RESUMO: Analisa a introdução do chamado juiz das garantias prevista na PL 156/09 (o novo CPP), através de uma sucinta exposição da importância da proteção dos direitos fundamentais para alcance do Estado Democrático de Direito. Além de estabelecer uma compreensão do instituto dentro da realidade jurídica penal do país.Avalia a consistência da inovação com a necessidade de remodelação do Direito Processual Penal, para que este se adeque aos novos ditames do ordenamento pátrio, respeitando a escolha constitucional pelo sistema acusatório.
PALAVRA-CHAVES: Direito Processual Penal; direitos fundamentais; juiz das garantias; novo CPP; Constituição da República; sistema acusatório.
ABSTRACT: Analyzes the introduction of the called judge of the guarantees judge in the PL 156/09 (the new CPP), through a succinct exposition of the importance of protection of fundamental rights for the reach of the Democratic State of Right. In addition to establishing an understanding of the institute inside the criminal juridical reality of the country. Evaluates the consistency of innovation with the necessity for reshuffle Criminal Procedural law, so that fits the new dictates of patriots order, respecting the constitutional choice by the system accusatory.
KEYWORDS:Criminal Procedural Law; fundamental rights; guarantee judge; new CPP; Republic Constitution; accusatory system.
I - INTRODUÇÃO:
A afirmação e conquista dos direitos fundamentais na ótica espacial e temporal decorre de significantes processos de luta. Os direitos à vida, liberdade, integridade física, por exemplo, mesmo na contemporaneidade, sofrem constantes ameaças nas suas estruturas básicas, necessitando de constante proteção.
A história dos direitos fundamentais mescla-se com a evolução da sociedade e dos sistemas jurídicos nacionais, assim, a delimitação e estabilização de tais direitos subordinaram-se e subordinam-se, indubitavelmente, a aspectos econômicos, políticos, religiosos e culturais. De fato, o Direito é fruto da sociedade, logo seus retrocessos e avanços decorrem da atuação dos componentes sociais.
É evidente a autonomia e capacidade regente adquirida pelos direitos fundamentais em seu desenvolvimento, não se podendo pensar em um ordenamento jurídico aceitável sem o mínimo substancial de direitos humanos. Sendo que a sobrelevação dos direitos fundamentais intimamente ligou-se ao Constitucionalismo Moderno, configurando aqueles o espírito, a essência, a raiz deste, ao ponto, da inexistência ou ineficácia deles conduzir a desnudação do sentido de uma Constituição, tornando-a um complexo normativo morto, um simples texto.
No entanto, existe uma fronteira extensa entre a previsão formal de direitos fundamentais e a efetivação material e ampla deles. Os Países estão em sua maioria longe de garantir uma proteção digna e relevante aos cidadãos, sendo que o Estado Democrático Direito aonde ao menos é pensado, torna-se uma utopia ante as mazelas sociais e econômicas. É neste contexto que fica evidente o principal desafio político/jurídico no contexto mundial – a efetivação de direitos – assim, louváveis são as contribuições do jurista português Noberto Bobbio:
O problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político.
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.1
Por óbvio, o sustentáculo de um direito fundamental não reside em si mesmo ou na sua simples previsão normativa, mas na contínua luta da humanidade para garantir sua preservação e realização.
II - O DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA E A ÓTICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
Ante ao constante crescimento da criminalidade no Brasil tem-se cada vez mais ânsia de punir, “a opinião publicada” (um contrassenso da opinião pública) incute na população a ideia cada dia maior que a solução para os problemas do país estão nas cadeias, sendo os presídios a via de escape para uma sociedade mais segura e justa, na qual os “homens do bem” poderão estar livres das ameaças dos “inimigos” (traficantes, assaltantes, entre outros).
Criou-se com substrato na intensa violência uma sociedade do espetáculo, baseada na divulgação massiva da criminalidade e na constante afirmação da falência punitiva da legislação penal. Apresentando-se como solução a necessidade do aumento de penas e de restrições das liberdades.
Assim, o exercício do dito direito de punir é a mais esperada e conclamada postura do Estado, sendo que os direitos penal e processual penal são utilizados como instrumentos da implementação da política punitivista, com fito a justificar a criação de legislações simbólicas e arbitrárias que incutem na população que a solução para violência reside no agravamento de penas e tratamentos penais.
O uso indiscriminado da legislação penalista, neste contexto, colide com os princípios da subsidiariedade do direito penal, da restrição mínima das liberdades individuais, como com qualquer outro princípio que tenha por base a aplicação mínima e excepcional da máquina penal.
Por outro lado, é cada vez mais evidente que a sociedade brasileira jamais alcançará o equilíbrio pela via das prisões, os governos devem, antes de tudo, para evitar a explosão de problemas sociais, agir para garantir o bem-está da coletividade, ou seja, antes de se restringir direitos fundamentais das pessoas, o Estado deve primeiramente garanti-los e tornando-os reais. Ou seja, atuando o poder público nos variados setores da vida social, respeitando e assegurando a dignidade de cada membro, tomando para si a responsabilidade de atuar amplamente pelo interesse público, poder-se-á pensar numa sociedade com menos conflitos e disparidades - o problema, novamente vale lembrar, é de materialização dos direitos fundamentais.
É neste cenário que se insere o dilema da função do direito penal e do direito processual penal, não podendo ser compreendidos como meios de uso irresponsável pelo Estado, mas sim, como meios excepcionais utilizados em relação aos demais instrumentos jurídico/sociais.
Pelo contrario, principalmente, o processo penal apresenta peculiaridade marcante, pois ao mesmo tempo em que representa um caminho para punição, ele é uma forma de garantir direitos básicos na ordem do Estado Democrático de Direito.
Pensando-se desta forma, o Direito Processual Penal comporta-se como bloqueio ao arbítrio, possibilitando ao acusado a possibilidade de defender-se perante o Estado.
O desafio reside em construir com coerência um sistema que possa estabelecer uma interferência verdadeiramente excepcional em matéria penal, assegurando aos cidadãos mecanismos de construção democrática das decisões judiciais que poderão estabelecer mudanças essenciais em suas vidas.
Portanto, exige-se a materialização dos direitos fundamentais tanto na garantia do bem comum, como também na legislação penal e processual, em nítido contraponto ao discurso e a realidade legislativa atual.
III - PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO E O SISTEMA ACUSATÓRIO
É a partir da compreensão acerca da dupla função do processo penal, isto é, da existência correlata de um instrumento de aplicação do direito penal e de um mecanismo de respaldo de direitos básicos e obstáculo à arbitrariedade do poder público, que se pode fixar uma visão acerca do processo muito além da simplória relação instrumento e finalidade, para compreendê-lo como fenômeno complexo, vivo e autônomo de construção jurisdicional.
Já prelecionou sobre o tema Calmon de Passos, afirmando que:
Não se concebe que o processo é algo que opera como simples meio, instrumento, mas sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. Não há espaço para entender ser a relação meio/fim entre o chamado direito material e o processo. Não se trata de relação meramente instrumental e sim uma relação integrativa, orgânica, substancial.” Na mesma obra o autor completa que o “devido processo constitucional jurisdicional (...) não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir.²
O processo penal democrático liga-se mais propriamente a segunda faceta do processualista, pois é a partir da fixação conjuntural de um procedimento dialógico, em um sistema de argumentação e contra argumentação, com a livre atuação dos sujeitos processuais nos limites e papeis legalmente determinados que se tem a possibilidade preponderante de alcançar um julgado coerente com os fatos ocorridos, mas não baseado no mito da verdade real e sim na concepção de verdade atingível.
Assim, o viés democrático do processo penal para se configurar deve está ligado a dois eixos: o primeiro está na sua conformidade com a realidade social e econômica da população, numa aplicação dos mecanismos penais observando a excepcionalidade e proporcionalidade; o segundo, diz respeito à natureza interna do processo, realizando-se na garantia do contraditório eficaz, da ampla defesa e do sistema acusatório.
Logo, o corpo interno processual será válido e legítimo meio de exercício da jurisdição estatal quando, por óbvio, como em qualquer outro ramo jurídico, não ficar aquém dos direitos essenciais norteadores do ordenamento. Ao acusado, sem nenhuma excepcionalidade3, pode ser obstado o seu direito à defesa e ao pleno contraditório no transcurso processual, os quais somente podem ser alcançados plenamente sob os delineamentos processuais esculpidos pelo Sistema Acusatório, pleno, ou seja, tanto formal como principalmente material.
O sistema acusatório possibilita uma construção procedimental mais imparcial, sendo que é a partir do distanciamento de funções, com a devida separação de cada órgão ou sujeito relativamente ao papel a ser exercido. Assim, em regra, cabe à acusação alegar e comprovar os fatos arrolados ao acusado, a defesa desconstruir os argumentos de acusação, sempre respaldando o interesse do acusado e ao julgador decidir conforme as provas e nos limites legais.
Tal sistema tem por características marcantes a oralidade, a publicidade, o contraditório e paridade de armas entre acusação e defesa4. É uma nítida construção histórica, jurídica e política contraposta ao sistema inquisitorial, ao qual reside à indivisibilidade de atribuições persecutórias, cabendo ao mesmo órgão ou sujeito processual a incumbência de deter, interrogar, investigar, produzir provas e julgar o acusado, características nitidamente comprometedoras da imparcialidade das decisões. Tal raciocínio é realizado perfeitamente por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
“O mais importante, contudo, ao sistema acusatório – é bom que se diga desde logo –, é que da maneira como foi estruturado não deixa muito espaço para que o juiz desenvolva aquilo que Cordero, com razão, chamou de “quadro mental paranóico”, em face de não ser, por excelência o gestor da prova, pois quando, o é, tem quase que por definição, a possibilidade de decidir antes
e, depois, sair em busca do material probatório para confirmar a “sua” versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade na crença do imaginário, ao qual toma como verdadeiro”.5
Fica clara importância conceitual e existencial do sistema acusatório, visto que, a partir dos seus caracteres é possível assegurar ao direito processual penal a legalidade e o garantismo irrenunciáveis, próprios dos Estados Democráticos.
No entanto, no Brasil, alguns autores citados por Aury Lopes Jr.6 identificam a existência de um sistema misto, que conjuga aspectos inquisitórios e acusatórios, não existindo como em outros países um sistema acusatório puro, aqui para esses autores a fase pré-processual é inquisitória, enquanto a fase processual é acusatória. Não se pode negar que apesar da Carta Magna em 1988 ter estabelecido o sistema acusatório como princípio informador do processo penal brasileiro, resistem e vivem na nossa legislação previsões (se não inquisitoriais, no mínimo anormais ao sistema acusatório) que comprometem as garantias do acusado e a própria imparcialidade do julgador.
IV – NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: O JUIZ DAS GARANTIAS
Projeto de Lei nº. 156/09 do novo CPP hoje em trâmite na câmara dos deputados visa atender, primordialmente, duas necessidades jurídicas e sociais elementares, a primeira é atualizar a legislação processual penal aos parâmetros elencados na Constituição Federal. O atual código – promulgado em 1941 sob inspiração ditatorial, contaminado pela ideologia fascista como boa parte da legislação da época e sendo uma cópia do código de processo penal italiano de 1930 (Código Rocco-Manzinni) – estruturou-se nos paradigmas do sistema inquisitório, características estas contrapostas ao espírito democrático e ao sistema acusatório que a Constituição erigiu ao patamar de direitos essenciais7.
A segunda necessidade é remodelar a legislação processual para que esta readquira uma natureza sistêmica, natureza esta comprometida com as inúmeras microrreformas e alterações pontuais realizadas ao longo dos tempos que objetivaram, na maioria dos casos, alinhar a legislação aos caminhos da democracia. Porém, acabaram tornando o atual Código de Processo Penal incongruente em vários pontos, configurando uma estrutura amorfa e exigindo um malabarismo interpretativo de seus aplicadores.
É nesta tentativa de alcançar o sistema acusatório e as garantias individuais incorporadas constitucionalmente que o legislador - com louvável lucidez - inovou no PL 156/09 através da previsão do juiz das garantias, desta forma, ocorre um elemento que reinaugura o sistema processual pátrio, elevando o grau de comprometimento legal com os direitos fundamentais ante a intervenção penal e significando um avanço importante ao ordenamento brasileiro, equiparando-o na matéria aos mais modernos ordenamentos contemporâneos (como, p. ex., França, Espanha).
O juiz das garantias terá como atribuição atuar na fase pré-processual sendo responsável, essencialmente, pelo controle da legalidade e zelo dos direitos fundamentais do acusado. Como expõe o caput artigo 14 do PL: “responsável pelo controle da legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário […]”. A atuação deste magistrado terá sempre como pano de fundo o respeito pela dignidade humana e a real necessidade da determinação de medidas limitadoras de direitos, porém, ao contrario dos que alguns afirmam que este será um “juiz de defesa”8, o juiz das garantias será o juiz da legalidade e dos direitos e garantias constitucionais no curso da investigação criminal.
No entanto, a importância da mudança vai muito além da citada atuação acima, indo debruçar-se na possibilidade de garantir ao sistema processual o distanciamento do magistrado que irá julgar o caso da fase anterior ao processo. Algo que há muito sofre críticas, isto é, a figura do juiz das garantia visa possibilitar ao julgador do processo imparcialidade, de maneira que se obste a possibilidade de um julgamento modulado por preconcepções ou preconceitos.
E a realidade tem mostrado que o envolvimento dos magistrados na fase investigativa realmente compromete a almejada imparcialidade, comprometendo-se também os delineamentos constitucionais das funções e atividades dos juízes. Como bem pondera Antonio Sérgio de Moraes Pintombo, citado por Luiz Flávio Gomes:
“a experiência tem mostrado que certos magistrados adotam ativismo excessivo na investigação criminal, ao fazerem reuniões com policiais antes de operações, ao decretarem, de ofício, medidas assecuratórias, e ao chegarem a sugerir que se requeiram prisões cautelares. Longe da proteção dos investigados contra a arbitrariedade, passam eles a tratar com aparência de normalidade práticas policiais em desconformidade com a ordem jurídico-constitucional, tais como o uso indevido de algemas, a exposição pública de pessoas presas, a apreensão desmensurada de documentos e a interceptação telefônica sem restrição temporal, dentre outros abusos. Em simples palavras, perdem tais juízes de direito a equidistância necessária ao exercício da jurisdição, para se tornarem algozes dos investigados — em casos de repercussão, especialmente. Mais tarde, no desenvolvimento do processo-crime, constata-se esse envolvimento do juiz criminal graças a seu vínculo psicológico com as provas produzidas na fase policial, até porque ele, vez ou outra, participou de atos instrutórios que lhe influenciam o convencimento. Torna-se o magistrado um escudeiro da pretensa legitimidade da investigação criminal, em vez de juiz imparcial capaz de enxergar as aberrações que se deram no procedimento investigatório. A aproximação em demasia da hipótese factual desenhada pela policia judiciária também faz com que o juiz criminal passe a ter convicções prévias quanto a fatos e a pessoas investigadas, o que torna a etapa do contraditório no processo criminal apenas teatro formal, do qual o julgador já conhece o fim. Isso acaba nítido por meio da leitura de decisões e sentenças, cujo tempo verbal e vocabulário denotam que o magistrado tem para si premissas quanto à causa sub judice que lhe prejudicam a isenção no momento da coleta e debate das provas na instrução criminal. No curso do processo judicial, esse convencimento precoce se revela com a manifestação antecipada de juízos de certeza sobre a materialidade e autoria de crimes, o que demonstra a supressão do devido processo legal para formação da culpa”. 9
Ainda contribui Luiz Flávio Gomes ao contra argumentar sobre a contrariedade ao juiz das garantias:
[…] Quem se posiciona no sentido de que “o projeto significa um evidente atraso legislativo, apequenando, sem qualquer propósito, as funções dos juízes que passam a não mais buscar a verdade dos fatos e contentando-se com a produzida ou orquestrada pelas partes, em prejuízo ao próprio Estado de Direito” (Fausto de Sanctis), não tem a exata noção de qual é a posição do juiz brasileiro na fase de investigação. O juiz que “busca a verdade dos fatos”, sobretudo na fase investigatória, perde completamente sua imparcialidade e, claro, não pode presidir a fase processual (propriamente dita), sob pena de nulidade absoluta.10
Lembrar-se-á das palavras de Jacinto Nelson de Miranda – citadas anteriormente – sobre o “quadro mental paranóico” de Cordero e sua coerência com sistema inquisitorial. Ora, com a existência ainda de tais anomalias jurídicas se ver quão longe o atual modelo e a prática dos tribunais estão do organismo acusatório puro ou no mínimo preponderante.
A exigência de imparcialidade revela a principal e verdadeira missão do julgador, isto é, não de investigar, nem perseguir o delito, mas julgá-lo. A imparcialidade determina ao juiz que não se envolva nos interesses do acusado, da acusação ou da vítima – devendo agir com neutralidade a fim de produzir sua decisão.
Por outro lado, a criação do juiz das garantias não visa e não irá acabar com a figura do inquérito presidida pelos delegados de polícia, como se tem preconizado11, a presidência das investigações realizadas pelos policias não mudará de titular, o juiz das garantias apenas será um complemento da investigação, atuando somente mediante provocação e visando garantir direitos e o respeito à legalidade. Coerente é a exposição feita pelo relator do PL 156/09 no senado, Senador Renato Casagrande (PSB/ES):
“Todavia, é preciso ter claro que o juiz das garantias difere do juiz das varas de inquérito policial, hoje instituídas em algumas capitais, como São Paulo e Belo Horizonte. É que o juiz das garantias deve ser compreendido na estrutura do modelo acusatório que se quer adotar. Por conseguinte, o juiz das garantias não será o gerente do inquérito policial, pois não lhe cabe requisitar a abertura da investigação tampouco solicitar diligências à autoridade policial. Ele agirá mediante provocação, isto é, a sua participação ficará limitada aos casos em que a investigação atinja direitos fundamentais da pessoa investigada. O inquérito tramitará diretamente entre polícia e Ministério Público. Quando houver necessidade, referidos órgão dirigir-se-ão ao juiz das garantias. Hoje, diferentemente, tudo passa pelo juiz da vara de inquéritos policiais.” 12
É inevitável a enorme repercussão gerada pela previsão do juiz das garantias, outra forma não poderia ser, visto que, objetiva-se uma profunda modificação no atual modelo, ademais, a necessidade para efetivação desta inovação uma grande evolução na cultura jurídica penal do país. Vozes importantes levantam-se contra o instituto, utilizando de inúmeros argumentos, dos quais destaca Maurício Zanoide de Moraes13 como os mais frequentes: a afirmação da desnecessidade do juiz das garantias, haja vista, os juízes já preservarem as garantias do acusado e as limitações orçamentárias do Poder Judiciário em âmbito nacional14.
Porém acompanhando o raciocínio do autor, o primeiro argumento é elidido facilmente quando se estabelece que a importância da inovação vai além da defesa de direitos e da legalidade da investigação. Como explicado anteriormente, esta tem como característica elementar assegurar a imparcialidade do juízo que proferirá a decisão de mérito.
O outro requer uma análise mais profunda, visto que, tem coerência com realidade precária do Poder Judiciário, este atualmente enfrenta limitações financeiras, estruturais e de servidores, além do mais, as configurações territoriais do país são mais um empecilho. Todavia, tais problemas não são insuscetíveis de serem contornados, requerem tempo e esforços múltiplos dos diferentes agentes do Estado, inclusive, o PL na sua atual redação não estabelece prazo para implantação do instituto, prevendo a competência das normas de organização dos tribunais para designação dos juízes das garantias, ressaltando assim, a flexibilidade da mudança para o atendimento das peculiaridades nacionais.
Não se pode, por outro lado, negar obediência aos ditames constitucionais, nem fechar os olhos a falência do atual sistema processual pátrio determinada pela sua incompatibilidade com Estado Democrático de Direito e suas exigências. Trata-se antes de tudo de uma questão de planejamento e empenho estatal, não é fácil a realização, no entanto, os benefícios a serem alçados são o caminho para compatibilização do direito processual e da própria cultura jurídica penal com o espírito da Constituição da República, algo ainda muito longe de ser alcançado.
V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
É salutar a introdução desse novo magistrado no ordenamento, o PL 156/09 traz a tão sonhada mudança ao sistema processual, oxigenando-o e reconstruindo suas bases assentadas na Constituição. Não se pode negar que muito ainda deve ser mudado na sociedade brasileira para realmente vivermos uma democracia dentro do império das leis, todavia, passos longos estão sendo dados nesta busca pelos direitos humanos.
Resta clara, portanto, a importância do juiz das garantias ao processo penal, para que este possa caminhar ao lado dos direitos fundamentais, livre de arbitrariedades e imparcialmente, capaz de conceber um processo baseado na argumentação racional de seus sujeitos e na construção democrática da justiça.
Os desafios foram lançados, resta ao Estado e a sociedade fazerem com que se observe e se concretize a inovação. Pois, para um processo penal digno e louvável é necessário encarar a mudanças com responsabilidade e comprometimento.
VI – REFERÊNCIAS
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BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
BORGES, José Ademir Campos. Juiz de garantias: luxo ou necessidade? Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2746, 7 jan. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/18227>. Acesso em: 03 dez. 2015.
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COELHO. Carlos Frederico Nogueira. O ABERRANTE “JUIZ DAS GARANTIAS” NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO. Disponível em: <http://www.confrariadojuri.com.br/artigos/juiz-garantias.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2015.
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SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Processo constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza, SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord). Hermenêutica e jurisdição constitucional: estudos em homenagem ao Professor José Alfredo de Oliveira Baracho. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
SANCTIS, Fausto Martin de. Juiz de garantias é obstáculo ao processo. Disponível em:<http://www.conjur.com.br/2009-dez-09/criacao-juiz-garantias-obstaculo-celeridade-processual>. Acesso em: 10 dez. 2015.
NOTAS:
¹ BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, pg. 25.
² JJ. Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 52.
3 Pois não se pode admitir a teoria do direito penal do inimigo, a qual prevê a flexibilização de direitos e garantias humanas dependo da natureza do autor e do contexto do delito.
4 LEONE, Giovanni, Manuale di diritto processuale penale. Napoli: Jovene, 1983, p. 8.
5 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O papel do novo juiz no processo penal”. Empório do Direito, publicado em: 16 de abril de 2015. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/o-papel-do-novo-juiz-no-processo-penal-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/>. Acesso em: 21 novembro de 2015
6 LOPES JR., Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da instrumentalidade garantista. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
7 LUZ, Gustavo de Oliveira da. Juiz das garantias: ainda na busca do sistema constitucional acusatório. Jus Navegandi, Teresina, ano 16, n. 2960, 9 ago. 2014. Disponível em: <htpp://jus.com.br/revista/texto/19724>. Acesso em: 21 novembro de 2015.
8 COELHO. Carlos Frederico Nogueira. O ABERRANTE “JUIZ DAS GARANTIAS” NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. Disponível em: <http://www.confrariadojuri.com.br/artigos/juiz-garantias.pdf>. Acesso em: 22 novembro. 2015.
9 GOMES, Luiz Flávio. O juiz das garantias projetado pelo novo código de processo penal. Disponível em: < www.novacriminologia.com.br.>. Acesso em: 02 dezembro. 2015.
10 Op. cit.
11 BARROS FILHO, Mário Leite de. Da inconstitucionalidade do juiz de garantias. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2049, 9 fev. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12302>. Acesso em: 02 dezembro. 2015.
12 Relatório final do PL 156/09 apresentado no Senado Federal.
13 MORAES, Maurício Zanoide de. Quem tem medo do “juiz das garantias”? Boletim do IBCCRIM. São
Paulo, ed. especial, CPP, ago. 2010.
14 FERNANDES. Abel Gomes. “JUIZ DAS GARANTIAS”: inconsistência científica; mera ideologia – como se só um juiz já não fosse garantia. Revista CEJ. Brasília, Ano XIV, n. 51, p-98-105, out./dez. 2013.
Advogado e Técnico Jurídico Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ) e com pós-graduação lato sensu em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Gustavo Pereira. Novos paradigmas da persecução criminal: o juiz das garantias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jan 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48901/novos-paradigmas-da-persecucao-criminal-o-juiz-das-garantias. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
Por: Marcela Eugenia Gonçalves
Por: Ana Julia Possebom Bologna
Por: Fernanda Gouvea de Carvalho
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