Resumo: A Lei nº 13.982/2020 criou o benefício denominado auxílio emergencial com a finalidade de garantir uma renda mínima aos brasileiros em situação mais vulnerável durante a pandemia do Covid-19, já que muitas atividades econômicas foram gravemente afetadas pela crise. Referida norma prevê parâmetros objetivos para a concessão da benesse e estabeleceu a regra de pagamento de cota dupla em favor da mulher provedora de família monoparental, definida como “grupo familiar chefiado por mulher sem cônjuge ou companheiro, com pelo menos uma pessoa menor de dezoito anos de idade”. Nesse contexto, questiona-se sobre a possibilidade de o homem chefe de família monoparental ser igualmente beneficiário de duas cotas, ainda que a previsão normativa seja expressa no sentido de destiná-la somente às mulheres.
Palavras-chave: auxílio emergencial; covid-19; mulher; família monoparental.
Sumário: 1. Introdução – 2. Requisitos legais para concessão do auxílio emergencial e a previsão de cota dupla – 3. O homem chefe de família monoparental – 4. Considerações Finais – 5. Referências bibliográficas
1. Introdução
A doença causada pelo novo Coronavírus (COVID-19) foi detectada em pacientes hospitalizados na cidade de Wuhan, China, em dezembro de 2019. “Em 30/01/2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a epidemia da COVID-19 constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” (OLIVEIRA, 2020). Epidemia, segundo o dicionário Aurélio, é a “ocorrência súbita, e em número elevado de pessoas, de doença, especialmente infecciosa” (FERREIRA, 2006).
Seguindo o parâmetro da OMS, o Brasil declarou emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo referido vírus, por meio da Portaria nº 188, de 03/02/2020[1]. Logo depois, foi publicada a Lei nº 13.979, de 06/02/2020 estabelecendo medidas para o enfrentamento à doença, dentre elas, o isolamento e a quarentena (art. 2º, I e II).
No dia 11/03/2020, a OMS classificou a doença como pandemia[2]. Pandemia, por sua vez, é o conceito de uma “epidemia que ocorre em grandes proporções, até mesmo por todo o planeta” (FERREIRA, 2006). E, em 02/04/2020, foi publicada a Lei nº 13.982 que estabeleceu medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
A Lei nº 13.982/2020 criou o chamado auxílio emergencial e fixou, em seu art. 2º, parâmetros objetivos para sua concessão. Em seu parágrafo § 3º estabeleceu a regra de recebimento de cota dupla em favor da mulher provedora de família monoparental, definida como “grupo familiar chefiado por mulher sem cônjuge ou companheiro, com pelo menos uma pessoa menor de dezoito anos de idade” (Decreto nº 10.316/2020, art. 2º, V).
Nesse contexto, questiona-se sobre a possibilidade de o homem chefe de família monoparental ser igualmente beneficiário da cota dupla, ainda que a previsão normativa seja expressa no sentido de destiná-la às mulheres.
2. Requisitos legais para concessão do auxílio emergencial e a previsão de cota dupla
Segundo os dados do governo, o auxílio emergencial consiste em um benefício de R$ 600,00 (seiscentos reais) para garantir uma renda mínima aos brasileiros em situação mais vulnerável durante a pandemia do Covid-19, já que muitas atividades econômicas foram gravemente afetadas pela crise[3].
O art. 2º, da Lei 13.982/2020 destina o auxílio para: (i) o microempreendedor individual (MEI); (ii) o contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social e (iii) o trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente inativo que atendam aos seguintes requisitos: (a) ser maior de 18 anos, salvo mães adolescentes; (b) não ter emprego formal ativo; (c) não ser titular de benefício previdenciário ou assistencial, nem beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal, ressalvado o Bolsa Família; (d) que integre família cuja renda mensal seja de até meio salário mínimo por pessoa ou cuja renda total não supere o valor de três salários mínimos e (e) que, no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos).
O § 2º do art. 2º limita o recebimento do auxílio até o máximo de dois membros da mesma família e o § 3º prevê que a mulher provedora de família monoparental tem direito a duas cotas. O Decreto nº 10.316/2020, que regulamente a Lei do auxílio Emergencial, define essa última hipótese como o “grupo familiar chefiado por mulher sem cônjuge ou companheiro, com pelo menos uma pessoa menor de dezoito anos de idade” (art. 2º, V). Nota-se, portanto, que, para ter direito à cota dupla, a mulher precisa ser a única provedora de família composta por pelo menos uma criança ou adolescente (art. 2º, da Lei nº 8.069/90).
A previsão normativa parece atentar para o cenário global de desigualdade de gênero que identifica as mulheres como destinatárias de ausência e violações dos direitos humanos, ao constatar que:
a maior parte dos pobres do mundo são mulheres; a maior parte dos analfabetos são mulheres; a maior parte dos crimes sexuais são praticados contra mulheres; as mulheres e jovens são a maior parte da pessoas traficadas e exploradas sexualmente; quem mais sofre as consequências da falta de assistência e de cuidado na saúde sexual e reprodutiva são as mulheres e as adolescentes e, por fim, a maior parte dos refugiados e deslocados em situações de guerra e conflitos armados, externos e internos, são as mulheres e suas crianças (AZAMBUJA; NOGUEIRA, 2018).
Ainda na perspectiva dos direitos humanos, pode-se afirmar que a teoria de que tais direitos são universais, no sentido de que abarcam todo os seres humanos, na verdade, excluiu e oprime determinadas pessoas e grupos. Isso porque a ideia de ser humano como neutro e universal é, em verdade, a noção referenciada nos interesses e necessidades dos sujeitos dominantes, ou seja, que tem como referencial os homens, não deficientes, brancos, heterossexuais, de classe média. As pessoas que não se enquadram nesse padrão, passam a ser consideradas inferiores – as mulheres, por exemplo. Nesse viés, tanto a predominância masculina em âmbito público, como as relações de dominação na esfera privada são justificadas por questões biológicas e naturais: “os homens são naturalmente aptos a representar os interesses da família no espaço público e as mulheres são naturalmente aptas ao cuidado e à reprodução na esfera privada ou doméstica (PEREIRA, 2013).
A referência teórica é constatada na prática. Documento elaborado pela ONU no Brasil, em julho de 2018, menciona que a escassez de políticas públicas e a divisão sexual do trabalho impactam de forma negativa na renda das mulheres, reduz sua disponibilidade para ingressar no mercado de trabalho, além de favorecer a adesão à trabalhos informais e precários. O documento refere ainda que as tarefas domésticas e o cuidado de pessoas dependentes realizado de forma não-remunerada recai amplamente sobre as mulheres, que destinam 20,1 horas semanais, contra 11,1 horas semanais por parte dos homens[4].
Nesse contexto outro dado é relevante, conforme registros do Censo 2010, estima-se que cinco milhões de jovens sequer tem o nome do pai no documento de identidade[5].
A previsão normativa específica desse tipo de família monoparental cuja chefe é a mulher, ou seja, aquela formada por ela e, pelo menos, mais uma pessoa com menos de 18 anos de idade, e seu direito ao recebimento de cota dupla atende e privilegia a realidade de inúmeros lares brasileiros, em que as mulheres assumem a responsabilidade integral pelo cuidado da casa e dos filhos.
3. O homem chefe de família monoparental
Mas e se a família for monoparental masculina? Ou seja, formada apenas pelo homem, sem cônjuge ou companheiro(a), e com, pelo menos uma pessoa menor de 18 anos, há direito à cota dupla do auxílio emergencial? A legislação não prevê essa hipótese, cuja avaliação será feita a seguir.
O direito à duas cotas do auxílio emergencial, previsto no art. 2º, § 3º, da Lei nº 13.982/2020 exige o preenchimento de três requisitos: (a) que a requerente seja mulher; (b) que essa mulher não tenha cônjuge ou companheiro; (c) que sua família tenha ao menos um integrante com idade inferior a 18 anos.
Da leitura do último requisito, pode-se inferir que a norma traz maior proteção à criança e ao adolescente, garantindo ao seu grupo familiar o recebimento não de uma, mas de duas cotas do benefício. Tal previsão está em consonância com a Constituição Federal, que estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227).
A legislação protetiva no ordenamento jurídico brasileiro inclui ainda o Decreto n.º 99.710, de 21 de novembro de 1990, que introduziu no país a Convenção sobre os direitos da criança, anteriormente ratificado pelo Brasil, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/90.
Foi o projeto da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, apresentado no começo de 1978, pelo governo polonês, à Comissão de Direitos Humanos da ONU que forneceu as bases necessárias à formação da doutrina da proteção integral, que reconhece a infância e a adolescência como fases peculiares do desenvolvimento físico e psíquico do ser humano e vê a criança e o adolescente como sujeitos especiais de direitos (AMARAL E SILVA, 1998).
O ECA, cuja publicação deu-se alguns meses antes do decreto nº 99.710, representa um marco na proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Configura-se em instrumento de tutela moderno, que reproduz as diretrizes traçadas internacionalmente, sendo voltado para a realização da justiça em tão relevante setor da sociedade (CHAVES; FORTUNATO COSTA, 2018).
O referido Estatuto, em complementação à previsão constitucional, exemplifica no que consiste a garantia de prioridade às crianças e aos adolescentes ao prever: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude” (art. 4º, parágrafo único).
Nesse sentido, se o objetivo da norma que criou o auxílio emergencial é privilegiar a criança e o adolescente, ao homem chefe de família monoparental deve ser igualmente assegurado o direito à cota dupla do referido auxílio, sob pena de violação ao princípio da igualdade.
O alcance do princípio da igualdade não está simplesmente em nivelar os cidadãos perante uma norma legal posta, mas também em impedir que uma norma seja editada ou interpretada em desacordo com a isonomia. “A lei deve ser instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. ” (MELLO, 1993).
Raciocínio semelhante foi o que motivou a edição da Lei nº 12.873, de 24/10/2013, promovendo alterações na Lei nº 8.213/91 para equiparar homem e mulher no direito ao salário-maternidade nos casos de adoção (art. 71-A). Além dele, o art. 71-B, da Lei 8.213/91 passou a assegurar que, na hipótese de falecimento da segurada ou segurado que fizer jus ao recebimento do salário-maternidade, o benefício será pago ao cônjuge ou companheiro sobrevivente que tenha qualidade de segurado, com exceção para o caso de falecimento do filho ou de seu abandono (AMADO, 2017). Ou seja, tanto na hipótese de adoção, quanto em situações de falecimento de um segurado, o direito ao benefício do salário-maternidade é assegurado de forma igualitária a homens e mulheres, pois prioriza a criança ou adolescente.
4. Considerações finais
A Lei nº 13.982/2020 que estabeleceu o auxílio emergencial consistente no pagamento de R$ 600,00 (seiscentos reais) em favor de brasileiras e brasileiros em situação de vulnerabilidade, causada pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19), fixou critérios objetivos para sua concessão e, além de limitar o recebimento da benesse para até duas pessoas da mesma família, garantiu à mulher chefe de família monoparental o direito à cota dupla.
Para receber duas cotas, a lei previu os seguintes requisitos: (a) que a requerente seja mulher; (b) que essa mulher não tenha cônjuge ou companheiro; (c) que sua família tenha ao menos um integrante com idade inferior a 18 anos.
Como a norma exige a presença de, pelo menos, uma pessoa menor de 18 anos para o recebimento da cota dupla, pode-se compreender que o objetivo da lei é privilegiar a criança e o adolescente e não apenas a mulher. De modo que, ao o homem chefe de família monoparental, deve ser assegurado o direito a duas cotas, sob pena de violar o princípio da igualdade, constitucionalmente previsto e que, na legislação em análise, deve assegurar igual tratamento a todas as crianças e adolescentes, independente do gênero de quem é seu responsável de forma monoparenal, pai ou mãe, homem ou mulher.
5. Referências Bibliográficas
AMADO, Frederido. Direito previdenciário. Salvador: Juspodivm, 2017.
AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. O mito da imputabilidade penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. In: Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC, 1998.
AZAMBUJA, Mariana Porto Ruwer de; NOGUEIRA, Conceição. Introdução à violência contra as mulheres como um problema de direitos humanos e de saúde pública. Saúde e sociedade. São Paulo, v. 17, n. 3, p. 101-112, Set. 2008 . Disponível em: < https://doi.org/10.1590/S0104-12902008000300011>. Acesso em: 03 ago. 2020.
CHAVES, Eduardo; FORTUNATO COSTA, Liana. Doutrina da Proteção Integral e o Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes. Avances en Psicología Latinoamericana, Bogotá , v. 36, n. 3, p. 477-491, Dec. 2018 . Disponível em: <http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-47242018000300477&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 04 ago. 2020.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1993.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. 6. Ed. Curitiba: Positivo, 2006.
Oliveira, Wanderson Kleber de et al. Como o Brasil pode deter a COVID-19. Epidemiologia e Serviços de Saúde [online]. v. 29, n. 2. Disponível em: <https://doi.org/10.5123/S1679-49742020000200023>. Acesso em 03 ago. 2020.
PEREIRA, Livia Barbosa. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e Justiça: novos contornos das necessidades humanas para a proteção social dos países signatários. 2013. 170 f. teses (Doutorado em Política Social) – Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2013. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13581/1/2013_L%C3%ADviaBarbosaPereira.pdf>. Acesso em 03 ago. 2020.
[1] Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388.> Acesso em 03 ago. 2020.
[2] Disponível em: <https://nacoesunidas.org/organizacao-mundial-da-saude-classifica-novo-coronavirus-como-pandemia/>. Acesso em 03 ago. 2020.
[3] Disponível em: <https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial>. Acesso em 03 ago. 2020.
[4] Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/08/Position-Paper-Direitos-Humanos-das-Mulheres.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2020.
[5] Situação que motivou o Programa Pai Presente pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pai-presente>. Acesso em 04 ago. 2020.
Mestra em direitos humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis - Rede Laureate International Universities (UniRitter), Defensora Pública Federal desde 2009, atualmente lotada na Defensoria Pública da União em Salvador/BA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SETENTA, MARIA DO CARMO GOULART MARTINS. Auxílio emergencial: homem chefe de família monoparental tem direito à cota dupla? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 ago 2020, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55015/auxlio-emergencial-homem-chefe-de-famlia-monoparental-tem-direito-cota-dupla. Acesso em: 10 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
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Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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