RESUMO: O presente artigo visa expor a necessidade do envio imediato ou não do inquérito policial para o tribunal competente diante de eventual encontro fortuito de diálogos do investigado com aqueles que não são alvo da interceptação telefônica, mas possuem prerrogativa de foro.
PALAVRA CHAVE: Prerrogativa de foro, interceptação telefônica, encontro fortuito de provas, remessa imediata do inquérito policial.
Diante do contexto político do país, muito se discuti a proporcionalidade do poder de atuação da polícia judiciária, principalmente no que tange aos métodos investigativos. Ademais, a sofisticação da atividade delituosa também demandou um reaparelhamento estatal quanto à atividade policial investigativa. Todavia, em razão deste crescimento no trato investigativo, muitas questões demandaram a atuação do poder judiciário, em razão das celeumas jurídicas proporcionadas pelo anseio da atividade policial em buscar elementos de informação para subsidiar os inquéritos policiais. Entre elas, citamos a questão do encontro fortuito de conversas daqueles que possuem a prerrogativa de foro e o consequente envio imediato ou não das intercepções ao tribunal competente.
Muito comum no decorrer da atividade investigativa, se obter fato diverso ou ainda alusão de pessoas que possuem prerrogativas processuais e não são o alvo da investigação. Tal ponto, este denominado serendipidade[1], enseja o seguinte questionamento: Deveria a autoridade policial remeter imediatamente os autos para o juízo competente daquele que tem a prerrogativa, já que obteve as conversas de forma fortuita, mas não tinha autorização judicial para investigá-lo? Tal indagação, requer algumas explicações prévias. Primeiramente devemos ter em mente, conforme já assegurado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal[2] que para haver investigação de autoridade que detenha prerrogativa de foro, deve a autoridade policial representar pela interceptação telefônica diretamente ao tribunal competente. Trata-se de comando constitucional, ao assegurar as prerrogativas daqueles que detenham foro privilegiado. Assim, a título hipotético, caso um delegado de Polícia Federal queira desenvolver sua atividade investigativa sobre algum deputado federal ou ainda senador da república, deverá requerer tal permissão perante o Supremo Tribunal Federal. Não poderá instaurar de ofício o presente caderno investigativo para então depois comunicar ao tribunal competente, devendo antes, pedir autorização prévia. Tal argumento é sedimentado pela atuação legislativa e pela alta corte brasileira[3]. Vejamos trechos do julgado.
"EMENTA Reclamação. Constitucional. Alegação de usurpação de competência originária do Supremo Tribunal Federal. Plausibilidade jurídica da questão. Deputado federal. Prerrogativa de foro. Artigo 102, inciso I, alínea b, da Constituição Federal. (...) 1. Revela-se patente, no caso, a usurpação das competências constitucionais da Corte (art. 102, inciso I, alínea b, da CF/88), uma vez que foram instaurados, de ofício, dois inquéritos policiais (...) 2. É da jurisprudência da Corte o entendimento de que a polícia judiciária não está autorizada a instaurar, de ofício, inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais (PET nº 3.825/MT-QO, Tribunal Pleno, Relator para acórdão o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 4/4/08). (STF - Rcl: 12484 DF, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 29/04/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-189 DIVULG 26-09-2014 PUBLIC 29-09-2014)". (grifo pessoal).
Ciente da premissa acima, a questão se torna tormentosa quando a autorização é obtida no juízo de primeiro grau, visto que não há investigação sobre alguém que possua prerrogativa de foro, porém, no decorrer da investigação da interceptação telefônica há encontro fortuito de conversas ou fatos de pessoas investidas de prerrogativa e não alvo de investigação. Nesse momento, sob pena das provas se tornarem ilícitas, se discuti o envio ou não imediato dos autos para o tribunal competente daquele que foi citado ou tem algum relacionamento com os investigados.
O doutrinador, Renato Brasileiro, com a mastreia que lhe é peculiar nas suas obras, afirma que o envio do inquérito policial ao tribunal competente dependerá do conteúdo daquilo que foi interceptado. Entende o processualista penal que a simples captação com alguém que possua a prerrogativa de foro com aquele que seja objeto de investigação não enseja necessariamente o envio imediato dos autos ao foro competente para fins de autorização da investigação. Seria verdadeira interpretação precitada diante de simples encontro fortuito de conversas captadas pela interceptação, tornando a remessa desnecessária. Em suma, como ele bem explica, para que haja a remessa do inquérito policial, se deve antes avaliar a idoneidade e a suficiência dos dados colhidos a partir da interceptação telefônica, de forma que se confirme que a conversa obtida fortuitamente seja considerada objeto de investigação para fins de autorização. O doutrinador, vai além, e declara ainda que "nem mesmo a referência a favores pessoais, a contatos com terceiros, a negociações suspeitas implica, de per si, a inarredável conclusão de que se está diante de práticas criminosas merecedoras de imediata apuração[4]".
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também perfilha o mesmo entendimento, e entende que a mera menção ao nome de um parlamentar do congresso nacional, durante as interceptações de um investigado, sem maiores elementos ou indícios acerca de seu envolvimento no fato delituoso, não há o que se falar em necessidade de remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal para o processamento do inquérito policial[5]. Passamos ao julgado.
"CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. INQUÉRITO POLICIAL. NULIDADE. DEPUTADO FEDERAL. TRAMITAÇÃO PERANTE A JUSTIÇA FEDERAL. INOCORRÊNCIA. C.F., ART. 102, I, b. (...). II. - A simples menção de nome de parlamentar, em depoimentos prestados pelos investigados, não tem o condão de firmar a competência do Supremo Tribunal para o processamento de inquérito. III. - H.C. indeferido. (STF - HC: 82647 PR, Relator: CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 18/03/2003, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 25-04-2003)". (grifo pessoal).
No entanto, a autoridade policial competente deve mensurar, desde o primeiro momento que se obteve o encontro fortuito das conversas interceptadas, se há ou não envolvimento da autoridade com prerrogativa de foro, sob pena de invalidar os atos posteriores à interceptação. Inclusive, a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema e sustentou que é possível que pessoas com prerrogativas processuais apareçam no decorrer de uma interceptação telefônica sem que isso impeça a continuidade das investigações. Todavia, acentua a referida Corte que tomando conhecimento que há envolvimento de alguém com prerrogativa, deverá haver remessa imediata dos autos não podendo postergar tal envio, sob pena de tornar a investigação ilícita[6]. Vejamos o julgado nesse sentido.
"Posta a questão nesses termos, é necessário asseverar, sem qualquer juízo de mérito, que logo no início do monitoramento surgiram diálogos que apontavam, desde o início da apuração, para o compulsório deslocamento da investigação ao STF. Ainda assim, aquele Juízo que presidia a investigação optou por prosseguir na condução do inquérito por meses a fio.
E tal raciocínio se aplica tanto à operação VEGAS, quanto à operação MONTE CARLO, pois em ambas as autoridades processantes valeram-se do mesmo expediente: investigaram os parlamentares, coletaram o máximo possível de material probatório, realizaram diligências complementares pessoais contra parlamentares para só então suscitarem o possível deslocamento de competência. (...) o juízo de origem, mesmo quando já constavam autoridades com prerrogativa de foro regularmente na investigação, inclusive em organogramas da policia e com diligências investigativas pessoalmente voltadas contra deputados e senadores, ainda assim a investigação prosseguiu por meses perante Juízo incompetente, sem que os autos fossem remetidos ao STF. (...)" (grifo pessoal).
Os termos acima deixam concluir que a captação fortuita de diálogos provenientes de pessoas com foro especial com o investigado, não impõe, por si só, a remessa imediata do inquérito policial ao tribunal competente daquele que possui a prerrogativa. Deve haver um juízo prévio, a partir dos dados obtidos na interceptação, se de fato, a autoridade com prerrogativa está envolvida na atividade delituosa investigada a partir da interceptação. Como já explanado, a mera menção do nome ou simples relação afetiva, ainda que frequente, não ensejam a remessa imediata dos autos ao tribunal competente. O comando jurisprudencial pedi relevância no conteúdo obtido fortuitamente pela interceptação, de forma que se torne necessária a remessa dos autos foro competente e consequentemente o torne um investigado.
REFERÊNCIA
GOMES, Luiz Flávio. Natureza jurídica da serendipidade nas interceptações telefônicas. Disponível em http://www.lfg.com.br. 18 de março de 2009.
BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal. 4ª ed. Editora juspodivm, 2016, Material complementar. Pág. 15.
TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. Editora juspodivm, 2015.
BRASILEIRO, Renato. Legislação Especial Criminal Comentada. 4ª ed. Editora juspodivm, 2016.
[1] De acordo com Gomes (Legislação criminal especial, op. cit. p. 474), “essa estranha palavra significa algo como sair em busca de uma coisa e descobrir outra (ou outras), às vezes até mais interessante e valiosa. Vem do inglês serendipity, onde tem o sentido de descobrir coisas por acaso. Serendip era o antigo nome da ilha do Ceilão (atual Sri Lanka). A palavra foi cunhada em 1754 pelo escritor inglês Horace Walpole, no conto de fadas Os três príncipes de Serendip, que sempre faziam descobertas de coisas que não procuravam”.
[2] STF, Pleno, Inq. 2.411 QO/MT, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 74 24/04/2008.
[3] STF. Reclamação: 12484 DF, Relator: Ministro DIAS TOFFOLI, Julgamento: 29/04/2014, 1ª Turma, Publicação: DJe-189 DIVULG 26-09-2014 PUBLIC 29-09-2014.
[4] BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal. 4ª ed. Editora juspodivm, 2016, Material complementar.
[5] STF, 2a Turma, HC 82.647/PR, Relator. Min. Carlos Velloso, DJ 25/04/2003.
[6] STJ, 6a Turma, HC 307.152/GO, Relator. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 19/11/2015, DJe 15/12/2015.
Advogado, Professor de Direito Processual Penal e Legislação Especial Penal, Pós Graduado em Direito Público com ênfase nas Ciências Criminais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Andrei Fragoso Rocha de. Entendimento doutrinário e jurisprudencial a respeito do envio imediato ou não do inquérito policial para tribunal competente diante do encontro fortuito de provas relacionado à pessoa com prerrogativa de função. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 nov 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47790/entendimento-doutrinario-e-jurisprudencial-a-respeito-do-envio-imediato-ou-nao-do-inquerito-policial-para-tribunal-competente-diante-do-encontro-fortuito-de-provas-relacionado-a-pessoa-com-prerrogativa-de-funcao. Acesso em: 03 nov 2024.
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