RESUMO: Recentemente, o Supremo Tribunal Federal pôs fim à polêmica envolvendo a possibilidade de quebra do sigilo das operações financeiras diretamente pela administração tributária, independentemente de autorização judicial, na forma prevista na Lei Complementar n°. 105/2001, hipótese que, na ocasião, foi declarada constitucional pela Suprema Corte. O teor do julgado provoca certa aversão da população em geral, em virtude da possibilidade de devassa dos dados das operações financeiras realizadas pelas pessoas físicas e jurídicas, o que, em tese, seria protegido pelo direito fundamental à privacidade. Com isto em mente, este artigo pretende, por meio de conclusões obtidas a partir de estudos doutrinários e jurisprudenciais, apresentar um contraponto aos argumentos contrários à Lei Complementar n°. 105/2001, já amplamente explorados pela comunidade jurídica em geral, enriquecendo o debate sobre o tema. Privilegia-se o interesse arrecadatório do Fisco, através do incremento dos processos de fiscalização e da redução dos ilícitos tributários, o que se faz especialmente necessário no atual contexto de queda da arrecadação, que vem forçando o Estado brasileiro a reduzir sua atuação em setores sociais de suma importância, como a saúde, a educação e a previdência social, atingindo especialmente as parcelas mais necessitadas da população.
Palavras-chave: Privacidade, Sigilo Financeiro, Lei Complementar n°. 105/2001.
Sumário: 1. Introdução. 2. A importância do sigilo financeiro para a ordem econômica. 3. O sigilo financeiro na Lei Complementar n°. 105/2001. 4. Da ausência de violação ao direito fundamental à privacidade: transferência do sigilo ao fisco. 5. Da ausência de cláusula de reserva de jurisdição. 6. Do dever fundamental de pagar tributos. 7. Considerações finais. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu art. 5°, inciso X, os direitos à intimidade e à vida privada, e no inciso XII a inviolabilidade do sigilo de dados.
Paralelamente a esses direitos, a CF/88 faculta à administração tributária "identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte" (art. 145, § 1°), como um instrumento de aferição da capacidade contributiva.
Com base nesse dispositivo constitucional, o Congresso Nacional editou a Lei Complementar n° 105/01[1], cujo art. 5°, caput,[2] prevê que as instituições financeiras deverão informar à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
Por sua vez, o art. 6°, caput,[3] permite que a administração tributária da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios examine documentos, livros e registros de instituições financeiras, se houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso.
Os referidos dispositivos legais geraram grande polêmica quanto à sua constitucionalidade, em virtude da tensão com os direitos à vida privada e inviolabilidade do sigilo de dados, os quais, segundo os defensores da inconstitucionalidade dos arts. 5° e 6° da LC n°. 105/2001, só poderiam ser relativizados mediante pronunciamento judicial, e, ainda assim, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
Por outro lado, segundo a tese pró Fazenda Pública, não haveria quebra, mas transferência do sigilo à Administração, nos moldes do art. 198 do Código Tributário Nacional e art. 5°, § 5°, da LC n°. 105/2001. Ademais, haveria autorização constitucional para tanto, sediada no art. 145, § 1°.
Ainda, segundo os defensores da constitucionalidade da Lei Complementar em questão, recairia sobre os contribuintes um dever fundamental de pagar tributos, teoria defendida por parcela da doutrina pátria, que autorizaria a adoção, por parte do Fisco, de mecanismos rigorosos de fiscalização, a fim de permitir a eficiência da arrecadação de tributos, que, afinal, é de onde provém a maior parte da receita destinada a concretização dos direitos fundamentais, em especial os direitos sociais.
Em um primeiro momento, o Supremo Tribunal Federal, ao examinar a matéria em fevereiro de 2013, no Recurso Extraordinário n°. 389.808[4], definiu, por 5 votos à 4, que a quebra do sigilo seria inconstitucional.
Entretanto, a polêmica teve fim no início de 2016, com o julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF[5], nas quais o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade dos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 e dos seus decretos regulamentadores. Entendeu a Corte Suprema que não há, na hipótese, quebra de sigilo e ofensa a direito fundamental.
O resultado do julgamento em apreço, ao consagrar a tese favorável à Fazenda Pública, é objeto de grande irresignação social, tendo em vista a suposta devassa perpetrada no patrimônio do contribuinte. Contudo, uma análise mais atenta da LC n°. 105/2001 e dos Decretos que a regulamentam, demonstra que o direito à privacidade do contribuinte não é posto em risco.
2. A IMPORTÂNCIA DO SIGILO FINANCEIRO PARA A ORDEM ECONÔMICA
Antes de adentrarmos no estudo da Lei Complementar n°. 105/2001, sobretudo na polêmica que envolve a possibilidade de acesso direto do Fisco a dados de operações financeiras realizadas pelos contribuintes, e a fim de demonstrar a magnitude desta discussão, é importante ter em mente que, atualmente, a quase totalidade dos negócios é efetivada com intermediação bancária, de forma que o acesso a tais informações permite conhecer não só a situação financeira da pessoa física ou jurídica a quem elas pertencem, mas também "sobre seus negócios, suas preferências, seus gastos, ingressos, hábitos e aquisições"[6]. Deste modo, vê-se que a importância do sigilo bancário se mostra ainda mais acentuada nos dias atuais.
Em se tratando de pessoa jurídica, a quebra do sigilo bancário pode constituir uma forma de burla ao princípio da livre concorrência (art. 170, IV, CF), na medida em que o conhecimento de seus dados pode determinar estrategicamente a atuação de seus concorrentes, fornecedores ou clientes[7].
Para o cenário geral da economia de um dado país, o grau de sigilo conferido às operações financeiras também apresenta repercussões relevantes, uma vez que é fator determinante do fluxo de capitais que ingressará ou permanecerá em seu território. Isto porque o emprego de um aparato de fiscalização menos incisivo pode ser utilizado como técnica de captação de recursos, como fazem a Suíça, Luxemburgo, Líbano e o Uruguai, entre outros países chamados de paraísos fiscais[8].
Percebe-se, portanto, que a razão da acentuada polêmica envolvendo a relativização do sigilo financeiro pela LC n°. 105/01 é que, além de permitir ampla discussão no plano teórico, a matéria se refere a aspecto de grande importância para a economia do país, principalmente para as pessoas jurídicas.
3. O SIGILO FINANCEIRO NA LEI COMPLEMENTAR N°. 105/2001
Como visto, a LC n°. 105/01 é uma lei geral sobre o sigilo financeiro, regulamentada, em âmbito Federal, pelos Decretos n°. 3.724/2001 e 4.489/2009. Esta Lei foi aprovada em 13 de dezembro de 2000, após amplos debates no Senado e na Câmara dos Deputados, especialmente no que toca ao conteúdo dos seus arts. 5° e 6°[9].
Como regra geral, a LC n°. 105/01 resguarda o sigilo das operações financeiras, ao dispor em seu art. 1°, que "as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados". Desse modo, recai sobre os seus dirigentes, empregados ou ex-empregados o dever de não divulgar as informações que tiverem acesso em razão das suas atividades.
Tomando por base o rol de operações financeiras elencado pelo § 1° do art. 5°, da LC n°. 105/01, afirma José Paulo Baltazar Júnior que "a proteção da lei é ampla, incluindo empréstimos, depósitos, descontos, locação de cofre, custódia de títulos, valores recebidos por quem não é correntista, ou não mantém contrato com o banco, e mesmo informações pré-contratuais" [10].
Por outro lado, relativizando a regra do sigilo consagrada no art. 1°, os arts. 5° e 6° da LC n°. 105/01 preveem as seguintes possibilidades de acesso direto pelo Fisco aos dados das operações financeiras realizadas pelos contribuintes:
"Art. 5° O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços".
"Art. 6° As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente".
Nota-se, pois, que a fiscalização fazendária pode se dar de duas maneiras: a) fiscalização-vigilância, continuada ou rotineira, que consiste no acompanhamento contínuo das atividades, como ocorre no art. 5°, caput, LC n°. 105/01; b) fiscalização intermitente, que se destina a examinar documentos ou obter informações sobre fatos delimitados, ou por amostragem, hipótese revelada no § 4° do art. 5° e no art. 6° [11].
Neste contexto, percebe-se que a LC n°. 105/01 não previu a necessidade de autorização judicial para que o Fisco acessasse determinados dados referentes a operações financeiras, na forma dos seus arts. 5° e 6°, o que gerou a polêmica abordada neste estudo.
Vale destacar que esta possibilidade já era admitida pelo art. 38 da Lei n°. 4.595/64 (revogado pela LC n°. 105/01). Porém, a partir do julgamento do Recurso Especial n°. 37.556, em 1994, passou-se a entender que a quebra poderia se dar apenas em razão de autorização judicial, posição que se consagrou na jurisprudência pátria [12].
Frise-se que, a despeito do posicionamento acima citado, a jurisprudência nunca abandonou a ideia de que, assim como qualquer outro direito fundamental, o sigilo financeiro não é absoluto, podendo ceder diante de outros direitos, sobretudo em razão do interesse público, observada a regra da proporcionalidade [13].
Com o advento da LC n°. 105/01, voltou à tona a polêmica acerca da possibilidade de quebra do sigilo financeiro pela autoridade fazendária sem autorização judicial, em razão da expressa autorização neste sentido levada a efeito pelos seus arts. 5° e 6°.
Como dito, a polêmica teve seu fim com o julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859, nas quais o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade dos referidos arts. 5º e 6º.
A análise da Suprema Corte, para a solução desta controvérsia, girou em torno das seguintes questões, que serão respondidas no decorrer deste estudo: Há violação ao direito fundamental à privacidade? A quebra do sigilo financeiro está coberta pela cláusula da reserva de jurisdição?
4. DA AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE: TRANSFERÊNCIA DO SIGILO AO FISCO
Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra Martins[14] entendem que a relativização do sigilo financeiro e do direito à privacidade deve se pautar pela existência de um "direito à organização e ao processo", segundo o qual a quebra do sigilo financeiro deverá observar regras procedimentais precisas, estabelecidas pelo legislador, a fim de evitar que essas informações sejam desviadas do fim para o qual foram obtidas.
Neste sentido, buscando preservar a privacidade do contribuinte, o art. 198 do Código Tributário Nacional veda "a divulgação por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades".
Segundo Eduardo Sabbag[15], o art. 198 do CTN busca operar uma verdadeira transferência do sigilo para o Fisco, preservando os direitos fundamentais à privacidade e ao sigilo bancário, embora resguardando igualmente a função fiscalizadora da Fazenda Pública.
Nessa senda, no julgamento das ADIs n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, o Supremo Tribunal Federal entendeu que somente haveria que se falar em quebra de sigilo se houvesse autorização para circulação ou exposição dos dados das operações financeiras, ou seja, se os dados obtidos pelo Fisco pudessem ser levados ao público.
De igual modo, a Ministra Carmem Lúcia, em Voto exarado no julgamento do RE n°. 389.808, entendeu que "não está autorizado por lei a dar a público, mas apenas transferir para um outro órgão da administração, para o cumprimento das finalidades da Administração Pública, aqueles dados".
Com efeito, a LC n°. 105/01 consagra expressamente a transferência do dever de sigilo para o Fisco, ao determinar no art. 5°, § 5°[16] que as informações prestadas pelas instituições financeiras devem ser conservadas sob sigilo.
Inclusive, aplica-se tratamento rigoroso à quebra indevida do sigilo financeiro, tipificando tal conduta como crime e responsabilizando pessoal e diretamente o servidor que se valer indevidamente destas informações, assim como responsabilizando objetivamente a entidade pública, no caso de o servidor ter agido conforme orientação oficial. Vejamos o teor dos arts. 10 e 11 da LC n°. 105/01, ipsis litteris:
Art. 10. A quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem omitir, retardar injustificadamente ou prestar falsamente as informações requeridas nos termos desta Lei Complementar.
Art. 11. O servidor público que utilizar ou viabilizar a utilização de qualquer informação obtida em decorrência da quebra de sigilo de que trata esta Lei Complementar responde pessoal e diretamente pelos danos decorrentes, sem prejuízo da responsabilidade objetiva da entidade pública, quando comprovado que o servidor agiu de acordo com orientação oficial.
Vale dizer, ainda, que a LC n°. 105/01 não promove uma devassa aos dados do contribuinte, na medida em que as informações prestadas restringem-se a identificação dos titulares das operações e aos montantes globais mensalmente movimentados, sendo vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a origem ou a natureza dos gastos efetuados [17].
Assim, concluiu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, que trata-se de dados cadastrais genéricos, aos quais a Fazenda Pública já tem acesso em virtude da declaração anual de imposto de renda.
Apenas no caso de indícios de cometimento de ilícito fiscal, pode ser realizado um exame mais aprofundado das informações financeiras de determinado contribuinte, exigindo-se, para tanto, a existência de processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso[18].
Por fim, vale mencionar conclusão no mesmo sentido alcançada pelo Ministro Ayres Britto, no RE n°. 389.808, para quem a Constituição Federal, no seu art. 5°, incisos X e XII, não vedou o acesso aos dados das operações financeiras, mas o vazamento, a divulgação ao público destes dados. E no caso da LC n°. 105/01, ao cuidar da transferência dos dados financeiros, é imposta ao órgão destinatário destas informações a cláusula da confidencialidade, cuja quebra, como visto, gera responsabilização civil, administrativa e criminal do responsável.
Por tais razões, entendeu o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, que a LC n°. 105/2001 não promove a quebra de sigilo das operações financeiras, na medida em que transfere este dever para o fisco, resguardando o direito à privacidade.
5. DA AUSÊNCIA DE CLÁUSULA DE RESERVA DE JURISDIÇÃO
Segundo afirmou o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, o fundamento constitucional da possibilidade do acesso direto do Fisco aos dados das operações financeiras realizadas pelos contribuintes, encontra-se no art. 145, § 1°:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
(...)
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Consoante as razões consignadas no inteiro teor do Acórdão, tem-se, de um lado, os direitos fundamentais à privacidade e ao sigilo bancário (CF, art. 5°, incs. X e XII), e, de outro, a autorização dada pela própria Constituição Federal (art. 145, § 1°) para que administração fazendária identifique "o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".
Segundo a Corte Suprema, ambos os dispositivos foram originariamente promulgados em conjunto. Portanto, não há razão para se defender a inconstitucionalidade da hipótese consagrada no art. 145, § 1°, CF, a qual deve ser encarada como uma limitação constitucional aos contornos dos direitos à privacidade e ao sigilo bancário.
Nessa linha de pensamento, José Paulo Baltazar Júnior defende que não é possível inferir do texto constitucional que a autoridade fazendária está impedida de obter acesso aos dados bancários e fiscais dos contribuintes, não havendo, portanto, cláusula da reserva de jurisdição no tocante à privacidade e ao sigilo financeiro, o qual seria "garantido contra particulares ou concorrentes, mas não contra a Fazenda Pública" [19]. Aliás, observa o mencionado autor, a Constituição não somente deixa de proibir, mas autoriza expressamente, em seu art. 145, § 1°, que o Fisco identifique "o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".
O Supremo invoca, ainda, o argumento de que o contribuinte já possui a obrigação legal de revelar anualmente à Receita Federal o conjunto de todos os seus bens, para fins de declaração anual de imposto de renda. Ora, se a administração fazendária já possui acesso ao conjunto maior, que é a relação de todos os bens titularizados por determinada pessoa, sem que para isso tenha que se valer anualmente do Judiciário, por que não poderia ter acesso ao conjunto menor, que são as operações financeiras realizadas pelo contribuinte?
A Corte Suprema lembra, por fim, que as instituições financeiras privadas, em razão de seu ofício, possuem amplo acesso aos dados das movimentações realizadas pelos seus clientes, não havendo que se considerar, que os auditores fiscais da Receita Federal do Brasil, que tem todas as responsabilizações e podem perder seu cargo se descumprirem a lei, são menos responsáveis que os funcionários das instituições financeiras privadas.
Desse modo, concluiu o Supremo Tribunal Federal, no multicitado julgamento, que as previsões dos arts. 5° e 6° da LC n°. 105/2001 não encontram óbice em cláusula de reserva de jurisdição.
6. DO DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR TRIBUTOS
Como visto, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, entendeu que os dispositivos impugnados da LC n°. 105/2001 não promovem a quebra de sigilo e tampouco ofendem a direito fundamental.
O supracitado julgamento teve como norte uma corrente de pensamento vigente no direito tributário, que defende a existência de um dever fundamental de pagar tributos. Por todos os defensores da apontada teoria, cite-se o professor português José Casalta Nabais, autor do livro intitulado "O dever fundamental de pagar impostos" (Editora Almeidina).
Para entendermos a mencionada teoria, devemos ter em mente que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, segundo a doutrina, é classificada como uma constituição dirigente, uma vez que estabelece metas a serem cumpridas pelo Estado, notadamente através de normas programáticas [20].
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos [21].
Consagra, ainda, um rol extenso de direitos sociais, impondo uma atuação estatal positiva no sentido de concretizá-los. São direitos sociais, que devem ser assegurados pelo Estado Brasileiro, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados [22].
Para concretizar estes objetivos, evidentemente, o Estado Brasileiro precisa de vultosas fontes de arrecadação, o que se dá, sobretudo, através da tributação.
Logo, correlato aos direitos individuais, sociais, econômicos e culturais, surge, como condição sine qua non, o dever fundamental de pagar tributos, sem o qual o Estado fica impossibilitado de cumprir as suas finalidades.
Com base nisso, entendeu o Supremo Tribunal Federal, no multicitado julgamento das ADIs n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, que este dever fundamental de pagar tributos justifica a declaração de constitucionalidade dos arts. 5° e 6° da LC n°. 105/2001.
Isto porque, na visão da Suprema Corte, ao instituir mecanismos mais rígidos de fiscalização, o Estado Brasileiro estará coibindo a ocorrência de ilícitos na seara tributária, o que propicia um incremento da arrecadação.
Em última análise, permite-se a concretização dos objetivos traçados na Constituição Federal, dos quais as camadas mais necessitadas da população se beneficiam mais diretamente, como a saúde e a educação. Isto, especialmente, em um contexto político-econômico que exige o reequilíbrio das contas públicas, as quais seriam impactadas positivamente com a inibição dos ilícitos tributários.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, neste estudo, apresentar um contraponto aos argumentos contrários à Lei Complementar n°. 105/2001, já amplamente explorados pela comunidade jurídica em geral, enriquecendo o debate sobre o tema.
Constatou-se, inicialmente, a existência de grande polêmica envolvendo a possibilidade de acesso direto do Fisco aos dados referentes às operações financeiras realizadas pelos contribuintes, independentemente de decisão judicial, conforme previu a LC n°. 105/2001.
Embora judicialmente a questão tenha se pacificado, através do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, no sentido da constitucionalidade dos arts. 5° e 6° da LC n°. 105/2001, prevalece grande irresignação social e por parte da comunidade jurídica em geral, que entende que os aludidos dispositivos violam os direitos fundamentais à privacidade e ao sigilo bancário.
Primeiramente, evidenciou-se que não há que se falar em quebra de sigilo, conforme entendeu a Suprema Corte no referido julgamento. Isto porque a LC n°. 105/2001 não autoriza a circulação ou exposição dos dados das operações financeiras, na medida em que transfere o dever de sigilo para o Fisco, responsabilizando civil, criminal e administrativamente o servidor que der causa injustamente a divulgação dos dados.
Ademais, reconheceu-se que o acesso direto do Fisco aos dados das operações financeiras não encontra óbice em cláusula de reserva de jurisdição, mas, ao contrário, extrai seu fundamento do art. 145, § 1°, da Constituição Federal, que faculta à administração tributária "identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".
Por fim, demonstrou-se que, acertadamente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de um dever fundamental de pagar tributos, a justificar a constitucionalidade de mecanismos eficazes de fiscalização e arrecadação de tributos, para permitir que o Estado brasileiro assegure os inúmeros direitos sociais previstos na Constituição Federal.
Concluiu-se, nessa linha de pensamento, que as camadas menos abastadas da sociedade são as mais prejudicadas pela sonegação fiscal, posto que dependem especialmente das prestações estatais que visam garantir os direitos sociais. Logo, o incremento da fiscalização tende a favorecer principalmente as parcelas mais necessitadas da população.
Finalmente, entendeu-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal possui grande importância no atual contexto de queda da arrecadação, que vem reduzindo a capacidade do Estado brasileiro de atuar em setores sociais de suma importância, como a saúde, a educação, a previdência social, dentre outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: . Acesso em 25 mai. 2017.
BRASIL. Lei Complementar nº. 105 de 2001. Dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2001. Disponível em: . Acesso em: 25 mai. 2017.
BRASIL. Lei n°. 5.172 de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 out. 1966. Disponível em: . Acesso em: 25 mai. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n°. 389.808/PR. Relator: AURÉLIO, Marco. Publicado no DJ de 09-05-2011. Disponível em Acessado em 25 mai. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. Relator: TOFFOLI, Dias. Publicado no DJ de 21.10.2016. Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11899965>. Acessado em 25 mai. 2017.
JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1. ed. Livraria do Advogado, 2005. 208 p. v. Único.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Sigilo bancário, direito de autodeterminação sobre informações e princípio da proporcionalidade. In Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena, dezembro, 1992.
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 1432 p. v. Único.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 14. ed. São Paulo: Método, 2015. 1028 p. v. Único.
[1] Dispõe sobre o sigilo das operações financeiras e dá outras providências.
[2] Art. 5° O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
[3] Art. 6° As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n°. 389.808/PR. Relator: AURÉLIO, Marco. Publicado no DJ de 09-05-2011. Disponível em Acessado em 25 mai. 2017.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°. nº 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. Relator: TOFFOLI, Dias. Publicado no DJ de 21.10.2016. Disponível em . Acessado em 25 mai. 2017.
[6] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 20.
[7] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 20.
[8] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 20.
[9] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 72 e 73.
[10] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 77.
[11] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 148.
[12] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 150.
[13] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 152.
[14] MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Sigilo bancário, direito de autodeterminação sobre informações e princípio da proporcionalidade. In Repertório IOB de Jurisprudência, 2ª quinzena, dezembro, 1992.
[15] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 1136.
[16] Art. 5° O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
(...)
§ 5° As informações a que refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.
[17] Art. 5° O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.
(...)
§ 2o As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados.
[18] Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.
[19] JUNIOR, José Paulo Baltazar. Sigilo Bancário e Privacidade. 1ª. ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2005, p. 153.
[20] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 14. ed. São Paulo: Método, 2015, p. 23.
[21] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[22] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)
Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Pós-graduada em Direito Constitucional. Advogada.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SPANO, Giuliana Freitas. A quebra do sigilo das operações financeiras sob a ótica da fazenda pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50343/a-quebra-do-sigilo-das-operacoes-financeiras-sob-a-otica-da-fazenda-publica. Acesso em: 08 out 2024.
Por: GABRIEL FERNANDO DE MATOS MOVIO
Por: MARCIO GONDIM DO NASCIMENTO
Por: Ana Beatriz Rodrigues Garcia
Por: Gabriele Stefane Gasques
Precisa estar logado para fazer comentários.