Resumo: Este trabalho tem por finalidade demonstrar a impossibilidade do uso dos elementos contidos no inquérito policial, tanto para a decisão de pronúncia, quanto em Plenário do Tribunal do Júri visando condenação do réu. Para tanto, abordar-se-á os sistemas processuais penais que existem no país, com ênfase de repercussão no Tribunal do Júri, demonstrando, assim, que a utilização dos elementos informativos colhidos na fase pré-processual e o uso destes em Plenário acabam maculando o devido respeito e aplicação do sistema acusatório, apontando a solução que se adeque ao Estado Democrático de Direito. A metodologia utilizada na elaboração do presente termo de conclusão de curso pautou-se, essencialmente, em pesquisa bibliográfica, documental, legislativa e jurisprudencial.
Palavras-chave: Inquérito Policial. Tribunal do Júri. Sistema Acusatório. Sistema inquisitório.
ABSTRACT: This work aims to demonstrate the impossibility of using the elements contained in the police investigation, both for the indictment decision, and in the Plenary of the Jury Court aiming at sentencing the defendant. In order to do so, the criminal procedural systems that exist in the country will be approached, with an emphasis on repercussions in the Jury Court, thus demonstrating that the use of information collected in the pre-procedural phase and their use in the Plenary end up tarnishing the due respect and application of the accusatory system, pointing out the solution that fits the Democratic State of Law. The methodology used in the elaboration of this course conclusion term was essentially based on bibliographic, documentary, legislative and jurisprudential research.
Keywords: Police Inquiry. Jury court. Accusatory System. Inquisitorial system
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS. 2.1 Sistema Inquisitório. 2.2 Sistema Acusatório. 2.3 Sistema Brasileiro. 3 INQUÉRITO POLICIAL. 3.1 Natureza Jurídica. 3.2 Valoração. 4 O TRIBUNAL DO JÚRI. 4.1 Origem. 4.2 Composição. 4.3 Sistema de Valoração dos Jurados. 5 DA IMPOSSIBILIDADE DO USO DOS ELEMENTOS CONTIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL VISANDO CONDENAÇÃO NO PLENÁRIO DO JÚRI. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBIIOGRÁFICAS.
1.INTRODUÇÃO
Embora adotado expressamente pelo Código de Processo Penal o sistema acusatório, a valoração das provas tanto na decisão de pronúncia quanto em Plenário do Júri ainda tem forte traço inquisitorial, sendo frequente o uso dos elementos informativos colhidos no inquérito policial.
Constatada essa situação, antes de adentrar na análise detalhada da produção de produção de provas envolvendo o Júri, é necessário trazer aspectos ligados aos direitos e garantias individuais, aos sistemas processuais penais pátrios e aquele que rege o processo penal brasileiro, qual seja, o sistema acusatório, o qual é mitigado quando usado para se chegar à condenação daquele indivíduo que responde a um crime doloso contra a vida e seus conexos.
Assim, não é de hoje que existe a discussão, tanto doutrinária, quanto jurisprudencial, se seria possível o uso do inquérito policial para fundamentar decisão de pronúncia e, notadamente, se é cabível uso dos elementos colhidos na fase pré-processual em Plenário do Júri visando condenação, tendo em vista o princípio da íntima convicção dos jurados e o sistema acusatório vigente em nosso país e estabelecido em nossa Constituição Federal de 1988.
Este trabalho visa refletir sobre o uso do inquérito policial ao longo de todo o rito do Tribunal do Júri, a partir do recebimento da denúncia, até decisão soberana dos jurados, para que possamos, finalmente, fazer valer o verdadeiro sistema acusatório.
Portanto, procura-se trazer soluções para que os direitos e garantias daquele que comete um crime doloso contra a vida possam ser respeitados, notadamente a plenitude de defesa que rege a persecução penal no Tribunal do Júri.
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
A variação estrutural do processo penal passa por profundas alterações e evoluções ao longo dos anos, de acordo com a ideologia predominante de sua época, que podem ser punitivista/autoritária ou libertária/democrática.
O sistema acusatório predominou até o século XII, sendo substituído, aos poucos, pelo sistema inquisitivo, tendo este prevalecido até século XVIII.[1]
Em termos de Brasil, por termos passado por diversas fases políticas, já tivemos períodos em que houve predominância do sistema inquisitorial, com destaque para a época da ditadura militar, mas a Constituição Federal de 1988 fez surgir, como predominante, o sistema acusatório, apesar de parte da doutrina entender que hoje, o sistema vigente no país é o misto, já que na fase pré-processual temos relevância do modelo inquisitivo e, na fase judicial, do modelo acusatório.
2.1 Sistema Inquisitório
No período da alta idade média, a Igreja Católica passou a ser uma das instituições mais poderosas do mundo, assumindo o caráter político e ditando os rumos da Europa. Entretanto, o crescimento do comércio fez surgir no indivíduo medieval uma mudança de mentalidade, buscando refúgio em bens materiais e facilidades que a comercialização de produtos trazia.
A partir dessas mudanças, a Igreja Católica percebeu que foi perdendo o controle sobre a vida das pessoas, necessitando, portanto, retomar o domínio sobre a sociedade, além de manter o seu poder político. Assim, no meio deste contexto histórico, surge a Inquisição.
A Inquisição, como conhecemos hoje, não surgiu de um ato autônomo e imediato de algum governante, pois ela foi sendo construída aos poucos, através de vários atos realizado por inúmeros governantes, dentre os quais destaco o ad abolendam, ato que possibilitou com que os inquisidores perseguissem aos hereges, não necessitando mais de eventual notitia criminis, e a busca da verdade se tornou o seu lema.
Em tal período, não existia codificação para consulta do inquisitor (juiz) chegar á sua decisão, ou seja, não existia método predefinido. Assim, na Europa, foram surgindo orientações para servirem de base para o juiz, dentre esta destca-se “O Malleus Maleficarum” (1486), de Heinrich Kramer e James Sprenger, o mais conhecido dessas “legislações”, trazendo a mulher como manifestação do diabo (bruxa).
Pode-se dizer que o Processo Inquisitorial possui a mesma característica norteadora de todo o sistema, qual seja, a gestão da prova está centralizada no inquisidor, que investiga, acusa e decide, não necessariamente nesta ordem.
O réu (herege), neste sistema, é apenas objeto de prova e a confissão é a rainha delas, devendo ser alcançada a qualquer custo, mesmo com base na tortura[2], já que o objetivo central desse sistema é chegar-se à “verdade real”, independente dos meios.
Ademais, sabe-se que o sistema inquisitório, apesar de ultrapassado, ainda continua vigente e, ordenamentos jurídicos por todo o mundo, já que os sistemas processuais penais não são puros, havendo passagens inquisitoriais em boa parte dos Códigos de Processo Penal, inclusive no pátrio.
2.2 Sistema Acusatório
O sistema acusatório tem-se como originado no Direito Grego, em que a persecução penal se desenvolveu com a participação direta do povo no exercício da acusação.
Entretanto, o problema desse sistema, na sua forma original, consistia que a acusação realizada pelos particulares era bastante falha, passando a exigir uma postura mais ativa por parte dos juízes, o que acabou acarretando o surgimento do sistema inquisitivo.
Com a Revolução Francesa e suas ideologias de valorização do homem e dos direitos e garantias fundamentais, o sistema inquisitivo perdeu força, dando espaço ao sistema acusatório, novamente. Todavia, os erros do passado não poderiam ser de novo cometidos e a acusação não poderia ficar nas mãos de particulares.
Assim, dividiu-se a persecução penal em duas fases diferentes, sendo que a responsabilidade pela acusação ficaria com o Estado, no entanto, por meio de um órgão distinto do juiz, fazendo surgir o Ministério Público.
Aury Lopes Jr., ao citar Carnelutti, explica que há uma ligação entre o sistema inquisitivo e o Ministério Público, pela necessidade de divisão das figuras da persecução penal. Nesse contexto, o parquet seria uma parte fabricada, que surge da necessidade do sistema acusatório e garante a imparcialidade do juiz.[3]
Dentro desse sistema, o Ministério Público é parte no processo penal, sendo responsável pelo exercício de uma pretensão acusatória, enquanto a outra parte fica responsável pela defesa e, por fim, existe a figura do juiz imparcial.
A adoção do sistema acusatório exige o respeito e garantia da divisão da persecução penal em duas fases distintas (investigação e processo), concentrando as ações processuais (acusação, defesa e julgamento) em pessoas diversas, além de demandar a observância de outras características, tais como a postura do juiz que deve abster-se de participar da produção de provas, deixando essa função apenas para as partes (acusação e defesa), garantindo, assim, a imparcialidade do magistrado.
Logo, o sistema acusatório tem como uma de suas premissas a inércia judicial, mesmo diante de eventuais falhas oriundas da atividade acusatória e até mesmo defensiva, pois o Estado, assim como criou o Ministério Público, para mitigar os entraves decorrentes de uma acusação mal administrada, fez criar também a Defensoria Pública, que juntamente com a Ordem dos Advogado do Brasil, por exemplo, exercem o serviço de defesa, aquele de maneira pública e este de forma privada.
Frente ao exposto, podemos sintetizar as principais características de um sistema acusatório puro da seguinte forma: 1) distinção entre as atividades de acusar, defender e julgar; 2) a iniciativa probatória cabe exclusivamente às partes; 3) a figura do juiz deve se manter inerte e imparcial, sem qualquer participação na atividade probatória; 4) predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes do processo; 5) vigora a publicidade e a oralidade; 6) observância do contraditório e da ampla defesa; 7) inexistência de um sistema tarifado de provas, prevalecendo o livre convencimento motivado do julgador; 8) possibilidade de revisão das decisões por meio do duplo grau de jurisdição; 9) existência de coisa julgada; 10) o imputado deve ser tratado como sujeito de direito (desde a investigação criminal) e não como objeto de direito.
2.3 Sistema Processual Penal Brasileiro
A doutrina entende, majoritariamente, que o nosso sistema processual penal deveria ser classificado como misto, pois há prevalência de características inquisitórias na fase pré-processual (fase de inquérito) e de características acusatórias na fase processual.
Todavia, ousamos discordar dessa classificação imposta pela doutrina majoritária, pois o fato de haver duas fases, uma na qual as garantias fundamentais são reduzidas em prol da investigação (inquérito/fase pré-processual), e outra em que as garantias fundamentais supostamente prevalecem e são respeitadas (fase processual), não é critério suficiente para classificar o sistema processual brasileiro como misto.
Entendemos que não existem mais sistemas processuais puros, pois todos os sistemas são mistos. Logo, para que se possa classificar um sistema, é necessário analisá-lo sob o enfoque do seu princípio informador, basilar.
Se o princípio basilar for inquisitivo, ou seja, se a figura da acusação e da decisão estão nas mãos de uma única figura, estaremos diante de um sistema processual inquisitivo. No entanto, se o princípio informador for dispositivo (gestão das provas nas mãos da acusação e da defesa, sendo o juiz imparcial), estaremos diante de um sistema acusatório.
O sistema processual será classificado conforme a atuação do julgador na persecução penal, porque não basta a separação inicial de funções para que o sistema seja classificado. Ou seja, se o juiz tem conduta ativa no curso do processo, não é uma simples divisão inicial de funções ou o reconhecimento de que, de fato, há contraditório e publicidade na fase processual, para que o sistema seja acusatório.
Nesse sentido:
Todas essas questões giram em torno do tripé sistema acusatório, contraditório e imparcialidade, porque a imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória. Portanto, pensar no sistema acusatório desconectado do princípio da imparcialidade e do contraditório é incorrer em grave reducionismo.[4]
Somente haverá imparcialidade quando o juiz estiver distante da colheita da prova. Magistrado que tem poderes instrutórios acaba tendo sua imparcialidade purgada.
Não se está dizendo que o juiz deva ser neutro, até porque isto é impossível, mas é necessário salientar que ele não poderia participar da produção das provas.
Desta forma, por mais que tenham havido alterações promovidas pela Lei nº. 13.964/19, notadamente introduzindo o art. 3-A[5] no Código de Processo Penal, o qual expressa, literalmente, que nosso sistema processual penal é acusatório, na verdade e na prática, o processo penal brasileiro é inquisitório, pois o princípio informador é o inquisitivo, já que a gestão da prova continua nas mãos do juiz, que acaba atuando de maneira ativa e direta na produção probatória, já que a retromencionada lei não promoveu a revogação de uma série de dispositivos legais nesse sentido, não sendo suficiente apenas dizer o que disse.
3 INQUÉRITO POLICIAL
Algumas considerações sobre o inquérito policial deverão ser tratadas aqui, para podermos chegar ao ponto principal do presente trabalho.
O Inquérito Policial, que tem origem na Grécia Antiga, somente adentrou em nosso ordenamento jurídico com a promulgação da Lei nº 2.033, de 20/09/1871, regulamentada pelo Decreto nº 14.824, de 28/11/1871, em que o Estado assumiu para si a atribuição de investigar, delegando aos agentes públicos da polícia judiciária tal competência.
O art. 42, da Lei nº 2.033/1871, trazia a definição de tal instituto, da seguinte forma: "O Inquérito Policial consiste em todas as diligências necessárias para o desenvolvimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito".[6]
Diante desta definição, tem-se que o Inquérito Policial consiste em todo procedimento policial que visa obter elementos indispensáveis à apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria, subsidiando eventual inicial acusatória.
Pela conceituação exposta, a doutrina traça como características essenciais do inquérito policial as seguintes: formal, inquisitorial, sigiloso, discricionário, obrigatório (nas ações penais públicas) e indisponível.
Formalidade, pois, o Código de Processo Penal, em seu art. 9º, exige que as peças do inquérito sejam reduzidas a escrito ou datilografadas. Inquisitorial porque nele não há contraditório e nem ampla defesa, sendo tais postergados para a ação penal. Sigiloso para a melhor elucidação do fato, visando não frustrar o seu fim, qual seja, chegar aos indícios da autoria e prova da materialidade.
A discricionariedade reside na liberdade da autoridade policial em agir, para a apuração do fato criminoso, dentro dos limites da lei. Quanto à obrigatoriedade, ela somente existe nos crimes que se apura mediante ação penal pública, já que nestes a instauração do inquérito é obrigatória, tendo a autoridade policial o dever de instaurá-lo, de ofício, assim que tenha a notícia da prática da infração.
Por fim, ele é indisponível, pois, instaurado regularmente, não poderá a autoridade arquivá-lo, devendo prosseguir com a sua condução.
3.1 Natureza Jurídica do Inquérito Policial
A doutrina majoritária trata o inquérito policial como sendo um procedimento administrativo, de caráter informativo e preparatório para a ação penal, não existindo nele o contraditório.
Neste sentido, apesar de ser um mero procedimento administrativo, ou seja, com enfoque no direito administrativo, como há possibilidade de restrições as liberdades individuais do investigado, deve o inquérito ser analisado sob o enfoque também do direito processual penal constitucional.
Assim, como possui caráter inquisitório de um procedimento administrativo, neste momento não existindo o acusado, figurando ou não tão somente a figura do investigado, o contraditório fica postergado para a fase processual.
3.2 Valoração do Inquérito Policial
O valor probatório do Inquérito Policial é peculiar, pois a ele não se pode atribuir uma valoração tão especial, ao ponto de ser tão somente o elemento ensejador da convicção do juiz, pois este procedimento administrativo, de caráter inquisitivo, tem o valor apenas informativo para a instauração da ação penal, já que nele não há contraditório.
O inquérito policial serve de base para a ação penal, tanto que acompanha a inicial acusatória para servir de base ao Judiciário admitir ou não o início do processo penal e, sendo recebida a ação penal, a partir daí serão iniciados os atos de instrução probatória.
Tal valor é corroborado pelo enunciado do art. 155, do Código de Processo Penal, que assim aduz:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.[7]
Como se vê, o inquérito policial apenas fornece elementos informativos, que se prestam para a formação da opinio delicti do órgão acusador, ou seja, para subsidiar a propositura da inicial acusatória (ação penal/denúncia) e, assim, o juiz receber ou não a denúncia, além de poder subsidiar eventuais medidas cautelares ao longo da fase inquisitiva e processual.
Gustavo Henrique Badaró entende que:
Os elementos trazidos pela investigação não constituem, a rigor, provas no sentido técnico-processual do termo, mas informações de caráter provisório, aptas somente a subsidiar a formulação de uma acusação perante o juiz.[8]
José Frederico Marques doutrina também no mesmo sentido, entendendo que “em face da Constituição, não há prova (ou como tal não se considera), quando não produzida contraditoriamente”.[9]
Segundo Aury Lopes Jr., o inquérito também filtra e aporta as fontes de informações úteis, dizendo quem deve ser ouvido e não o que foi declarado, pois a declaração válida como prova somente é aquela que é produzida em juízo, sob o crivo do contraditório.[10]
Somente em situações excepcionais, notadamente que a produção probatória foi impossível de ser realizada em juízo, pode ser transferida carga probatória aos atos do inquérito, conforme o incidente de produção antecipada de provas (art. 225, do Código de Processo Penal).
Para servir como prova, os atos investigativos devem ser produzidos na fase processual, com a presença do juiz e das partes (acusação e defesa), com a rígida observância das formalidades previstas na legislação pátria, sob pena de os fins justificarem os meios.
Apesar disso, a prática forense é bem diferente, pois é bem comum os magistrados do país fundamentarem suas decisões exclusivamente com elementos informativos colhidos durante a fase inquisitorial, fazendo com que as defesas levam às instâncias superiores a necessidade de correções de tais decisões.
Muito mais comum ainda é o uso das peças inquisitivas para fundamentar a decisão de pronúncia e levar o denunciado ao Tribunal do Júri, momento no qual o representante do Ministério Público, cotidianamente, também faz o uso das peças contidas no inquérito policial para sustentar a acusação, correndo o risco de os jurados condenarem com base somente no que consta no inquérito policial, o que será demonstrado, no presente trabalho, a sua impossibilidade.
4 O TRIBUNAL DO JÚRI
Neste tópico, traçarei um pouco do instituto do Tribunal do Júri, onde serão demonstradas algumas das suas especificidades, como a criação, funcionamento, composição e, finalmente, chegando até o ponto do sistema de valoração dos jurados e a impossibilidade de uso do Inquérito Policial no plenário do Júri.
4.1 Origem
O Tribunal do Júri remonta desde a Roma Antiga, mas teve seu surgimento no mundo moderno no ano 1.215, na Inglaterra, sendo disseminado na Europa após a Revolução Francesa, como forma de reação ao absolutismo monárquico.
No Brasil, por sua vez, o seu surgimento foi por volta de 1.822, quando foi sugerida a implantação ao Príncipe regente D. Pedro que, ao aceitá-la, criou os Juízes de Fato, que inicialmente teriam competência para julgar apenas crimes de imprensa. Com a promulgação da constituição do Império, o Tribunal do Júri adquiriu sua constitucionalidade, expressamente, possuindo daí em diante competência para julgar todos os crimes penais e ainda de fatos cíveis.
Todavia, apesar de constar no texto das constituintes anteriores apenas a indicação deste instituto, a atual, de forma mais robusta, traça a soberania do Tribunal do Júri, com previsão expressa no art. 5º, inciso XXXVIII:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe dar a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.[11]
Pode-se aduzir que o Tribunal do Júri se consolidou no cenário nacional com a promulgação da Constituição de 1988, trazendo-o no rol de direitos e garantias fundamentais, sendo também cláusula pétrea.[12]
Assim, pode-se dizer que o Júri tanto é uma garantia ao devido processo legal para o julgamento dos autores de crimes dolosos contra a vida, além dos demais delitos conexos, na forma da lei, como é também um direito fundamental, consistente na participação do povo nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário, já que permite qualquer cidadão participar de um dos poderes da República.
4.2 Composição
No Brasil, o Tribunal do Júri, atualmente, é composto por um juiz togado e vinte e cinco cidadãos comuns, não sendo exigido destes cidadãos as mesmas obrigatoriedades dos juízes togados, ressalvando a uma única exigência que é a idoneidade, competindo a estes cidadãos julgar crimes dolosos contra a vida.
Neste sentido, observa-se que a formação/composição do Tribunal do Júri não exige formação jurídica, o que é tema bastante delicado, pois um cidadão comum, sem qualquer conhecimento jurídico, pode interferir em questões mais agravantes, quais sejam, a liberdade ou não, a condenação ou não de um indivíduo acusado de cometer crime doloso contra a vida.
Desta maneira, a formação/composição do Tribunal do Júri em nossa Carta Magna atual, apesar de observar as supostas injustiças que seria de um julgamento por pessoas com técnica-jurídica para identificar a culpabilidade do delito, existem adeptos de que o julgamento por cidadãos comuns, acarretaria a insegurança jurídica nos julgamentos, tendo em vista que estes cidadãos não são detentores do conhecimento técnico, notadamente, por exemplo, a impossibilidade de condenação com base, exclusivamente, em elementos contidos no inquérito policial, conforme ditames elencados no art. 155, do Código de Processo Penal[13].
4.3 Sistema de Valoração dos Jurados
De acordo com o Código Processo Penal, mais especificadamente em seu artigo 482, os jurados serão somente questionados no Plenário do Júri, após os debates orais da acusação e da defesa, das matérias que versam os fatos da acusação e se o acusado deve ou não ser absolvido.
O posicionamento dos jurados nas decisões, portanto, é baseado com o que é debatido ao longo das sustentações orais das partes no Tribunal, o que demonstra que as provas expostas no Plenário do Júri são fundamentais para o convencimento dos jurados, os quais estão tomando conhecimento do processo somente naquele momento.
Diante disso, surge a indagação da eficácia do Tribunal do Júri, pois as decisões dos jurados são prolatadas com base somente no que é colocado nos debates das partes em plenário, não se podendo garantir, portanto, se a eventual condenação deu-se com base, exclusivamente, nos elementos contidos no inquérito policial e, assim, ocorrendo, estaremos diante de uma condenação e privação da liberdade fundadas com base apenas nas peças inquisitivas, o que, reitero, é vedado.
5. DA IMPOSSIBILIDADE DO USO DOS ELEMENTOS CONTIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL VISANDO CONDENAÇÃO NO PLENÁRIO DO JÚRI
Por toda digressão feita até aqui, necessário se faz agora garantir decisões justas no Tribunal do Júri, notadamente no que tange à impossibilidade de condenações com base em provas exclusivas do inquérito policial, já que como os jurados não fundamentam suas decisões, estas precisam ser prolatadas sem o risco de serem produzidas com base somente nos elementos colhidos na fase inquisitorial.
É bem comum o uso das provas exclusivas do inquérito policial ao longo dos debates em Plenário do Júri, notadamente por parte da acusação, que faz a releitura das peças inquisitivas, tais como depoimentos prestados pela vítima, policiais, testemunhas, e até do autor, muitas vezes até sem fazer menção às provas produzidas judicialmente, com contraditório e ampla defesa.
Desta feita, os elementos contidos no inquérito policial acabam interferindo no livre convencimento dos Jurados, pois além de não saberem as diferenças entre prova e elementos informativos contidos no inquérito, não sabem que a legislação pátria veda condenações com base exclusiva nestes, e, muitas vezes, suas decisões estão baseadas única e exclusivamente nas peças contidas no inquérito, não sendo justa, consequentemente, uma eventual condenação assim.
Assim ocorrendo, as garantias constitucionais do contraditório e ampla defesa, no caso do Júri, plenitude de defesa, acabam sendo mitigadas, assim como também o devido processo legal, pois o que foi usado para a condenação não passou pelo filtro destas, por isso a legislação veda situações como estas, o que no procedimento do Tribunal do Júri também deve ocorrer.
A utilização das peças contidas no inquérito, sem o crivo do contraditório, proporcionam ao nosso ordenamento jurídico uma instabilidade social e jurídica, pois o Tribunal do Júri, como dito alhures, é uma garantia ao indivíduo acusado de cometer crime doloso contra a vida e, assim sendo, todos os preceitos constitucionais, principalmente do contraditório, ampla defesa e devido processo legal devem ser respeitados e não mitigados.
A prova é um direito subjetivo constitucional assegurado através do princípio do devido processo legal e inerente aos princípios da verdade processual e do contraditório, portanto, a inobservância destes institutos com a utilização de provas extrajudiciais no Plenário do Júri acarreta mácula ao devido processo legal, devendo ser respeitado os ditames do art. 155, do Código de Processo Penal.
Indo além, apesar de o mencionado artigo aduzir que é vedado ao juiz condenar com base exclusivamente em elementos contidos no inquérito, tal exposição acaba permitindo que o Poder Judiciário decida condenar usando não somente o inquérito, mas também provas produzidas ao longo da instrução, em juízo, fato este que, nos procedimentos comuns, com ao magistrado sentenciante se faz necessário fundamentar suas decisões, o controle destas, por parte das defesas e até da acusação é perfeitamente possível de ocorrer e caso haja condenação só com base em elementos do inquérito, certamente abre-se possibilidade de as partes recorrerem.
Entretanto, o problema se dá quando a literalidade do art. 155 do Código de Processo Penal é usado em Plenário do Júri, pois como os jurados não fundamentam suas decisões, se as peças do inquérito forem lidas pela acusação, visando a condenação, e o réu for condenado, como a defesa saberá que a decisão dos jurados foi com base somente em elementos contidos na fase inquisitorial?
É por isso que defendemos, na presente obra, a impossibilidade de leitura das peças contidas no inquérito policial, visando condenação, em plenário do Júri, para os jurados, pois isso ocorrendo e os jurados condenando, será impossível saber se esta condenação foi com base, exclusivamente, no inquérito, e visando evitar esta teratologia, é urgente a necessidade de proibição de leitura das peças pré-processuais em plenário.
Ou há, nos autos, provas suficientes para uma sentença condenatória, ou não havendo suficiência probatória para tanto deve-se operar a absolvição do acusado, em respeito ao princípio da presunção de inocência. Portanto, conclui-se pela impossibilidade de serem usados os elementos informativos contidos no inquérito policial no Tribunal do Júri visando condenação.
Nesse sentido, o doutrinador Aury Lopes Jr. assim também entende:
Ainda mais grave é a situação que se produz diariamente no Tribunal do Júri, em que os jurados julgam por livre convencimento, com base em qualquer elemento contido nos autos (incluindo-se nele o inquérito), sem distinguir entre ato de investigação e ato de prova. A situação é ainda mais preocupante se considerarmos que na grande maioria dos julgamentos não é produzida nenhuma prova em plenário, mas apenas realizada a mera leitura de peças.[14]
E, indo além, para que não se corra o risco de serem usadas as peças contidas na fase inquisitorial para condenação em plenário, a solução mais adequada ao caso seria no sentido de exclusão, física, de tais peças, antes da realização da sessão plenária, com exceção, logicamente, do corpo de delito e das demais provas técnicas e antecipadas.
Nesse sentido, a Lei nº. 13.964/19 previu a figura do juiz das garantias, que, de maneira resumida, tem como objetivos promover o controle de legalidade dos atos de investigação criminal e realizar juízo de admissibilidade da acusação, sendo que, caso a ação penal seja recebida, ter-se-á início o processo penal assumindo outro magistrado a responsabilidade jurisdicional sobre o caso e, consequentemente, o inquérito policial não será apensado aos autos do processo (ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado), conforme os ditames do art. 3º-C, §3º[15], do Código de Processo Penal.
Outra saída para se evitar o risco de condenações com base, exclusivamente, em elementos contidos no inquérito policial seria uma reinterpretação do artigo 478 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:
Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: I - a decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado. II - ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo.”[16]
Analisando o mencionado artigo, mais precisamente o seu inciso I, entende-se que não se pode fazer o uso da pronúncia e das decisões posteriores que julgaram admissíveis a acusação como argumento de autoridade para firmar o convencimento de que a tese apresentada é irrefutável.
Assim, se é vedado que textos da decisão de pronúncia e das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação sejam utilizadas para fundamentar o pedido de condenação, tal proibição também deveria ser aplicada no que tange às leituras das peças do inquérito policial visando condenação, tanto por meio de uma reinterpretação de tal dispositivo, quanto por meio de inclusão de um novo inciso nesse sentido, pelo legislador.
Além disso, se o STF já decidiu que é vedado pronunciar um indivíduo com apoio exclusivo em elementos de informação produzidos, única e unilateralmente, na fase do inquérito policial ou em procedimento de investigação criminal instaurado pelo Ministério Público, com muito mais razão deveria ser proibido usar estes elementos no Plenário do Júri visando condenação.[17]
Com a proibição da leitura do inquérito policial, portanto, não se correrá o risco de os jurados condenarem o réu com base em elementos contidos exclusivamente na peça inquisitiva, fazendo com que esta decisão com base somente em provas judiciais, evitando-se condenações injustas, sem lastro probatório mínimo, o que significa, portanto, justiça.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O uso dos elementos informativos do Inquérito Policial no Tribunal do Júri em nosso ordenamento jurídico é uma discussão a qual possui diversos questionamentos e posicionamentos, eis que, da forma que o Conselho de Sentença é composto/formado, não possui capacidade técnica de identificar as inconformidades probatórias exibidas no plenário do júri, o que acarretaria na desobediência dos princípios constitucional do Contraditório e Ampla Defesa.
Os princípios do direito processual penal são fundamentais para o nosso ordenamento, notadamente por servirem como balizas para orientar o sistema normativo, com destaque para os princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Na análise do inquérito policial a luz da doutrina e jurisprudência, importa esclarecer que este instituto não passa de um mero elemento informativo, servindo como base para formulação da inicial acusatória, tanto que é vedado seu uso exclusivo para embasar condenações.
Apesar de o Tribunal do Júri ser formado democraticamente e ser também considerado um direito fundamental, deve-se ter o cuidado necessário com o uso dos elementos informativos contidos no inquérito policial em Plenário do Júri, justamente visando o respeito aos ditames do Contraditório e Ampla Defesa.
Logo, este trabalho mostrou que não se deve utilizar das provas extrajudiciais em Plenário do Tribunal do Júri, já que como estas não passaram pelo crivo/filtro do contraditório e da ampla defesa, não podem servir para condenar, e como os jurados são leigos e julgam com base no livre convencimento imotivado e sigiloso, para se evitar uma condenação com base exclusivamente nos elementos informativos do inquérito, ou se veda seu uso em plenário ou deve-se proceder com a extração destes dos autos, visando, portanto, o alcance de uma decisão mais próxima da justa possível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2018. Págs. 40/41.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Disponível em: <http://infodireito.blogspot.com/2012/09/introducao-aos-principios-gerais-o.html>. Acesso em: 16 jun 2022.
[3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 118.
[4] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo. Saraiva. 2016. Pág. 29.
[5] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 09 jun 2022.
[6] BRASIL. Lei nº 2.033, DE 20 de Setembro de 1871. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM2033.htm Acesso em: 19 jun 2022.
[7] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 09 jun 2022.
[8] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3ª ed. RT. São Paulo: 2015, p. 141
[9] MARQUES, José Frederico. Elementos de processo penal. v. I Bookseller. Campinas. 1997. p, 194.
[10] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2018. Pág. 158.
[11] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>Acesso em: 3 ago. 2022.
[12] Idem.
[13] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 09 jun 2022.
[14] LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo. Saraiva Educação, 2018, pag. 166
[15] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 09 jun 2022.
[16] Idem.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº. 180144/GO, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 09 de outubro de 2020. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1108678719/inteiro-teor-1108678722> Acesso em 19 jun 2022
Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade de Cuiabá – UNIC. Servidora Pública junto a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUERREIRO, Erika Silveira. A impossibilidade do uso dos elementos contidos no inquérito policial visando condenação em plenário do júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 set 2022, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59158/a-impossibilidade-do-uso-dos-elementos-contidos-no-inqurito-policial-visando-condenao-em-plenrio-do-jri. Acesso em: 09 dez 2024.
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