a evolução do instituto ao qual se busca o sentido ao longo do tempo.
Não é outro o ensinamento de Ricardo Alexandre (2015, p. 490):
A interpretação histórica leva em consideração as circunstâncias políticas, sociais, econômicas e culturais presentes no momento da edição da norma. Confere-se importância ímpar à análise das exposições de motivos do projeto de lei, das discussões do parlamento e da sociedade, da evolução histórica do instituto disciplinado na norma. Assim, se chega ao que o legislador pretendia dizer ao redigir o texto objeto de interpretação.
Já a interpretação sistemática é método que procura dar significado à norma através da análise de todo o ordenamento jurídico ao qual está envolto o elemento interpretativo. Busca-se o confronto entre o dispositivo isoladamente considerado e toda a matéria que lhe é pertinente, para lhe dar sentido mais consentâneo com o contexto ao qual está inserido.
Sobre o tema, destaca Ricardo Alexandre (2015, p. 490):
A interpretação sistemática analisa a norma como parte de um sistema no qual está inserida, buscando a harmonia e a unicidade que devem caracterizar o ordenamento jurídico, afastando antinomias (contradições). Deixa-se de olhar exclusivamente para o texto do dispositivo interpretado e se passa a analisá-lo em conjunto com todos os demais dispositivos da mesma norma e com todas as demais normas correlatas que integram o ordenamento jurídico, respeitando a hierarquia.
Finalmente, o método teleológico vai buscar o sentido normativo através da análise aprofundada do propósito para qual foi criada, da intenção não do legislador em si, mas da norma veiculada por meio do texto normativo. O intérprete deve possuir em mente os objetivos que presidiram a elaboração da norma, para atribuir-llhe o sentido que mais se coadune com tais desígnios, de forma a concretizar, no mundo dos fatos, a vontade abstrata da norma. (Alexandre, 2015, p. 490)
Não é diferente o ensinamento de Hugo de Brito Machado (2011, p. 105):
Com este método [teleológico] o interprete empresta maior relevância ao elemento finalístico. Busca o sentido da regra jurídica tendo em vista o fim para o qual foi ela elaborada. Fundamentar-se em que todo o Direito tende a um fim, tem uma finalidade, e esta finalidade deve ser considerada interpretação, de sorte que o intérprete não extraia do texto m significado incompatível com o fim visado pelo legislador.
Importante destacar, neste momento, que nenhum dos métodos de interpretação é suficiente, nem deve prevalecer em todos os casos. O intérprete deve – isto, sim – buscar o sentido da norma utilizando todos os métodos e comparando as conclusões. Algumas certamente são de pronto afastadas, por absurdas. Outras podem persistir ensejando dúvidas. A rigor, sempre é possível mais de um significado. A escolha final de um desses significados geralmente é um ato de política jurídica, e deve recair naquele significado que melhor realize os valores fundamentais que ao Direito cumpre preservar (Machado, 2011, p. 106).
Nesta toada, importante destacar a lição de Amaro (2012, p. 338) sobre a aplicação do direito tributário e a sua interpretação enquanto ramo da ciência jurídica:
O direito tributário, desdobrado em relações jurídicas nas quais o direito do Estado é balizado pelos direitos dos indivíduos, interpreta-se consoante as regras e técnicas de interpretação aplicáveis ao direto em geral, sem que haja lugar para aplicação de critérios apriorísticos.
Ponto fulcral a respeito da imunidade tributária em geral, seja qual for a sua espécie, é saber o real alcance que a norma constitucional que excepciona a competência tributária tem.
Primeiramente, é importante destacar que é de largo conhecimento da teoria geral do direito o mandamento hermenêutico de que as exceções devem ser interpretadas restritivamente, nesse ponto, temos inclusive o exemplo do art. 111 do Código Tributário Nacional, que determina a interpretação literal de normas nitidamente excepcionantes, como as regras de isenção, de suspensão ou exclusão do crédito tributário ou de dispensa de cumprimento de obrigações acessórias. Eis a redação do texto normativo:
Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
I - suspensão ou exclusão do crédito tributário;
III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.
A necessidade de serem interpretadas restritivamente as regras de natureza de exceção é muito simples e muito bem explicada por Ricardo Alexandre (2015, p. 496), para o autor, “se forem permitidas interpretações extensivas e utilização de analogias para a pesquisa do alcance das exceções, estas tenderão a suplantar a regra, o que seria uma subversão da ordem.”
Desta feita, sendo a imunidade norma constitucional que excepciona o poder constitucional de tributar do ente federativo, a conclusão mais elementar que se poderia chegar era de que elas devem ser interpretadas restritivamente.
Todavia, a solução não é tão simples assim. Analisando detidamente o art. 111 do CTN, é possível notar que em momento nenhum ele cita a imunidade tributária, ademais disso, e este o ponto mais importante, as imunidades, conforme já citado, são instituídas para resguardar algum valor que o constituinte achou realmente relevante a fim de que fosse resguardado inclusive da tributação, de modo que muitas das vezes necessita-se dar uma interpretação ampliativa de algumas imunidades, até para garantir o efeito desejado pelo constituinte na fixação da imunidade e garantir a máxima efetividade da Constituição. Foi o que, por exemplo, a Corte Constitucional fez ao estender a imunidade cultural aos álbuns de figurinhas e cromos.
Neste ponto, Becho (2014, p. 487):
O conhecimento das regras de imunidade é alcançado partindo-se do texto constitucional. É ali que encontramos as primeiras referências textuais. Entretanto, não é correto firmar-se nesse texto, pois o Supremo Tribunal Federal – intérprete e aplicador maior da Constituição – tem por vezes ampliado e atualizado o instituto, como quando entendeu que a imunidade a “livros, jornais e periódicos” deve ser estendida várias outras publicações, como figurinhas de álbum infanto-juvenil.
A atuação do Supremo Tribunal Federal deixa claro que, em matéria de imunidade, a primeira fonte é a Constituição Federal. Abaixo dela, a fonte jurídica da imunidade é o Poder Judiciário. Não há espaço, nessa matéria, para o desenvolvimento legislativo, o que significa dizer que a lei ou o processo legislativo não é fonte do direito em relação às imunidades.
Voltando nossa atenção às decisões do órgão da cúpula do Poder Judiciário, acrescentamos que não é apenas o Supremo Tribunal Federal o detentor da competência em matéria de imunidade. Todos os órgãos do Poder Judiciário – que tenham competência fiscal – são aptos a decidir nesse assunto. As ações que discutem pleitos de imunidades integram a competência, pois, da Justiça Comum estadual e federal. Como o tema é constitucional, o Supremo Tribunal Federal será o competente para, em última instância, decidir definitivamente referidas causas judiciais.
Ante todo o exposto, entende-se que o alcance das normas imunizantes deve ser obtido dentro da lógica do próprio sistema constitucional. É isso que Nogueira ensina (2003, p. 133):
A interpretação das imunidades tributárias consiste na tarefa voltada para a realidade da conduta do Estado-Fisco, através de seus agentes, e dos administrados, procurando conhecê-la e defini-la como direito (faculdades, poderes...), como lícito, como sanção, ou como prestação. Do ângulo do Estado, procura-se saber se pode ou não pode instituir tal obrigação tributária, ainda que haja norma (inválida) efetivando o exercício de competência tributária. Do ângulo do administrado, busca-se definir se a conduta estatal pode interferir na conduta do administrado no sentido de obrigá-lo a pagar determinado tributo, ou se é a conduta do administrado que interfere na conduta estatal no sentido de coibir o exercício de competência tributária, por ser legítima.
Sendo assim, entende-se como mais correto a corrente que defende que as imunidades tributárias devem ser interpretadas segundo os valores constitucionalmente adotados, protegendo efetivamente os princípios os quais se destina, utilizando-se, para tanto, todos os métodos interpretativos clássicos já elencados.
2.3 Imunidade, isenção, não-incidência e alíquota zero
O conceito de imunidade como hipótese constitucionalmente qualificada de não-incidência que delimita a competência tributária através de comandos negativos sobre os quais o ente tributante não pode atuar já foi analisado nas linhas anteriores, assim como foi explicado a forma que tais normas devem ser interpretadas.
Avançando no tema, é preciso fazer algumas distinções entre situações aparentemente semelhantes aos olhos do cidadão comum, mas que para o operador do direito são bem distintas. Trata-se dos casos de isenção, não-incidência e alíquota zero, tudo isso em relação ao instituto da imunidade.
Analisando detidamente a Constituição Federal, é possível constatar facilmente que em nenhum momento o constituinte usa o termo imunidade tributária, muito pelo contrário, o legislador em diversos momentos usa equivocadamente termos cientificamente inapropriados para instituir alguma imunidade, ficando a cargo da doutrina realizar tão importante diferenciação, pois, se deles decorrem o mesmo resultado prático, qual seja, o não pagamento do tributo, a tratamento enquanto institutos são completamente diferentes, gerando assim abordagens completamente diferentes.
Começando pela isenção, trata-se, nos termos do art. 175 do CTN, de hipótese de exclusão do crédito tributário, caracterizado pela doutrina majoritária como uma dispensa legal de pagamento do tributo devido. É bem verdade que há quem diga que a isenção não é propriamente de uma dispensa legal de pagamento, atuando ainda antes do surgimento da obrigação tributária impedindo a incidência da norma jurídica.
Para Hugo de Brito Machado, por exemplo, “a lei isentiva retira uma parcela da hipótese de incidência da lei da tributação”. Deste modo, a isenção atuaria obstando o próprio nascimento da obrigação tributária, sendo “o próprio poder de tributar visto ao inverso”. Ademais, adverte ainda o referido autor:
Embora tributaristas de renome sustentem que a isenção é a dispensa de tributo devido, pressupondo, assim, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, na verdade ela exclui o próprio fato gerador, A lei isentiva retira uma parcela da hipótese de incidência da lei de tributação. Isenção, portanto, não é propriamente dispensa de tributo devido. (...) A isenção seria, assim, a dispensa do tributo que não chega a existir no plano da concreção jurídica.
Diante deste embate doutrinário a respeito da natureza da isenção e do momento em que ela atua, o Supremo Tribunal Federal foi instado a manifestar e em várias oportunidades o tribunal encampou a doutrina tradicional a qual inclusive inspirou a edição do Código Tributário Nacional, de modo que a posição mais segura sobre o instituto é de que a isenção é efetivamente uma mera dispensa legal do pagamento, restando clara, portanto, a grande distinção entre este instituto e a imunidade, pois enquanto que no primeiro há incidência tributária, há o surgimento da obrigação tributária, bem como do crédito, este último é dispensado por meio de norma inserida no plano legal, ao passo que na imunidade sequer há fato gerador, pois norma estabelecida no plano constitucional exclui a competência do ente tributante.
Neste sentido, Luciano Amaro (2012, p. 241) diferencia imunidade e isenção da seguinte forma:
Basicamente, a diferença entre a imunidade e a isenção está em que a primeira atua no plano da definição da competência, e a segunda opera no plano do exercício da competência. Ou seja, a Constituição, ao definir a competência, excepciona determinadas situações que, não fosse a imunidade, quedariam dentro do campo de competência, mas, por força da norma de imunidade, permanecem fora do alcance do poder de tributar outorgado pela Constituição. Já a isenção atua noutro plano, qual seja, o do exercício do poder de tributar: quando a pessoa política competente exerce esse poder, editando a lei instituidora do tributo, essa lei pode, usando a técnica da isenção, excluir determinadas situações, que, não fosse a isenção, estariam dentro do campo de incidência da lei de tributação, mas, por força da norma isentiva, permanecem fora desse campo.
A não-incidência, por sua vez, ocorre em situações em que os acontecimentos no mundo fenomênico não encontram correspondente hipótese de incidência, de forma que não são definidos como situação definida em lei como necessária e suficiente para a ocorrência do fato gerador, nos termos do art. 114 do CTN.
Ricardo Alexandre (2015, p. 316) aponta três situações em que é possível observar o fenômeno da não-incidência.
A primeira delas é quando o ente tributante, tendo a competência para definir tão fato como tributável, deixa de fazê-lo por vontade própria. É o caso bastante comum no ITCMD em relação aos bens móveis, uma vez que muitos estados, tendo em vista a dificuldade de fiscalização e arrecadação em tais casos, limita-se a tributar apenas as doações de bens móveis, cuja sujeição a registro público facilita todo o procedimento arrecadatório.
O segundo caso de não-incidência ocorre quando o ente tributante não dispõe da competência para definir determinada situação como hipótese de incidência, dado o fato de que a atribuição da norma constitucional não abrange tão possibilidade. Seria o caso da cobrança de IPVA sobre veículos aquáticos, por exemplo, ou mesmo sobre veículos não motorizados como bicicletas.
Finalmente, o último caso de não-incidência apontado pelo autor como de não-incidência é a da própria imunidade caracterizada, diferentemente das demais, por ser constitucionalmente qualificada como tal, pois a própria Constituição, ao delimitar a competência do ente federativo, impede a definição de tal fato como sujeito a tributação.
Ainda sobre a não-incidência, digna de nota é a lição de Hugo de Brito Machado (2012, p. 229) a respeito da sua distinção em relação ao instituto da isenção, sem olvidar das ressalvas já apontadas de que, embora o autor caracterize a isenção como exclusão da própria incidência tributária, a posição dominante do STF é de que se trata de mera dispensa legal do pagamento da obrigação tributária:
Isenção é a exclusão por lei, de parcela da hipótese de incidência, ou suporte fático da norma de tributação, sendo objeto da isenção a parcela que a lei retira dos fatos que realizam a hipótese de incidência da regra de tributação. A não incidência, diversamente, configura-se em face da própria norma de tributação, sendo objeto da não incidência todos os fatos que não estão abrangidos pela própria definição legal da hipótese de incidência.
Por último, temos a alíquota zero, caracterizando-se por ser mais um desses fenômenos que no âmbito da pratica tem o mesmo efeito, qual seja, o não recolhimento de tributo. Neste caso, o ente tributante tem competência para definir o fato como ensejador do surgimento da obrigação tributária e ele efetivamente o faz, ocorre que, a despeito do surgimento da obrigação tributária, na hora do lançamento do crédito, por uma questão de mera operação aritmética, a prestação devida pelo contribuinte é equivalente a zero.
Sobre os casos de alíquota zero e a utilidade prática do seu uso Ricardo Alexandre (2015, p. 318) assim leciona:
Poder-se-ia perguntar o que levaria o legislador a instituir um tributo com alíquota igual a zero. Na realidade, os casos de alíquota zero normalmente se referem aos tributos regulatórios (II, IE, IPI e IOF), que (...) podem ter suas alíquotas alteradas por ato do Poder Executivo. Em determinados momentos, querendo incentivar certa atividade, o Presidente da República pode optar por diminuir a alíquota de um destes tributos a zero (desde que esse percentual esteja dentro dos limites estipulados em lei).
A título de exemplo, é normal que a alíquota do imposto de exportação da imensa maioria das mercadorias seja reduzida a zero, como parte da política de incentivo à exportação.
As imunidades tributárias estão dispostas ao longo do texto constitucional e tem hipóteses das mais variadas possíveis, não se restringindo tão somente aos impostos, como outrora parcela considerável da doutrina tradicional já defendeu, mas abrangendo taxas e contribuições também. Algumas delas são referentes a determinadas pessoas outras relacionadas a situações objetivamente consideradas o que leva a doutrina pátria estabelecer as mais diversas formas de classificações a partir dos mais variados critérios, tudo com o fito de facilitar e sistematizar o estudo do instituto.
Tendo em vista a riqueza de variedade de classificações, passaremos a analisar algumas delas, somente as mais consagradas, com destaque para as classificações as quais se encaixa a imunidade tributária recíproca, tema abordado neste presente trabalho, sempre lembrando que não há classificação mais correta ou equivocada. As classificações doutrinárias são utilizadas para facilitar a compreensão do instituto e sistematizar o seu entendimento, sendo a escolha do critério a ser adotado uma mera escolha epistemológica, que apenas revelará se a classificação é mais ou menos útil para um determinado fim.
Neste ponto, o primeiro critério classificatório que queremos analisar é quanto ao parâmetro para concessão, ou seja, quanto a situação ou beneficiado sobre o qual ou a qual incide a exceção. Sendo assim, a imunidade pode ser subjetiva, objetiva ou mesmo mista.
A imunidade subjetiva, como o próprio nome vem a indicar, está relacionada a uma condição subjetiva sobre a qual ela incide. Em outros termos, aquele que em uma situação normal poderia ser considerado como contribuinte de uma determinada exação tributária não poderá o ser porque a Constituição Federal retira a competência tributária do ente tributante através de norma negativa de competência.
É exatamente o caso da imunidade tributária recíproca, onde ser veda a tributação do patrimônio, renda ou serviço dos entes políticos, de modo que, muito embora exista a propriedade de um veículo automotor, o que em tese permitiria o Estado tributar por meio do IPVA, o fato de este veículo pertencer a um ente político, como a União ou um Município, impede a incidência tributária simplesmente pela condição de ente político do proprietário do bem.
Ademais, neste mesmo rol encontra-se a imunidade dos templos, que, muito embora o nome doutrinariamente consagrado fazer referência ao templo em si, na realidade a imunidade tributária está relacionado a instituição religiosa como um todo e não somente em relação os espaço físico no qual são celebradas as suas cerimônias religiosas.
A imunidade objetiva, por sua vez, vai ocorrer em condições ou transações objetivamente consideradas, independentemente dos agentes relacionados na operação.
É o caso, por exemplo, da imunidade cultural, entabulado no art. 150, VI, “d”, segundo o qual não incide impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. Nota-se que não importa que é o proprietário do livro, quem esta envolvido na operação, se um grande conglomerado de mídia dono de um jornal ou uma pequena gráfica de âmbito local, muito menos quanto ao conteúdo do livro, jornal ou periódico. A imunidade, neste ponto, incide igual para todos, pois a intenção do legislador quando da instituição da imunidade foi o favorecimento a difusão da informação o do conhecimento sem qualquer tipo de distinção.
Outro exemplo que podemos citar de imunidade objetiva seria a novidade inserida por meio da Emenda Constitucional nº 75, relativo aos fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser.
Finalmente a imunidade mista, esta se caracteriza por congregar critérios comuns às outras duas espécies já elencadas ao mesmo tempo. Em outras palavras, na imunidade tipo mista a estrutura da regra prevista na norma imunizante prevê critérios tanto em relação ao contribuinte quanto ao fato objetivamente considerado. É o caso da imunidade relativa ao Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR) sobre as pequenas glebas rurais, assim definidas em lei, quando exploradas por proprietário que não possui outro imóvel, seja urbano ou rural, consoante previsto no art. 153, §4º, II, da Constituição.
Tal imunidade é mista porque depende de aspectos subjetivos (o proprietário possuir apenas um imóvel) e objetivos (a área da pequena gleba rural estar dentro dos limites da lei). (Alexandre, 2015, p. 325)
As imunidades distinguem-se quanto a sua origem entre aquelas que são políticas e as denominadas ontológicas.
A primeira categoria destaca-se por decorrer diretamente de uma escolha política do legislador, que, visando promover determinado valor, institui uma imunidade que considerou que seria relevante para satisfazer esse interesse. Em outras palavras, são aquelas que se destinam a proteger princípios presentes na Constituição Federal, sendo decorrentes de uma vontade política do legislador e não em virtude da falta de capacidade contributiva dos beneficiários.
Temos como exemplo neste caso, a imunidade para contribuições sociais incidentes sobre as receitas decorrentes da exportação, instituída no art. 149,§2º, I. Neste caso, efetivamente há manifestação de capacidade contributiva e, se o legislador constituinte não previsse tal imunidade, seria natural a sua tributação. Todavia, valorizando o princípio do desenvolvimento nacional e a busca da sempre necessária balança comercial favorável, evita-se o que se chama de exportação de tributos, ou seja, a incidência tributária sobre bens destinados a exportação de modo a causar a elevação do preço das mercadorias e diminuir a competitividade do produto nacional face ao mercado internacional.
As imunidades ontológicas, por sua vez, caracterizam-se por serem diretamente decorrentes dos princípios e valores mais elevados da Constituição, de modo que, ainda que fosse suprimida regra que a prevê expressamente, seria possível extraí-la do seu conteúdo através de normas implícitas. Em suma, as imunidades ontológicas não são decorrentes de uma vontade política do legislador, mas uma decorrência dos próprios valores consagrados na Lex Mater.
Exemplo mais clássico deste tipo de imunidade seria aquela a qual é objeto de estudo neste trabalho, ou seja, a imunidade recíproca. É que, dado o pacto federativo sob o qual se constituiu a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel da União, dos Estados e Municípios, todos autônomos, nos termos das Constituição Federal, permitir a tributação de um ente sobre o outro seria completamente antagônico com as idéias de pacto federativo. Não é por outra razão alias que a imunidade recíproca nos Estados Unidos foi reconhecida ainda que em qualquer tipo de norma expressa a determinando, restando consagrada a célebre lição do juiz Marshall de que “o poder de tributar envolve o poder de destruir”, não sendo possível que os serviços e instrumentos de uma esfera de governo fiquem à mercê de outra.
Quanto ao grau de intensidade e de amplitude da imunidade, esta pode ser geral ou específica, tudo a depender dos valores os quais o constituinte pretendeu proteger.
As imunidades tributárias gerais, também conhecidas como genéricas, estão dispostas ao longo do art. 150, VI, da Constituição Federal, nesta espécie estabelece-se vedação ao exercício do poder de tributar de forma genérica, abrangendo todos os entes tributantes e diversos tributos, todos ao mesmo tempo.
É assim que ocorre em relação à imunidade recíproca, direcionada para todos os entes, e impede a incidência de qualquer imposto sobre patrimônio, renda e serviços de um ente sobre o outro. Da mesma forma ocorre com a imunidade dos partidos políticos, templos de qualquer culto, livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
Nessa espécie de imunidade, o que buscou o constituinte foi promover a proteção de valores considerados essenciais, como o pacto federativo, a liberdade religiosa, a liberdade política e a livre circulação de informação e de cultura.
As imunidades específicas, por sua vez, são direcionadas a um tributo específico, seja este uma taxa, imposto, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório ou contribuição especial. No caso, limita-se o poder de tributar de um ente em específico na busca da efetivação de um valor menos genérico do que aqueles protegidos nas imunidades genéricas.
Os exemplos de imunidade específica são os mais diversos possíveis, podendo aqui serem citados a imunidade referente ao IPI ou ao ICMS nas operações de exportação (arts. 153, §3º, III e 155, §2º, X, “a”, ambos da CF), bem como da imunidade referente ao ITR para as pequenas glebas rurais (art. 153, §4º, II, da CF).
Quanto à necessidade ou não de regulamentação da imunidade, esta pode ser condicionada ou incondicionada.
No primeiro caso, é considerada condicionada a imunidade que necessita, para a produção dos seus efeitos, de norma regulamentadora no âmbito infraconstitucional. Trata-se, pois, de verdadeira norma de eficácia limitadas, nos termos da clássica lição do mestre José Afonso da Silva.
Como exemplo, pode-se citar aqui a imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, que prevê a impossibilidade de se tributar o patrimônio, renda ou serviços das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos definidos em lei complementar, conforme determina o art. 146, II, da Constituição.
Já as imunidades incondicionadas, estas tem natureza de normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata, dispensando qualquer regulamentação no âmbito da legislação infraconstitucional para produzir efeitos, além do que o beneficiado não precisa cumprir qualquer obrigação para ter garantido a não-incidência tributária.
Neste ponto, são os mais diversos exemplos de imunidade incondicionada, apenas para citar alguns, aponta-se a própria imunidade tributária recíproca, objeto de estudo do presente trabalho, bem como a imunidade cultural e a dos templos de qualquer culto.
As imunidades tributárias em espécies são bastante numerosas, não cabendo a este exíguo trabalho analisar detalhadamente cada um deles, mas tão somente especificar uma só, para mais a frente analisar um aspecto ainda mais específico da sua incidência. Neste ponto, detalharemos neste capítulo a imunidade tributária recíproca, para finalmente enfrentar no capítulo seguinte a problemática a respeito da sua aplicação ou não em benefício das empresas estatais.
A imunidade tributária recíproca encontra previsão constitucional no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal, entabulando que é vedado aos entes políticos, quais sejam, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, de instituírem impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços uns dos outros.
Trata-se de cláusula pétrea, por configurar importante regra protetiva do pacto federativo ao impedir a sujeição de um ente federativo ao poder de tributar do outro (ADI 939). (Alexandre, 2015, p. 331)
Quanto a sua origem, Roque Antonio Carraza (2012, p. 824), nos ensina que o instituto aqui em estudo tem como precedente histórico o caso em que o Estado de Maryland, , em 1819, pretendeu cobrar imposto sobre a selagem com estampilhas de uma filial do banco oficial (Bank of U.S). O caso foi levado à Corte Suprema e ficou conhecido como o precedente “McCulloch vs. Maryland”, transformando-se em um verdadeiro leading case, restando fixadas as seguintes ideias, até hoje consagradas, inclusive para o ordenamento jurídico brasileiro: 1) a competência para tributar por meio de impostos envolve, eventualmente, a competência para destruir; 2) não se deseja – e a própria Constituição não admite – nem que a União destrua os Estados-membros, nem que estes se destruam mutuamente ou à União; e 3) destarte, nem a União pode exigir impostos dos Estados-membros, nem estes da União, ou uns dos outros.
Neste ponto, relevante destacar os ensinamentos de Renato Lopes Becho (2014, p. 488) a respeito da imunidade tributária recíproca, ou, como o autor gosta de chamar, imunidade intergovernamental recíproca:
Participa o presente dispositivo constitucional de uma série de normas para fazer valer um princípio constitucional (não tributário) que é o federativo (CF, art. 1º) [...], sendo o Brasil uma Federação, não é razoável juridicamente a cobrança de tributo por parte de um ente público sobre outro, que importaria descaracterizar a independência recíproca que é base do sistema federativo. A não existência do princípio em análise abriria margem, também, a perseguições políticas que em nada contribuiriam para o desenvolvimento nacional. Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADIn 939/DF, rel. Min. Sydney Sanches), julgando a Emenda Constitucional nº 3, de 17-3-1993, que autorizou a União instituir Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira – IPMF. Como o art. 2º da Emenda determinou a incidência sobre fatos imponíveis praticados por Estados, Distrito Federal e Municípios, o Supremo reconheceu que a imunidade intergovernamental recíproca é garantia da Federação, sendo cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, I).
Os §§ 2º e 3º do art. 150 vão tratar da imunidade recíproca, determinando a extensão do benefício às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, desde que o patrimônio, a renda e os serviços estejam vinculados às suas finalidades essenciais (§2º), bem como exclui a incidência da regra ao patrimônio, à renda e aos serviços, relativos à exploração de atividade econômica regidas pelas normas aplicáveis ao serviço privado, ou em que haja contraprestação ou pagamento de tarifa ou preço pelo usuário (§3º).
Sendo assim, importante neste ponto atentar para a redação dos dispositivos em comento, in verbis:
Art. 150 Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
(...)
§ 2º A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
§ 3º As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
Com efeito, nos termos do parágrafo 2º, tem-se que a imunidade tributária recíproca é estendida às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, desde que o patrimônio, a renda e os serviços estejam vinculados às suas finalidades essenciais.
Trata-se, pois, diferentemente da previsão do art. 150, VI, de um benefício mais restrito, pois “a extensão da imunidade tributária recíproca às autarquias e fundações públicas não lhes confere uma garantia de igual amplitude àquela conferida aos tens políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). (Alexandre, 2015, p. 331)
Sobre o tema, preciosos são os ensinamentos de Luciano Amaro (2012, p. 244):
O §2º do art. 150 explicita a extensão da imunidade recíproca às autarquias e fundações mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, renda e serviços vinculados às suas finalidades essenciais ou delas decorrentes. A contario sensu, o que não estiver relacionado com essas finalidades essenciais não é imune. A imunidade recíproca não se aplica “ao patrimônio, renda e serviços, relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário” (art. 150, §3º).
Neste diapasão, podemos concluir, assim como faz Alexandre (2015, p. 331), que a diferença fundamental entre a imunidade do art. 150, VI, e aquela trazida pelo parágrafo 2º é de que, nos precisos termos constitucionais, para gozar da imunidade, as autarquias e as fundações precisam manter seu patrimônio, renda e serviços vinculados às suas finalidades essenciais ou, pelo menos, às delas decorrentes, restrição esta, por sua vez, inaplicável aos entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
Já no que tange ao parágrafo 3º, importante a ressalva de que a referida imunidade não se aplica ao patrimônio, à renda, e aos serviços, relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário.
Assim, têm-se pelo menos duas situações nas quais o patrimônio, a renda e os serviços das entidades públicas não são imunes, a saber: uma, quando relacionados com a exploração de atividades econômicas; e outra, quando relacionados a atividades em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. (Machado, 2011, p. 286)
No caso, o legislador busca proteger a livre concorrência e a liberdade de iniciativa, vedando-se o uso da máquina pública para estabelecer situações caracterizadas como concorrência desleal dos entes estatais com as pessoas jurídicas de direito privado.
Neste sentido, segue o mesmo autor a respeito da importância da referida ressalva (Machado, 2011, p. 286):
É plenamente justificável a exclusão da imunidade quando o patrimônio, a renda e o serviço estejam ligados a atividade econômica regulada pelas normas aplicáveis às empresas privadas. A imunidade implicaria tratamento privilegiado, contrário ao princípio da liberdade de iniciativa. Ocorre que também não há imunidade quando haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. Isto quer dizer que um serviço, mesmo não considerado atividade econômica, não será imune se houver cobrança de contraprestação, ou de preço, ou de tarifa. Podem ser tributados pelos Municípios, por exemplo, os serviços de fornecimento de água e de esgoto prestados pelos Estados.
Por outro lado critica-se a interpretação literal do dispositivo no que tange aos serviços remunerados por meio de tarifa ou preço público, tendo em vista que, ainda que serviços fornecidos pelo Estado fora do âmbito da atividade empresarial, se for cobrado qualquer tipo de contraprestação por parte do usuário, afastada estará a imunidade, aplicando esta somente nos casos de serviços oferecidos a título gratuito.
Nestes termos, é, por exemplo, o raciocínio de Hugo de Brito Machado (2011, p. 287):
Pode-se argumentar, é certo, que a expressão “ou em que haja contraprestação ou pagamento de preço ou tarifa pelo usuário” apenas se presta, no caso, para qualificar a atividade como de natureza econômica, e, assim, afastar a imunidade, evitando disputar em torno do que seja uma atividade econômica. Ocorre que, se a cobrança de preços e tarifas qualifica a atividade como de natureza econômica, neste caso o alcance da ressalva será igualmente amplo, posto que, havendo tal cobrança, não se há de perquirir a respeito da natureza da atividade. Basta a cobrança para qualificá-la como de natureza econômica. Havendo cobrança de contraprestação, de preços ou tarifas, não há imunidade, seja qual for a natureza da atividade desenvolvida pela entidade estatal.
Esperamos que essa interpretação ampliativa da ressalva, que em matéria de serviços praticamente anula a regra imunizante, deixando imunes apenas os serviços gratuitos, não prevaleça. Não podemos, todavia, deixar de reconhecer que ela é razoável em face do elemento literal do dispositivo constitucional em exame.
Finalmente, a parte final do parágrafo 3º do art. 150 determina que a regra da imunidade política não exonera o comprador da obrigação de pagar imposto relativo ao bem imóvel objeto de contrato particular de promessa de compra e venda.
O Compromisso irretratável de compra e venda é o contrato pelo qual o promitente vendedor obriga-se a vender ao promitente comprador determinado imóvel, pelo preço, condições e modo combinados, outorgando-lhe a escritura definitiva assim que ocorrer o adimplemento da obrigação. (Alexandre, 2015, p. 346)
No caso, buscou-se evitar com tal regra o uso fraudulento da imunidade recíproca em transações envolvendo particular e ente político, de modo que, estabelecido o contrato particular de promessa de compra e venda, as partes posterguem a transferência da propriedade por meio do registro, tão somente como instrumento para fugir da tributação.
Importante ressaltar que este entendimento já era há muito consagrado pelo STF, inclusive com edição de súmulas a respeito, de modo que, posteriormente, apenas foi transladado para a Constituição Federal de 1988. Neste, termos vejamos o que Machado (2011, p. 288) tem a nos dizer a respeito do tema em análise:
A explicitação relativa ao promitente comprador dos imóveis, que não é novidade, faz-se necessária para afastar divergência. Houve quem sustentasse que o imóvel objeto de promessa de compra e venda, continuando como propriedade do promitente vendedor, integrando, pois, o patrimônio da entidade imune, não poder ser tributado. Mas a tese na verdade era improcedente. Os efeitos da promessa de compra e venda no direito tributário não são e nem poderiam ser os mesmos do direito civil. O imóvel objeto de promessa de compra e venda na realidade sai do patrimônio do promitente vendedor e se integra no patrimônio do promitente comprador, se não como um bem, juridicamente considerado, pelo menos como expressão econômica. Mas o STF já havia decidido pela imunidade do imóvel transcrito no Registro Público em nome da autarquia, embora objeto de promessa de compra e venda a particular (súmula). Daí a necessidade da explicação feita na parte final do §3º do art. 150 da CF de 1988, à qual se amoldou a jurisprudência do Supremo (súmula 583).
Neste diapasão, a imunidade tributária recíproca tem por fim atender os princípios consagrados na Constituição Federal, especialmente o pacto federativo, permitindo assim que cada ente dos entes exerça suas atribuições sem que tenham a sua autonomia tolhida por meio da sujeição tributária.
Desta forma, cumpre-nos analisar alguns detalhes a respeito da imunidade tributária recíproca, mais especificamente quanto aos fundamentos do instituto em estudo, bem como do alcance de suas regras imunizantes.
3.1 O pacto federativo, a isonomia e a imunidade tributária recíproca
É plenamente pacífico, conforme já restou muito bem demonstrado ao longo deste trabalho, que o principal fundamento para a instituição da imunidade intergovernamental recíproca é o princípio federativo, bem como a incidência da isonomia e da independência dos entes federativos em relação uns aos outros.
Por outro lado, é importante notar que toda fundamentação para o exercício do poder de tributar está na ideia de solidariedade entre os indivíduos, que devem contribuir financeiramente de acordo com a sua possibilidade financeira para que o estado possa atender todas as necessidades públicas com as quais se compromete satisfazer. Em outros termos, a ideia de tributação está imbricada no conceito de capacidade contributiva, no sentido de transladar recursos financeiros dos particulares, de acordo com a possibilidade econômica de cada um, para o ente estatal, de modo que é ilógico cogitar a possibilidade de manifestação de capacidade contributiva por parte de um ente estatal, bem como a transferência de recursos de um ente estatal para outro por meio da tributação.
No que tange ao pacto federativo, o referido princípio está consagrado no artigo 1º, caput, da Constituição Federal, definindo a forma de constituição do estado da República Federativa do Brasil ao declarar que esta é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal.
Sobre o Federalismo e os estado Federado, é de destaque a lição do grande constitucionalista Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 506):
O Princípio Federativo define a forma de Estado. Federação é a própria forma de Estado, que se constitui a partir da união indissolúvel de organizações políticas autônomas, instituída por uma Constituição rígida (a Constituição Federal), com o fim de criar um novo Estado (o Estado Federal). A esse propósito, as coletividades reunidas (Estados Federados), sem perderem as suas personalidades jurídicas, despedem-se de algumas tantas prerrogativas, em benefício de um todo (Estado Federal). A mais relevante delas é a soberania. Federação, etimologicamente, vem de foedus, foederis, significando aliança, pacto, união, uma vez que é da aliança entre Estados que ela nasce. O Estado Federal – resultado dessa aliança – é soberano para o Direito Internacional, ao passo que os Estados federados ou membros são autônomos para o Direito Interno.
Nesse ponto, não é demais lembrar aqui que a forma federativa de estado é considerada cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, § 4º, da CF, de modo que fica vedada, portanto, qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado.
No mesmo sentido ensina Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p.143):
Não é passível de deliberação a proposta de emenda que desvirtue o modo de ser federal do Estado criado pela Constituição, em que se divisa uma organização descentralizada, tanto administrativa quanto politicamente, erigida sobre uma repartição de competência entre o governo central e os locais, consagrada na Lei Maior, onde os Estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão.
Desta forma, podemos concluir, assim como o faz Dirley da Cunha Júnior (2010, p. 507), que o cerne do federalismo repousa na autonomia das entidades que compõem o Estado Federal, pois somente este detém o poder soberano, que é um poder supremo e independente. É supremo na ordem interna, porque inexiste qualquer outro que lhe sobrepaire. É independente na ordem externa, porque é igual aos outros poderes soberanos de outros Estados. A soberania funciona como um poder unificador de uma ordem jurídica estatal. Em face dela, o Estado é, no plano externo, uno e indivisível, pouco importando que seja, no âmbito doméstico, centralizado ou descentralizado politicamente, ou seja, se o Estado tem forma unitária ou federal.
Sendo assim, se os entes que compõem a federação não ostentam soberania, eles desfrutam pelo menos de autonomia, esta lhe conferida diretamente pela Constituição Federal de 1988. É que “a federação só existe quando, em face da descentralização política, as ordens central e parciais passam a usufruir de autonomia num mesmo território, uma vez que contempladas constitucionalmente como competência próprias. (Júnior, 2010, p. 508)
O Brasil, portanto, é um Estado Federal, em que a União, os Estados-membros e os Municípios, todos igualmente autônomos, ocupam juridicamente, o mesmo plano hierárquico, devendo, por conseguinte, receber tratamento jurídico-formal isonômico. (Júnior, 2010, p. 509)
Registra-se que dentro do princípio federativo, além da já mencionada autonomia e independência dos entes, o regime se caracteriza principalmente por ter uma repartição bastante rígida de competências estabelecidas ao longo da Carta Constitucional, de modo que fica nitidamente definido o âmbito de atuação de casa um dos entes. Exemplo muito ilustrativo desse aspecto é a repartição de competência tributária atribuída sem sobreposição para cada um dos membros da federação, garantindo assim a independência e autonomia financeira.
Neste sentido, Navarro Coêlho (2004, p. 65):
A característica fundamental do federalismo é a autonomia do Estado-Membro, que pode ser mais ou menos ampla, dependendo do país de que se esteja a cuidar. No âmbito tributário, a sustentar a autonomia política e administrativa do Estado-Membro e do município – que, no Brasil, como vimos, tem dignidade constitucional –, impõe-se a preservação da autonomia financeira dos entes locais, sem a qual aqueloutras não existirão. Esta autonomia resguarda-se mediante a preservação da competência tributária das pessoas políticas que convivem na Federação e, também, pela equidosa discriminação constitucional das fontes de receita tributária, daí advindo a importância do tema referente à repartição das competências no Estado Federal (...). Sendo a federação um pacto de igualdade entre as pessoas políticas, e sendo a autonomia financeira o penhor da autonomia dos entes federados, tem-se que qualquer agressão, ainda que velada, a estes dogmas, constitui inconstitucionalidade.
De todo o exposto, o que se extrai é que o pacto federativo determina o tratamento isonômico entre os entes integrantes da federação, inviabilizando assim a tributação de um ente sobre o outro, dada que a natureza da relação jurídica tributária pressupõe relação de subordinação e sujeição entre os seus sujeitos, ideia incompatível com a autonomia e isonomia predominante na relação entre os entes políticos.
Neste sentido, o mestre Paulo de Barros Carvalho (2013, p. 193) leciona que seria uma imensa contradição pensar no princípio da paridade jurídica entre os entes políticos e, simultaneamente, conceder o exercício de suas competências impositivas sobre o patrimônio, a renda e os serviços umas com relação às outras
E conclui o autor (Carvalho, 2013, p. 194):
(...) uma pessoa jurídica de direito público, embasada de personalidade política e autonomia, conforme preceitos dispostos na Carta Magna, não deve se submeter aos poderes de fiscalização e de controle, que são ínsitas da administração tributária.
Já Roque Antônio Carraza (2012, p. 823) defende a ideia de que a imunidade intergovernamental recíproca decorre diretamente da absoluta igualdade jurídica entre as pessoas jurídicas de direito público, de modo que a Constituição Federal estabelece limites ao exercício da competência tributária os quais os entes federativos têm o dever de respeitar sob pena de vício de constitucionalidade.
Não bastasse isso, toda a lógica da tributação está fundamentada em alguma manifestação da capacidade contributiva por parte do contribuinte, de modo que dela se faz surgir uma obrigação e, posteriormente, um crédito tributário, de natureza não voluntária (obrigação ex lege) e com conteúdo pecuniário cuja destinação será os cofres públicos para fazer frente aos mais diversos gastos da máquina estatal.
Sendo, assim, é importante notar que o ente político, se não pode, pelo menos não deveria manifestar capacidade contributiva, sendo completamente ilógico que um ente integrante da federação contribua financeiramente com outro por meio da tributação.
Em conclusão, a imunidade tributária recíproca mostra-se como uma das formas de promoção do princípio federativo, deixando claro quase que de forma unânime a doutrina pátria, além do próprio Supremo Tribunal Federal, que se trata de cláusula pétrea, bem como de espécie de imunidade tributária de natureza ontológica, de modo que, ainda que não estivesse prevista de forma expressa no texto constitucional, seria possível extraí-la do seu conteúdo como espécie de norma implícita, razão pela qual, mesmo que se tentasse suprimir tal instituto, primeiro que não seria possível por violar o art. 60, §4º, da Constituição Federal de 1988, segundo que de nada produziria efeito, pois decorrente diretamente dos já mencionados princípios da isonomia entre os entes políticos e da capacidade contributiva.
3.2 Alcance dos termos patrimônio, renda e serviços
Tema de grande debate na doutrina e nos tribunais é a respeito do alcance do comando normativo que estabelece a imunidade intergovernamental recíproca para o patrimônio, renda e serviços dos entes políticos, assim estabelecido no art. 150, VI, da Constituição.
A Fazenda Nacional, por exemplo, por meio de sua procuradoria, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, já defendeu em algumas oportunidades que a referida imunidade abrangeria tão somente o imposto de rende (IR), o imposto sobre serviços (ISS), o imposto predial e territorial urbano (IPTU), o imposto territorial rural (ITR) e o imposto sobre propriedade de veículo automotor (IPVA), em uma clara e manifesta interpretação literal e restritiva do comando constitucional quando se refere a renda (IR), patrimônio (IPTU, ITR e IPVA) e serviços (ISS).
Desta forma, pretendia a fazenda pública estabelecer a incidência de exações tributárias fora desses conceitos, tais como IOF, II, IE e IPI.
Neste sentido, explica a referida teoria, mesmo sem encampá-la, Sabbag (2013, p. 300):
Urge destacar que a presente alínea, adstrita à imunidade recíproca, a par de outros comandos – (I) a alínea “c” e (II) os parágrafos 2º e 4º do próprio art. 150 da CF – menciona um rol classificatório de impostos, haurido do CTN (arts. 19 a 73), segundo o qual a imunidade abrangeria tão somente impostos sobre patrimônio, renda e serviços.
Nessa medida, o dispositivo, literalmente interpretado, alcançaria vários impostos, quais sejam: o imposto sobre Grandes Fortunas, o ITR, o ITCMD, o IPVA, o ITBI, o IR e o ISS. A contrario sensu, abrir-se-iam, entretanto, para a incidência, e.g. os “impostos sobre o comércio exterior” (imposto de importação e exportação), além dos “impostos sobre a produção e circulação” (ICMS, IPI e IOF).
Por outro lado, parte significativa da doutrina, vem dizer que tal interpretação não procede, aludindo, como base em toda a argumentação aqui já ventilada a respeito do pacto federativo, da isonomia, da capacidade contributiva, da impossibilidade de sujeição tributária de um ente político sobre outro, que deve ser dada interpretação ampliativa para o preceito de modo que abarque todos os impostos.
Eduardo Sabbag (2013, p. 301), por exemplo, cita Aliomar Baleeiro para vir dizer que a imunidade tributária recíproca é um instituto jurídico-político expressamente consagrado na Constituição e não pode ser anulado pelas sutilezas e jogos de palavras do legislador ordinário.
O Supremo Tribunal Federal, em análise de caso que teve como fundo a referida polêmica, encampou a tese daqueles mais favoráveis à interpretação mais ampliativa do comando constitucional, ignorando assim a classificação trazida pelo CTN relativa aos impostos e impedindo a cobrança de IOF em face dos Municípios sobre as operações financeiras por eles realizadas.
Neste sentido, leciona o mestre Roque Antonio Carraza (2012, p. 825):
[...] a Constituição usou, nesta passagem (como em tantas outras), de uma linguagem econômica e, portanto, não jurídica. Lembramos que, para a Economia, todos os impostos ou são sobre a renda, ou sobre o patrimônio ou sobre serviços. [...] Em suma, quando aludiu aos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços, ela, na verdade, fez referência a todos eles, sem exceção.
[...] ainda que a Constituição tivesse silenciado a respeito, as pessoas políticas não poderiam exigir umas das outras impostos, exatamente para não destruí-las ou criar-lhes dificuldades de funcionamento.
Importante lembrar, todavia, que a imunidade das entidades de direito público não exclui o imposto sobre produtos industrializados (IPI), ou sobre a circulação de mercadorias (ICMS), relativo aos bens que estes adquirem de um particular.
É que o contribuinte destes é o industrial ou comerciante, ou produtor, que promove a saída respectiva. O STF já decidiu de modo contrário, mas reformulou sua posição. (Machado, 2011, p. 288)
Neste sentido, peço vênia para colacionar notável lição de Hugo de Brito Machado (2011, p. 288) a respeito do tema:
O argumento de que o imposto sobre o produto industrializado/IPI assim como o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias/ICMS não incidem na saída de mercadorias que o particular (industrial, comerciante ou produtor) vende ao Poder Público, porque o ônus financeiro respectivo recai sobre este, não tem qualquer fundamento jurídico. Pode ser válido no âmbito da ciência das finanças. Não no direito tributário. A relação tributária instaura-se entre o industrial, ou o comerciante, que vende, e por isto assume a condição de contribuinte, e a Fazenda Pública, ou Fisco, credor do tributo. Entre o Estado comprador da mercadoria e o industrial, ou comerciante, que a fornece, instaura-se uma relação jurídica inteiramente diversa, de natureza contratual. O Estado comprador paga simplesmente o preço da mercadoria adquirida. Não o tributo. Este pode estar incluído no preço, mas neste também está incluído o salário dos empregados do industrial, ou comerciante, e nem por isto se pode dizer que há no caso pagamento de salários. Tal inclusão pode ocorrer, ou não. É circunstancial e independe de qualquer norma jurídica. Em última análise, no preço de um produto poderão estar incluídos todos os seus custos, mas isto não tem relevância para o Direito, no pertinente à questão de saber quem paga tais custos.
Desta forma, resta fixado que a melhor interpretação a ser dada para a imunidade sobre o “patrimônio, renda ou serviço” dos entes estatais e suas autarquias e fundações públicas é a que abrange todos os impostos, desprezando a classificação trazida pelo CTN em relação aos impostos, satisfazendo melhor assim o consagrado princípio constitucional da forma federativa de estado. Esse é, pois, o já consagrado entendimento o Supremo Tribunal Federal.
3.3 Imunidade tributária recíproca quanto às espécies de tributos
Outro ponto de destaque a respeito do tema é quanto ao alcance da imunidade intergovernamental recíproca em relação às espécies tributárias. Neste sentido, resta investigar aqui se o referido instituto abrange toda e qualquer espécie tributária, adotando aqui a teoria pentapartite das espécies tributárias, ou seria restrita tão somente a espécie impostos, tributo dotado de característica não-vinculada tanto quanto a sua origem, ao surgimento do fato gerador, quanto a destinação do produto arrecadado.
Adotando uma interpretação literal do art. 150, VI, da Constituição Federal a conclusão imediata que chegamos é que a imunidade recíproca limita-se a espécie impostos.
Neste sentido posiciona-se boa parte da doutrina, exemplificada aqui por Ricardo Alexandre (2015, p.331):
(...) a imunidade recíproca somente se aplica aos impostos, não impedindo, a título de exemplo, que um Município institua taxa pela coleta domiciliar de lixo, cobrando-a, também, pelo serviço prestado nas repartições públicas federais e estaduais localizadas em seu território.
Regina Helena Costa (2001, p. 46), ao discorrer a respeito da imunidade tributária no seu sentido mais genérico, vem dizer que o referido instituto não se limita tão somente à espécie impostos, como outrora já defendeu Hugo de Brito Machado, podendo o texto constitucional estabelecer imunidade para qualquer espécie tributária, todavia, ressalta a autora (COSTA, 2001, p. 139), no caso da imunidade tributária recíproca, o legislador, por opção política, resolveu limitar o benefício tão somente aos impostos.
A explicação para tal é muito simples, em se tratando de espécie de tributo não-vinculado, a sua cobrança constitui efetivo exercício de supremacia de um ente político sobre o outro, surgindo o fato gerador sempre através de uma manifestação externa de capacidade contributiva por parte do contribuinte, o que não deve ocorrer em relação aos órgãos estatais. Por outro lado, no que tange aos tributos vinculados, a sua cobrança decorre efetivamente de uma prestação positiva do ente estatal, de modo que o tributo cobrado seria uma verdadeira contraprestação ao serviço oferecido.
No sentido oposto, parte considerável e respeitável da doutrina entende que a imunidade tributária recíproca deve ser estendida para toda e qualquer espécie tributária. Paulo de Barros Carvalho (2013, p. 186), por exemplo, entende que a interpretação literal e restritiva do instituto é descabida, caracterizando uma interpretação apressada ou ainda como resultado de considerações metajurídicas, desprendidas do contexto positivo vigente.
Já Hugo de Brito Machado (2011, p. 289), ressalta a importância do pacto federativo e do seu caráter de cláusula pétrea perante a Constituição Federal para justificar a extensão da imunidade intergovernamental recíproca para qualquer tributo e não somente aos impostos, nos seguintes termos:
Ressalta-se que a imunidade recíproca é uma forma de expressão do princípio federativo. Não se pode conceber uma Federação sem a imunidade tributária recíproca. Assim, a regra da imunidade está protegida contra possível emenda constitucional, por força do disposto no art. 60, §4º, I, da CF de 1988, segundo o qual “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a forma federativa de Estado”.
Não obstante esteja expressa, no art. 150, VI, da vigente CF, apenas em relação aos impostos, em razão do princípio federativo a imunidade recíproca abrange, seguramente, também os demais tributos. É que o tributo, como expressão que é da soberania estatal, não pode ser exigido de quem a tal soberania não se submete, porque é parte integrante do Estado, que da mesma é titular.
Qualquer emenda que porventura autorizar a União a cobrar qualquer tributo dos Estados, ou dos Municípios, ou autorizar qualquer destes a cobrar qualquer tributo da União, ou de qualquer outro Estado, ou Município, é inconstitucional.
Instado a se manifestar sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se no sentido de que a imunidade tributária recíproca refere-se tão somente aos impostos, consoante redação do art. 150, VI, da Constituição, sendo impossível a extensão da regra para abranger outras espécies tributárias, tais como as contribuições.
4 A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA APLICADA ÀS EMPRESAS ESTATAIS
Consoante já amplamente abordado nas linhas anteriores, a imunidade tributária recíproca abrange, nos termos do art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em relação aos impostos sobre o seu patrimônio, renda e serviços, sendo estendida mais a frente tal benesse por expressa disposição do parágrafo 2º do art. 150 para as autarquias e para as fundações públicas instituídas e mantidas pelo poder público, desde que vinculadas a sua finalidade essencial.
Desta forma, não entra na regra imunizatória, nos termos do art. 150, VI, §3º, da Constituição Federal, o patrimônio, a renda e os serviços referentes à exploração de atividade econômica, de modo que empresas públicas e sociedades de economia mista, por serem agentes atuantes no livre mercado, devem seguir exatamente as mesmas regras obedecidas pelas entidades privadas, de modo que elas não poderão gozar de privilégio fiscal não extensivo às companhias do setor privado.
De fato, se o legislador constituinte excluiu da incidência tributária tão somente as autarquias e fundações públicas – entes verdadeiramente públicos, que se integram à estrutura política do país -, é de fácil constatação que haverá normal incidência sobre as empresas públicas e as sociedades de economia mista, uma vez que estas não gozam de imunidade tributária. (Sabbag, 2013, p. 307)
Tal regra constitucional é deveras coerente, uma vez que se fosse possível estender às empresas estatais exploradoras de atividade econômica os privilégios fiscais proporcionados pela imunidade, certamente ocorreria uma concorrência desleal, já que seus produtos ou serviços, livres do custo da tributação, seriam indubitavelmente mais baratos. (CARRAZA, 2012, p. 833)
Tal preceito inclusive é, há muito tempo, consolidado no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que tem na súmula nº 76 o entendimento firmado de que as sociedades de economia mista não estão protegidas pela imunidade fiscal do Art. 31, V, “a”, da Constituição Federal. Nota-se que o enunciado sumular tem como referência a redação de Constituição anterior a atualmente vigente, todavia, a base interpretativa é basicamente a mesma, sendo perfeitamente adaptável para o contexto atual.
Em suma, se por um lado as empresas estatais, tais como a empresa pública e a sociedade de economia mista compõem a administração indireta, realizando importante papel na prestação de serviço de forma descentralizada, é preciso atentar que, a priori, eles devem atender todos os comandos normativos aplicáveis às empresas privadas, inclusive os referentes à sujeição tributária.
Ressalta-se, todavia, que o constituinte, ao tempo da edição da Constituição, não atentou para certas situações nas quais o Estado, buscando promover uma gestão mais eficiente e descentralizada, primando pela economicidade, bem como pela melhor prestação do serviço público, adota a forma de empresas públicas e sociedades de economia mista para através delas prestar serviço público de natureza obrigatória e exclusiva do Estado, de modo que elas, ao fim e ao cabo, não atuam perante um mercado concorrencial.
Ante este panorama, surge a dúvida quanto ao regime jurídico aplicável em relação a estas empresas públicas e sociedades de economia mista, constituídas sob a forma de pessoa jurídica de direito privado, mas que na verdade são prestadoras de serviço público.
Isto porque a regra do art. 173, §1º, da Constituição Federal, ao vedar o tratamento favorecido no que tange a tributação para as empresas estatais, apenas estava se referindo às empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica no âmbito do mercado concorrencial, nada se referindo, portanto, àquelas que prestam serviço público em caráter obrigatório e exclusivo.
Isto posto, o que se tem observado através de análise pormenorizado da corte guardiã da Constituição é que o STF tem relativizado a regra de que as empresas públicas e sociedades de economia mista não estão abrangidas pela imunidade recíproca, para em certos casos, e sob o atendimento de certos requisitos definidos pelo próprio tribunal, impedir a incidência tributária em relação aos impostos sobre patrimônio, renda e serviços das empresas estatais tais como se fossem entidades de direito público e não pessoas jurídicas de direito privado como efetivamente o são.
Em relação a estes requisitos para ser inserido na regra imunizatória, bem como os casos práticos em que o Supremo Tribunal reconheceu o seu atendimento, este será o tema deste presente capítulo, ao longo dos próximos tópicos, primeiro passando pela análise detalhada dos requisitos essências para ter reconhecida a imunidade, para depois analisar cada caso concreto, com especial destaque para o caso da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, da INFRAERO, da CAERD, da CODESP e da Casa da Moeda.
Ultrapassando a interpretação literal da Constituição Federal, estendendo o alcance da imunidade tributária recíproca para as empresas públicas e sociedades de economia mista, o Supremo Tribunal Federal tem apontado basicamente para três requisitos essências para que assim possa ser aplicado o referido beneficio.
Primeiramente a empresa estatal, seja empresa pública, seja sociedade de economia mista, deve exercer atividade típica de Estado.
Neste caso, não obstante o ente estatal atuar sob a forma de pessoa jurídica de direito privado, sob o manto de uma empresa estatal, trata-se de mera organização formal, pois efetivamente a atividade exercida é tipicamente estatal.
Sendo assim, tais entidades, com características sobremodo peculiares, revestem-se da indumentária de autarquias, com estas se assemelhando em demasia. (Sabbag, 2013, p. 308)
Neste sentido, é como ensina Carraza (2012, p. 836):
Podemos, pois, dizer que, neste caso, as sociedades de economia mista e as empresas públicas, pelas atribuições delegadas de poder público que exercitam, são, tão só quanto à forma, pessoas de direito privado. Quanto ao fundo são instrumentos do Estado, para a prestação de serviços públicos ou a prática de atos de polícia. Acabam fazendo as vezes das autarquias, embora - damo-nos pressa em proclamar – com elas não se confundam.
Neste sentido, enquanto atuam como se pessoas políticas fossem, as empresas públicas e as sociedades de economia mista não podem ter embaraçada ou anulada sua ação pública por meio de impostos. Esta é a consequência de uma interpretação sistemática do art. 150, VI, “a”, da CF.
É exatamente o que ocorre com a Casa da Moeda, empresa pública federal responsável pela produção do meio circulante brasileiro, bem como de outros produtos de segurança, tais como passaporte com chips e selos fiscais.
Nota-se que, não obstante ter se escolhido a forma de uma empresa pública, a atividade exercida é típica de um ente estatal, que poderia perfeitamente ser exercida através de uma autarquia, por exemplo, de modo que a interpretação teleológica da Constituição Federal determina a extensão da regra imunizatória, como efetivamente determinou o STF em caso mais adiante analisado.
Além disso, a atuação deve ser feita sem a intenção de lucro. É que a atividade de exploração econômica por parte do Estado, consoante o art. 173 da Constituição Federal de 1988, é verdadeira exceção a ordem econômica constitucional adotada, de modo que só será permitida nos próprios casos previstos na Constituição, atendidos os comandos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo que justifique a medida.
Sendo assim, a atividade estatal não pode ser baseada na busca do lucro, mas quando o for, nos exatos casos previstos pela Carta Magna, aplicar-se-á todo o regramento aplicável às entidades privadas.
Finalmente, não pode haver risco a livre concorrência. Neste ponto, o que o tribunal determina é que, com a atuação estatal por meio de pessoa jurídica de direito privado, não pode haver risco a livre iniciativa e ao equilíbrio concorrência através de tratamento tributário favorecido. É o caso, por exemplo, de companhias que atua em regime de monopólio tal como os Correios.
A doutrina tributária traz requisitos com nomenclaturas relativamente diferentes, mas todos eles, ao fim e ao cabo, traduzem basicamente o mesmo pensamento.
Roque Antônio Carraza (2005, p. 214-215), por exemplo, vem dizer que para a aplicação da imunidade tributária recíproca em favor de empresa estatal é preciso o atendimento de três requisitos, quais sejam, 1) a empresa deve prestar serviço público e não privado; 2) a pessoa jurídica que presta o serviço é um poder público por disposição da lei, independentemente da forma jurídica; e 3) a empresa estatal que preste o serviço não persiga a finalidade econômica.
Por sua vez, Humberto Ávila (2012, p. 278) elenca como requisito da imunidade mútua: 1) tratar-se de um serviço público delegado; 2) a entidade que exerce o serviço é – em virtude da lei – um poder público; e 3) o serviço público é prestado por um ente público que não persegue finalidade econômica.
Nas palavras do autor (Ávila, 2012, p. 280), “a imunidade recíproca alcança todos os serviços públicos, independentemente da forma jurídica utilizada pela entidade que presta. O essencial é examinar se o serviço prestado tem caráter de serviço público, ou se é compatível com um negócio privado. Vale dizer: a imunidade abrange as empresas públicas e as sociedades de economia mista, desde que prestem serviço público.”
Assim, para que possam fazer jus aos benefícios da imunidade recíproca, as empresas públicas e sociedades de economia mista devem exercer atividade que justifique o gozo de tal exoneração tributária, de modo que os preceitos da referida imunidade, tais como o pacto federativo, da capacidade contributiva e da isonomia, determinem a extensão da regra.
4.3.1 O caso da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT)
Trata-se do caso mais emblemático a respeito do tema imunidade recíproca extensível à empresa estatal. No caso, o município de São Borja promovia execução fiscal em desfavor da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos para lhe cobrar tributos de sua competência e que entendia ser devido.
Em defesa da tese municipal, alegava-se que a imunidade tributária recíproca, nos termos da Constituição Federal de 1988, não abrangia a ECT, na medida em que a carta política não assegura tal privilégio às empresas públicas, abarcando tão somente as autarquias e as fundações.
Por outro lado, alegava a empresa pública que o art. 173, § 2º, da Constituição Federal se aplica exclusivamente às empresas públicas que exploram atividade econômica em regime de concorrência com o setor privado, não incluindo, pois, em relação aos Correios, dado que a empresa se caracteriza por ser uma empresa pública federal prestadora de serviço público de competência exclusiva da União, não perdendo o serviço postal a sua natureza e regime públicos tão somente por ter sido delegado a uma empresa pública.
Ademais, destacou-se que a ressalva à imunidade da União, de suas autarquias e fundações, contida no art. 150, VI, § 3º, da Constituição Federal, a impostos sobre o patrimônio quando houver contraprestação ou pagamento de preço ou tarifa pelo usuário, aplica-se exclusivamente à prestação de serviço público por particulares.
Deste modo, os Correios gozam da imunidade tributária intergovernamental recíproca, uma vez que a essencialidade da prestação do serviço de correios estabelecida constitucionalmente como direito de todos à sua utilização, amalgamado ao princípio de que o serviço público precisa ser necessariamente contínuo, regular, correto e impessoal, o que leva a conclusão inquestionável de que os bens postos na execução dos serviços postais são inatingíveis por interferência ou oneração que possam inviabilizar ou mesmo obstar a sua fruição pela coletividade.
Analisando o mérito da questão, o Supremo Tribunal Federal veio pela primeira vez inovar no ordenamento jurídico brasileiro para aplicar os benefícios da imunidade tributária recíproca aos Correios por entender, na visão do Ministro relator, que a referida empresa pública, ao se dedicar a prestação de serviço público em regime de caráter exclusivo, tem natureza de verdadeira autarquia, não se sujeitam ao regime jurídico das empresas privadas, quanto às obrigações trabalhistas e tributárias, não sendo aplicável, nesse caso, o art. 173, §1º, da Constituição.
Nesta toada, o fundamento utilizado no Recurso Extraordinário nº 407.099-5/RS foi exatamente aqueles já elencados aqui de que se tratava de empresa estatal que presta serviço público de natureza obrigatória em regime de monopólio estatal, senão vejamos o importante trecho do voto do Min. Carlos Velloso, relator do emblemático julgado:
Visualizada a questão do modo acima – fazendo-se a distinção entre empresa pública como instrumento da participação do Estado na economia e empresa pública prestadora de serviço público – não tenho dúvida em afirmar que a ECT está abrangida pela imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, “a”), ainda mais se considerarmos que presta ela serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, que é o serviço postal, CF, art. 21, X(Celso Antônio Bandeira de Mello, ob, cit., p. 636).
Dir-se-á que a Constituição Federal, no § 3º, do art. 150, estabelecendo que a imunidade do art. 150, VI,”a”, não se aplica: a) ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados; b) ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário; c) nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel, à ECT não se aplicaria a imunidade relacionada, por isso cobra ela preço ou tarifa do usuário.
A questão não pode ser entendida dessa forma. È que o § 3º do art. 150 tem como destinatário entidade estatal que explore atividade econômica regida pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. No caso, tem aplicação a hipótese inscrita no § 2º do mesmo art. 150.
(STF, 2ª T., RE 407.099/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 22.06.2004, DJ 06.08.2004, p.62)
Isto posto, restou fixado pelo tribunal que as empresas públicas prestadoras de serviço público, tais como os Correios, distinguem-se das que exercem atividade econômica, de modo que as primeiras, quando prestarem serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, estará incluída na imunidade estabelecida no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal.
Eis a ementa do mencionado e importante julgado:
As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C. F., art. 150, VI, a.
(RE 407.099-5 /RS, 2a Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, Data de Publicação: 6.8.2004)
Os contornos da imunidade recíproca estendida às empresas públicas e sociedade de economia mista pareciam bem definidos pelo Tribunal Constitucional ao fim da análise do mencionado caso. Em se tratando de serviço público prestado em natureza exclusiva e obrigatória, aplicava-se o benefício, qualquer outra atividade exercida em concorrência com a iniciativa privada restaria fora da regra imunizante.
Todavia, em 2013, o Supremo Tribunal Federal veio a proferir nova decisão que vai um pouco de encontro com essa lógica, alargando o entendimento anteriormente explanado.
O que ocorreu foi que, nos termos do precedente do RE 407.099, muitos municípios passaram a tributar com ISS os serviços prestados pelos Correios quando se tratava de serviços não-exclusivos, ou seja, que a iniciativa privada também pode prestar, como a entrega de encomendas, serviços bancários do banco postal, venda de títulos de capitalização etc.
A lógica aplicada ao julgamento anterior determinaria que o Tribunal tomasse o posicionamento de que não havia nesses casos imunidade, de modo que o tributo cobrado realmente era devido e o recurso dos Correios improcedente. Não foi o que ocorreu.
Para estender a imunidade recíproca mesmo para esses casos em que os Correios atuam em concorrência com a iniciativa privada, o Supremo Tribunal Federal consignou que mesmo no que concerne às atividades exercidas fora do âmbito do serviço postal e correio aéreo nacional, os Correios se sujeitam a um conjunto de restrições não aplicáveis à iniciativa privada, como a obrigatoriedade de se instalar em todos os municípios do país, bem como todas as amarras gerenciais inerentes às pessoas jurídicas de direito público, licitação, concurso público, prestação de contas perante o TCU etc.
Ademais, ressaltou-se que os serviços prestados em regime exclusivo pela empresa são eminentemente deficitários, passando o serviço postal nacional por um momento histórico de baixa, uma vez que vem sendo paulatinamente substituído por meios mais modernos e eficientes de comunicação, de modo que as receitas obtidas na prestação de serviço não-exclusivo é toda destinada ao custeio das atividades deficitárias as quais a empresa tem o dever constitucional de manter, caracterizando uma espécie de subsídio cruzado, justificando, assim, a aplicação da imunidade recíproca de forma indistinta.
Eis a ementa do referido julgado:
Recurso extraordinário com repercussão geral. 2. Imunidade recíproca. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. 3. Distinção, para fins de tratamento normativo, entre empresas públicas prestadoras de serviço público e empresas públicas exploradoras de atividade. Precedentes. 4. Exercício simultâneo de atividades em regime de exclusividade e em concorrência com a iniciativa privada. Irrelevância. Existência de peculiaridades no serviço postal. Incidência da imunidade prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido.
(STF - RE: 601392 PR, Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 28/02/2013,Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-105 DIVULG 04-06-2013 PUBLIC 05-06-2013)
4.3.2 O caso da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO)
A INFRAERO – Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – é uma empresa pública federal cuja criação foi autorizada pela Lei nº 5.682/72 e fundada no dia 31 de maio de 1973 com o objetivo de explorar e administrar serviços de infraestrutura aeroportuária em todo o território nacional, sendo a responsável pela administração dos principais aeroportos do Brasil.
Em suma, a referida empresa pública atua em sua atividade-fim na execução, em regime de monopólio, de serviços de infraestrutura aeroportuária, função outorgada à União Federal, nos termos do art. 21, XII, “c”, da Constituição Federal.
Neste precedente do Supremo Tribunal Federal, o município de Salvador buscava executar a INFRAERO com base em certidão de dívida ativa relativa ao ISS supostamente devido pela empresa em razão do serviço prestado.
Os argumentos para a incidência tributária são basicamente aqueles já enfrentados nos capítulos anteriores os quais são muito bem resumidos por Flávio Henrique de Oliveira[2] na seguinte passagem:
Assim, quando há contraprestação ou pagamento dos usuários pela prestação de serviços públicos – o que ocorre sob a forma de tarifas ou preços –, com muito mais razão estará afastada a imunidade pleiteada pela INFRAERO, haja vista que, nas mesmas condições, nem as autarquias nem as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público podem invocar o referido benefício (art. 150, § 3º, CF).
Outrossim, além dos recursos decorrentes da cobrança de tarifa dos usuários da infraestrutura aeroportuária, é de conhecimento público que a INFRAERO desenvolve uma série de outras atividades que não podem ser descritas como serviços públicos, tais como a administração das concessões de uso de áreas no interior dos aeroportos brasileiros, com finalidade claramente comercial, viabilizando a implementação dos denominados “aeroshoppings”.
Ademais, reitere-se que a simples possibilidade do serviço explorado pela embargante poder ser prestado por outra pessoa de direito privado, nos termos do art. 21, XII, CF, em razão de autorização, concessão ou permissão, evidencia o total descabimento da extensão da imunidade de impostos à INFRAERO, isto porque a concessão deste benefício à empresa estatal que presta os seus serviços em regime de concorrência com o particular acarretaria a quebra da isonomia e faria surgir uma flagrante concorrência desleal.
Em sua defesa, a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária alegou, tal qual os Correios, que se tratava de serviço público prestado em caráter obrigatório e em regime de monopólio, de modo que a ausência de finalidade lucrativa da atividade findava por afastar a incidência da regra do art. 173, § 1º, da Constituição Federal, razão pela qual deveria ser lhe estendida a imunidade tributária recíproca estabelecida no art. 150, VI, “a”.
O Supremo Tribunal Federal seguiu o entendimento firmado no emblemático caso dos Correios, estendendo assim a imunidade tributária recíproca para a empresa publicam, nos seguintes termos:
A INFRAERO, que é empresa pública, executa, como atividade-fim, em regime de monopólio, serviços de infra-estrutura aeroportuária constitucionalmente outorgados à União Federal, qualificando-se, em razão de sua específica destinação institucional, como entidade delegatária dos serviços públicos a que se refere o art. 21, inciso XII, alínea "c", da Lei Fundamental, o que exclui essa empresa governamental, em matéria de impostos, por efeito da imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, "a"), do poder de tributar dos entes políticos em geral. Conseqüente inexigibilidade, por parte do Município tributante, do ISS referente às atividades executadas pela INFRAERO na prestação dos serviços públicos de infra-estrutura aeroportuária e daquelas necessárias à realização dessa atividade-fim.
O ALTO SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA, QUE REPRESENTA VERDADEIRA GARANTIA INSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÃO DO SISTEMA FEDERATIVO. DOUTRINA. PRECEDENTES DO STF. INAPLICABILIDADE, À INFRAERO, DA REGRA INSCRITA NO ART. 150, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO. - A submissão ao regime jurídico das empresas do setor privado, inclusive quanto aos direitos e obrigações tributárias, somente se justifica, como consectário natural do postulado da livre concorrência (CF, art. 170, IV), se e quando as empresas governamentais explorarem atividade econômica em sentido estrito, não se aplicando, por isso mesmo, a disciplina prevista no art. 173, § 1º, da Constituição, às empresas públicas (caso da INFRAERO), às sociedades de economia mista e às suas subsidiárias que se qualifiquem como delegatárias de serviços públicos.
(STF - RE: 363412 BA, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 21/03/2007, Data de Publicação: DJ 28/03/2007<span id="jusCitacao"> PP-00054</span>)
Ademais, neste precedente, o Pretório Excelso manifestou importante lição, qual seja, a de que o fato de a União Federal outorgar, por meio de lei, o encargo de prestar determinado serviço público a uma empresa governamental não lhe retira o atributo de estatalidade que lhe é próprio, sendo tal opção de descentralização organizacional perfeitamente possível na presente ordem constitucional, sem que tal fato signifique renúncia ao benefício da imunidade tributária recíproca, importante instrumento para a realização do princípio federativo estabelecido na Constituição.
Em suma, restou claro que a INFRAERO, apesar de formalmente se apresentar como uma empresa pública, esta características que mais se aproxima de uma autarquia federal, tendo em vista que foi incumbida de executar serviço público por meio de outorga legal, além de ser controlada na sua integralidade pelo Poder Público, o que justifica o tratamento semelhante ao aplicado as demais entidades integrantes da administração indireta.
4.3.3 O caso da Casa da moeda (CMB)
A Casa da Moeda (CMB) é uma empresa pública federal fundada em 8 de março de 1694 pelo rei de Portugal D. Pedro II, em Salvador, com o objetivo de atender a demanda de fabricação de moedas no país. Hoje em dia, ela é responsável, além da execução de serviços de emissão de moeda, pela fabricação de fichas telefônicas e a impressão de selos postais, tudo em regime de monopólio, mediante outorga da União Federal, conforme a competência estabelecida no art. 21, VII, da Constituição.
No caso julgado pelo Recurso Extraordinário nº 610.517, o município do Rio de Janeiro buscava cobrar ISS pela emissão de papel moeda, moeda metálica, selo postal e ficha telefônica, pois, na visão do ente municipal, a empresa pública não faz jus a qualquer tipo de imunidade tributária, seja subjetiva ou objetiva, primeiro por se tratar de empresa pública; segundo, em face da realidade de que o ISS não onera a circulação do bem corpóreo no qual o serviço tenha sido aplicado, e sim a prestação do serviço, gravando, então a circulação de um bem incorpóreo, que é o serviço.
O Min. Celso de Mello, relator do caso, decidiu em sede decisão monocrática pela improcedência do apelo municipal, destacando o fato de que a Casa da Moeda presta serviço público mediante outorga da União em caráter de monopólio, consoante determina o art. 21, VII, da Constituição Federal, de modo que a outorga de delegação à empresa pública não retira a natureza público do serviço prestado.
Eis a ementa da referida decisão:
EMENTA: Casa da Moeda do Brasil (CMB). Empresa governamental delegatária de serviços públicos. Emissão de papel moeda, cunhagem de moeda metálica, fabricação de fichas telefônicas e impressão de selos postais. Regime constitucional de monopólio (CF, art. 21, VII). Outorga de delegação à CMB, mediante lei, que não descaracteriza a estatalidade do serviço público, notadamente quando constitucionalmente monopolizado pela pessoa política (a União Federal, no caso) que é dele titular. A delegação da execução de serviço público, mediante outorga legal, não implica alteração do regime jurídico de direito público, inclusive o de direito tributário, que incide sobre referida atividade. Consequente extensão, a essa empresa pública, em matéria de impostos, da proteção constitucional fundada na garantia da imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, “a”). O alto significado político-jurídico dessa prerrogativa constitucional, que traduz uma das projeções concretizadoras do princípio da Federação. Imunidade tributária da Casa da Moeda do Brasil, em face do ISS, quanto às atividades executadas no desempenho do encargo, que, a ela outorgado mediante delegação, foi deferido, constitucionalmente, à União Federal. Doutrina (Regina Helena Costa, “inter alios”). Precedentes. Recurso extraordinário improvido.
(STF - RE: 610517 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Publicação: 17/06/2013)
Desta feita, conforme já reiteradamente decidido em precedentes anteriores da Corte Constitucional, a delegação da execução de serviço público, mediante outorga legal, não implica alteração do regime jurídico de direito público, especialmente o de direito tributário, que incide sobre referida atividade, razão pela qual a empresa pública, em matéria de impostos, goza da proteção constitucional fundada na garantia da imunidade tributária recíproca.
4.3.4 O caso da Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP):
Este presente caso, julgado no Recurso Extraordinário nº 253.472/SP, trouxe-nos novos elementos a respeito da análise da aplicação da imunidade tributária recíproca até aqui não enfrentados.
É que a Companhia Docas do Estado de São Paulo – CODESP -, ao contrário das outras empresas estatais estudadas, é uma sociedade de economia mista, ou seja, na formação do seu capital social participa o capital privado, deixando no ar a seguinte pergunta: a presença de capital privado na empresa estatal impede a fruição da imunidade tributária recíproca?
O ponto central da presente polêmica está no fato de que o reconhecimento da imunidade tributária recíproca para as sociedades de economia mista, por esta terem a participação do capital privado, poderia, em última análise, beneficiar o particular investidor, em detrimento dos princípios da livre concorrência e da liberdade de iniciativa.
Neste ponto, seria, inclusive, irrelevante o fato de a sociedade de economia mista atuar em regime de monopólio ou não, tendo em vista que, tendo ela ações negociáveis na bolsa de valores, os papéis da empresa disputam o interesse dos investidores em igualdade de condições com qualquer outra companhia de qualquer outro ramo de atuação, de modo que a imunidade tributária poderia inserir um elemento prejudicial à concorrência dado o fato de que a empresa pública teria uma redução significativa nos seus custos, maximizando assim os lucros da companhia que em último caso virão a ser distribuídos entre particulares.
Nesta toada, o que o município de São Paulo fez ao defender a legitimidade da sua execução em relação ao IPTU foi bater na tese de que a sociedade de economia mista é criada com o fito de explorar atividade econômica, dado o fato que possui participação do capital privado, invocando, portanto, a incidência da regra do art. 173 da Constituição Federal.
Não foi a tese que predominou no julgado. Primeiramente, o Ministro Relator do caso, o Min. Joaquim Barbosa, ressaltou que, para a aplicação da imunidade tributária recíproca em relação às empresas públicas e sociedades de economia mista, é necessário a observância de três regras básicas, nas suas palavras, teste de três estágios explicados da seguinte forma:
1. A imunidade tributária recíproca se aplica à propriedade, bens e serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federado, cuja tributação poderia colocar em risco a respectiva autonomia política. Em conseqüência, é incorreto ler a cláusula de imunização de modo a reduzi-la a mero instrumento destinado a dar ao ente federado condições de contratar em circunstâncias mais vantajosas, independentemente do contexto.
2. Atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares, devem ser submetidas à tributação, por apresentarem-se como manifestações de riqueza e deixarem a salvo a autonomia política.
3. A desoneração não deve ter como efeito colateral relevante a quebra dos princípios da livre-concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita. Em princípio, o sucesso ou a desventura empresarial devem pautar-se por virtudes e vícios próprios do mercado e da administração, sem que a intervenção do Estado seja favor preponderante.
Desta forma, entendeu-se por estender a imunidade tributária recíproca no que tange aos bens pertencentes à União e que estavam afetados à CODESP na satisfação da sua atividade-fim, qual seja, a prestação de serviços de administração de porto marítimo outorgados pela Constituição Federal à União nos termos do seu artigo 21, XII, “f”.
Em suma, a natureza do serviço público prestado, aliado ao fato de que é prestado em regime de monopólio, são fatores suficientes para a manutenção do benefício fiscal, não sendo, no caso, relevante o fato de ter participação do capital privado na constituição da sociedade de economia mista em comento, uma vez que a participação privada no quadro societário da CODESP é irrelevante, sendo 99,97% do seu controle acionário pertencente à União, de modo que não há indicação de que a empresa opera com o intuito de auferir lucro, nem há risco de quebra do equilíbrio concorrencial ou da livre iniciativa, pois a CODESP não concorre com outras entidades em sua área de atuação específica.
Assim como em todos os outros demais casos analisados, a sociedade de economia mista, na visão do Supremo Tribunal Federal, caracterizava-se mais como uma instrumentalidade estatal, instituída como forma de otimização da gestão pública por meio da descentralização das atividades que lhe são incumbidas diretamente pela Constituição Federal.
Eis a ementa deste importante julgado:
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA CONTROLADA POR ENTE FEDERADO. CONDIÇÕES PARA APLICABILIDADE DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL. ADMINISTRAÇÃO PORTUÁRIA. COMPANHIA DOCAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (CODESP). INSTRUMENTALIDADE ESTATAL. ARTS. 21, XII, f, 22, X, e 150, VI, a DA CONSTITUIÇÃO. DECRETO FEDERAL 85.309/1980.
1. IMUNIDADE RECÍPROCA. CARACTERIZAÇÃO. Segundo teste proposto pelo ministro-relator, a aplicabilidade da imunidade tributária recíproca (art. 150, VI, a da Constituição) deve passar por três estágios, sem prejuízo do atendimento de outras normas constitucionais e legais: 1.1. A imunidade tributária recíproca se aplica à propriedade, bens e serviços utilizados na satisfação dos objetivos institucionais imanentes do ente federado, cuja tributação poderia colocar em risco a respectiva autonomia política. Em conseqüência, é incorreto ler a cláusula de imunização de modo a reduzi-la a mero instrumento destinado a dar ao ente federado condições de contratar em circunstâncias mais vantajosas, independentemente do contexto. 1.2. Atividades de exploração econômica, destinadas primordialmente a aumentar o patrimônio do Estado ou de particulares, devem ser submetidas à tributação, por apresentarem-se como manifestações de riqueza e deixarem a salvo a autonomia política. 1.3. A desoneração não deve ter como efeito colateral relevante a quebra dos princípios da livre-concorrência e do exercício de atividade profissional ou econômica lícita. Em princípio, o sucesso ou a desventura empresarial devem pautar-se por virtudes e vícios próprios do mercado e da administração, sem que a intervenção do Estado seja favor preponderante.
2. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. EXPLORAÇÃO DE SERVIÇOS DE ADMINISTRAÇÃO PORTUÁRIA. CONTROLE ACIONÁRIO MAJORITÁRIO DA UNIÃO. AUSÊNCIA DE INTUITO LUCRATIVO. FALTA DE RISCO AO EQUILÍBRIO CONCORRENCIAL E À LIVRE-INICIATIVA. Segundo se depreende dos autos, a Codesp é instrumentalidade estatal, pois: 2.1. Em uma série de precedentes, esta Corte reconheceu que a exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres caracteriza-se como serviço público. 2.2. O controle acionário da Codesp pertence em sua quase totalidade à União (99,97%). Falta da indicação de que a atividade da pessoa jurídica satisfaça primordialmente interesse de acúmulo patrimonial público ou privado. 2.3. Não há indicação de risco de quebra do equilíbrio concorrencial ou de livre-iniciativa, eis que ausente comprovação de que a Codesp concorra com outras entidades no campo de sua atuação. 3. Ressalva do ministro-relator, no sentido de que “cabe à autoridade fiscal indicar com precisão se a destinação concreta dada ao imóvel atende ao interesse público primário ou à geração de receita de interesse particular ou privado”. Recurso conhecido parcialmente e ao qual se dá parcial provimento.
Importante destacar, no entanto, que tão somente a atuação da companhia em regime de monopólio não é suficiente para determinar a incidência da imunidade tributária, sendo determinante para o caso a aferição se há intuito lucrativo, bem como o percentual de participação do capital particular na companhia.
Com base nisso, aliás, o STF já chegou a indeferir a aplicação da imunidade tributária recíproca em relação à Petrobras, pois restou demonstrado nos autos o intuito lucrativo da sociedade de economia mista, de modo que, ainda que esta atue em regime de monopólio, legítima é a incidência tributária sobre os fatos geradores relativos ao exercício da sua atividade. Veja-se, pois, o teor do julgado[3]:
2. É irrelevante para definição da aplicabilidade da imunidade tributária recíproca a circunstância de a atividade desempenhada estar ou não sujeita a monopólio estatal. O alcance da salvaguarda constitucional pressupõe o exame (i) da caracterização econômica da atividade (lucrativa ou não), (ii) do risco à concorrência e à livre iniciativa e (iii) de riscos ao pacto federativo pela pressão política ou econômica.
3. A imunidade tributária recíproca não se aplica à Petrobras, pois:
3.1 Trata-se de sociedade de economia mista destinada à exploração econômica em benefício de seus acionistas, pessoas de direito público e privado, e a salvaguarda não se presta a proteger aumento patrimonial dissociado do interesse público primário;
3.2 A Petrobrás visa à distribuição de lucros, e, portanto, tem capacidade contributiva para participar do apoio econômico aos entes federados;
3.3 A tributação de atividade econômica lucrativa não implica risco ao pacto federativo.
1. As imunidades são limitações ao poder de tributar consistentes na delimitação da competência tributária constitucionalmente conferida aos entes políticos. Trata-se, pois, de uma delimitação negativa de competência tributária que impede o ente tributante de exercer sua competência tributaria sobre determinados fatos ou determinadas pessoas.
2. Não é demais lembrar que há quem diga que a imunidade não é uma limitação ao pode de tributar, mas a sua própria delimitação, por meio da qual se exclui do campo tributável determinadas situações sobre as quais ele não quer que incida este ou aquele gravame fiscal, cuja instituição é autorizada, em regra, sobre o gênero de situações pelo qual aquelas estariam compreendidas.
3. Na interpretação das normas imunizantes, deve-se utilizar os mesmos métodos hermenêuticos clássicos utilizados pelo direito em geral, gramatical, histórico, sistemático e teleológico.
4. Não é demais lembrar que nenhum método interpretativo apresentado é prevalente ou preponderante aos demais. Em verdade, o interprete deve buscar o sentido da norma, se possível, utilizando todos eles em um verdadeiro processo dialógico entre o texto e o interprete.
5. O mandamento de que a norma de exceção deve ser interpretada de forma restritiva, ou, na linguagem do Código Tributário Nacional, de forma literal, deve ser visto com parcimônia no âmbito da aplicação das imunidades tributárias, devendo o interprete buscar o alcance da norma imunizante de acordo com a própria lógica do sistema constitucional como um todo, de modo a dar a máxima eficácia ao texto constitucional.
6. A isenção distingue-se da imunidade na medida em que esta se qualifica como uma hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada, ao passo que a isenção é forma de exclusão do crédito tributário o qual, a despeito do surgimento da obrigação tributária e da constituição do seu respectivo crédito, tem o seu pagamento dispensado por norma infraconstitucional, por mera opção política circunstancial, suscetível de revisão a qualquer tempo.
7. A não-incidência, genericamente falando, pode ocorrer sob três hipóteses, sendo a primeira delas já adianta, qual seja a imunidade tributária, diferenciando-se das demais por estar constitucionalmente qualificada como uma situação que, em condições normas estaria dentro da competência tributante, mas, por opção do constituinte, ao se delimitar a referida competência, retirou-lhe parte do seu âmbito de atuação. Os outros dois casos são meros acontecimentos que não guardam correspondência com a hipótese de incidência legalmente prevista. No primeiro caso, o ente tributante tem a competência para tributar, mas mantém a hipótese fora de previsão legal como ensejadora de obrigação tributária, enquanto no segundo, não há sequer competência para instituir tal tributo.
8. Já a alíquota zero caracteriza-se por ser a situação em que o ente tributante tem a competência para instituir o tributo, efetivamente o faz, o fato gerador ocorre conforme previsto na norma instituidora, mas, por mero efeito de cálculo, a prestação devida é equivalente a zero.
9. No que tange às suas classificações, a imunidade tributária pode ser dividida entre subjetiva, objetiva ou mista, tudo a depender quanto ao parâmetro de concessão, se relativo a uma pessoa determinada, a uma situação específica, ou aos dois critérios em conjunto; de acordo com a sua origem, pode ser ainda ontológica ou política; específica ou geral, no que tange a sua intensidade ou amplitude; e ainda condicionada ou incondicionada, no que se refere à necessidade ou não de regulamentação infraconstitucional
10. Neste sentido, a imunidade tributária recíproca caracteriza-se por ser subjetiva, ontológica, geral e incondicionada.
11. A imunidade intergovernamental recíproca é espécie de imunidade prevista no art. 150, VI, "a", da Constituição Federal, determinando que é vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios instituir impostos sobre o patrimônio, renda e serviços uns dos outros. Trata-se de instituto que tem natureza de cláusula pétrea na medida em que promove o princípio do pacto federativo, tendo como origem histórica precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso “McCulloch vs. Maryland”, no qual se decidiu por proibir o estado de Maryland de cobrar imposto sobre a selagem com estampilhas de uma filial do banco oficial (bank of U.S.), consagrando assim os três preceitos que inspiraram o constituinte brasileiro desde a Constituição de 1891, quais sejam: 1) a competência para tributar por meio de impostos envolve, eventualmente, a competência para destruir; 2) a própria Constituição não admite nem que a União destrua os Estados-membros, nem que estes se destruam mutuamente; e 3) nem a União pode exigir impostos dos Estados-membros, nem estes da União, ou uns dos outros.
12. Os §§ 2º e 3º do mencionado artigo são responsáveis pela regulamentação da referida imunidade, determinando o parágrafo segundo a extensão da regra imunizante às autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo poder público, desde que o patrimônio, a renda e os serviços estejam vinculados às suas finalidades essenciais, ao passo que o parágrafo terceiro exclui do âmbito da imunidade o patrimônio, a renda e o serviço relativos à exploração de atividade econômica regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
13. Além do princípio federativo, a imunidade tributária recíproca tem fundamento na isonomia entre os entes políticos, bem como no preceito da capacidade contributiva, princípio constitucional que norteia a tributação. Sendo, assim, é importante notar que o ente político, se não pode, pelo menos não deveria manifestar capacidade contributiva, sendo completamente ilógico que um ente integrante da federação contribua financeiramente com outro por meio da tributação.
14. Em conclusão, a imunidade tributária recíproca mostra-se como uma das formas de promoção do princípio federativo, deixando claro quase que de forma unânime a doutrina pátria, além do próprio Supremo Tribunal Federal, que se trata de cláusula pétrea, bem como de espécie de imunidade tributária de natureza ontológica, de modo que, ainda que não estivesse prevista de forma expressa no texto constitucional, seria possível extraí-la do seu conteúdo como espécie de norma implícita, razão pela qual, mesmo que se tentasse suprimir tal instituto, primeiro que não seria possível por violar o art. 60, §4º, da Constituição Federal de 1988, segundo que de nada produziria efeito, pois decorrente diretamente dos já mencionados princípios da isonomia entre os entes políticos e da capacidade contributiva.
15. Quanto ao alcance dos termos patrimônio, renda e serviço, prevalece o entendimento jurisprudencial e doutrinário de que este abrange todos os impostos, de modo que a classificação trazida pelo CTN deve ser desprezada, na medida em que tal interpretação satisfaz melhor os princípios consagrados da Constituição Federal.
16. Ademais, consoante reiterado entendimento do Supremo Tribunal Federal, a referida imunidade constitucional abarca tão somente os imposto no que tange às espécies tributárias à luz da teoria pentapartite, pois, em se tratando de espécie de tributo não-vinculado, a sua cobrança constitui efetivo exercício de supremacia de um ente político sobre o outro, surgindo o fato gerador sempre através de uma manifestação externa de capacidade contributiva por parte do contribuinte, o que não deve ocorrer em relação aos órgãos estatais. Por outro lado, no que tange aos tributos vinculados, a sua cobrança decorre efetivamente de uma prestação positiva do ente estatal, de modo que o tributo cobrado seria uma verdadeira contraprestação ao serviço oferecido.
17. Finalmente, no que tange à aplicação da imunidade tributária recíproca em face das empresas públicas e das sociedades de economia mista, à primeira vista, seria constitucionalmente inviável, na medida em que o legislador constituinte excluiu da incidência tributária tão somente as autarquias e fundações públicas – entes verdadeiramente públicos, que se integram à estrutura política do país. Tal regra é dotada de considerável relevância, tendo em vista que protege o mercado de privilégios fiscais proporcionados pela imunidade, o que certamente ensejaria uma concorrência desleal.
18. A jurisprudência do STF, contudo, relativiza a norma, determinando a extensão da regra imunizante em alguns casos específicos, respeitadas rigorosas condições.
19. Primeiramente a empresa estatal, seja empresa pública, seja sociedade de economia mista, deve exercer atividade típica de Estado, além disso, a atuação deve ser feita sem a intenção de lucro, ao passo que não pode haver risco a livre concorrência.
20. Neste caso, não obstante o ente estatal atuar sob a forma de pessoa jurídica de direito privado, sob o manto de uma empresa estatal, trata-se de mera organização formal, pois efetivamente a atividade exercida é tipicamente estatal. Sendo assim, tais entidades, com características sobremodo peculiares, revestem-se da indumentária de autarquias, com estas se assemelhando em demasia.
21. Assim, para que possam fazer jus aos benefícios da imunidade recíproca, as empresas públicas e sociedades de economia mista devem exercer atividade que justifique o gozo de tal exoneração tributária, de modo que os preceitos da referida imunidade, tais como o pacto federativo, da capacidade contributiva e da isonomia, determinem a extensão da regra.
22. Foi exatamente isso o que ocorreu nos casos analisados neste trabalho em relação aos Correios, à INFRAERO, à Casa da Moeda e à CODESP.
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[3] STF - RE 285.716 - AgR/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, Data de Publicação: 26.3.2010.
Advogado, graduado em direito pela Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARAUJO, Vitor Carvalho Curvina Costa de. A imunidade tributária recíproca e as empresas estatais prestadoras de serviço público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46406/a-imunidade-tributaria-reciproca-e-as-empresas-estatais-prestadoras-de-servico-publico. Acesso em: 10 dez 2024.
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