WAGNER LUIZ FERNANDES JÚNIOR[1]
(orientador)
RESUMO: Este artigo tem por objetivo discutir o conceito de inviolabilidade do domicilio e o uso das exceções legais pelos agentes de segurança pública. Ao longo da análise, será investigado tanto o conceito de inviolabilidade do domicilio, na mesma medida conectaremos estas questões ao campo da segurança pública. Serão analisados os limites da atuação policial no que diz respeito as exceções legais que permitem a invasão de domicílio. Buscaremos também evidenciar em que circunstâncias a invasão de domicilio alheio pode estar sujeita a acusação de abuso de autoridade. A pesquisa que pretende-se desenvolver será descritiva, de caráter qualitativo, apoiada em uma pesquisa bibliográfica. Considerando que este é um debate complexo, não é nosso objetivo esgotar o tema. Entre as conclusões extraídas a partir das reflexões realizadas, aponta-se que para que o agente policial realize a invasão do domicilio munido de legalidade, é necessário que este esteja provido de mandato ou que suas motivações sejam bem fundamentadas. Mediante esse quadro, defende-se a necessidade de uma atuação policial amparada por uma rede de inteligência, que agencie, coordene e impeça ações arbitrarias.
Palavras-chave: Inviolabilidade do domicilio; policia; legislação.
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Metodologia. 3. Desenvolvimento 3.1. Para uma compreensão do conceito de segurança pública 3.2. O princípio de inviolabilidade domiciliar e suas nuances 3.3 Atuação policial e o princípio de inviolabilidade do domicílio. 4. Conclusão. 5. Referências.
1.INTRODUÇÃO
É inquestionável a imersão do assunto “segurança pública” nos mais diversos círculos de debate do estado brasileiro. Seja no âmbito intelectual, ou na privacidade domiciliar, o tema se tornou uma constante no nosso imaginário social. Além da própria experiência cotidiana, onde vivencia-se uma constante sensação de insegurança e desamparo junto ao poder público, a mídia tornou-se uma peça chave na construção da opinião pública.
Entre as diversificadas pautas que se apresentam no painel geral que compõe o sistema de segurança pública, um campo sensível dos debates está relacionado a atuação policial. Uma questão que vem sendo pautada com frequência consiste nas exceções legais quanto a inviolabilidade do domicílio e a possibilidade de os agentes de aplicação da lei ingressarem, sem mandado judicial, no domicílio alheio, em situações onde há indícios de crimes permanentes, a exemplo de tráfico de drogas, posse ilegal de armas de fogo dentre outros.
É sabido que o direito à inviolabilidade do domicílio é previsto na Carta Magna de 1988, em seu artigo 5º, inciso XI, afim de garantir um local para fins de desenvolvimento de direitos da personalidade. Isto é, considerando os direitos do cidadão, a lei estabelece a proteção ao direito à intimidade e à privacidade de cada um.
Entretanto, paralelo ao direito de inviolabilidade domiciliar, o Código Penal prevê casos onde tal direito pode vir a ser relativizado. À luz da Constituição Federal Brasileira de 1988, é notório a abertura de exceção legal mediante mandado judicial fundamentado por autoridade competente - durante o dia, e a qualquer momento em caso de flagrância decorrente de delito, desastre ou prestação de socorro.
Neste quadro, cabe ao agente público, mediante autorização, entrar no domicílio alheio, sem que o direito de inviolabilidade seja transgredido, assim como cabe a este definir, em determinada circunstância, se é licito realizar a invasão, estando coberto pelas exceções legais. Nessa perspectiva, verifica-se que uma das limitações ao direito à inviolabilidade do domicílio, diz respeito à possibilidade de adentrar em uma residência alheia, sem o consentimento dos moradores, para fins de efetivação da segurança pública. Além disso, tem-se que tal conduta só poderá ocorrer, sob circunstâncias permitidas constitucionalmente.
Um exemplo comum quando a situações que caracterizam tal permissibilidade, pode-se apontar a questão da entrada forçada em domicílio, para efetuar a prisão do agente em flagrante delito, descriminada no artigo 302 do Código de Processo Penal. O policial possui a permissão em adentrar em domicílio alheio sem mandado, considerando o “perigo na demora”, diante uma situação onde seja explicito o flagrante da ilicitude.
Entretanto, existem uma série de discussões quanto ao poder atribuído ao agente público em situações como está. Os maiores questionamentos, vindos de organizações da sociedade civil que debatem a segurança pública, se dá na utilização indevida da hipótese de flagrante delito, que por vezes está fundamentada em denúncias anônimas ou em provas pouco substanciais.
Mediante esse cenário, esse trabalho tem por objetivo analisar o conceito de inviolabilidade do domicilio e o uso das exceções legais pelos agentes de segurança pública. Em específico, discutiremos o conceito de inviolabilidade do domicilio, na mesma medida em que serão analisados os limites da atuação policial no que diz respeito as exceções legais que permitem a invasão de domicílio. Buscaremos também evidenciar em que circunstâncias a invasão de domicilio alheio pode estar sujeita a acusação de abuso de autoridade.
A problemática que mobilizará as discussões realizadas nas próximas páginas consiste em: Quais são os limites que separam a liberdade da atuação policial e o conceito de inviolabilidade domiciliar previsto na Constituição? Em que medida a hipótese de flagrante delito é um dispositivo que explicita o caráter dúbio das exceções previstas a violabilidade do domicílio?
Ao passo que é um debate complexo, no qual existe um volume de pesquisadores de distintas áreas dedicadas a investigas esse tema, esse trabalho se justifica pela necessidade de discutir a questão da inviolabilidade domiciliar em vista a atuação policial. Desta forma, serão analisados com maior vagar as situações onde o policial está autorizado a adentrar em domicilio alheio e quais os limites para que o agente não esteja sujeito a acusação de abuso de autoridade.
2.METODOLOGIA
A pesquisa que pretende-se desenvolver será descritiva, fundamentada nos conceitos dispostos por Gil (2002) e Thomas, Nelson e Silverman (2012). De acordo com esses autores, se constitui uma pesquisa descritiva aquela que apresenta campos de observação, classificação, análise, interpretação e descrição de um ou mais fenômenos evidenciados numa população.
De acordo, especificamente, com a leitura de Thomas, Nelson e Silverman (2012, p. 293), investigações de caráter descritivo são utilizadas nas mais diversas áreas, sendo “amplamente utilizadas na educação e em ciências comportamentais” onde “seu valor tem como base a premissa de que os problemas podem ser resolvidos e as práticas melhoradas por meio de descrição objetiva”.
Ainda segundo Thomas, Nelson e Silverman (2012), o pesquisador ou pesquisadora que maneja este tipo de metodologia “procura determinar as práticas (ou opiniões) presentes em uma população específica” (THOMAS; NELSON; SILVERMAN, 2012, p. 293). Outro autor que destaca as características e a importância da metodologia descritiva é Godoy (1995), ao afirmar que pesquisas de cunho descritivo têm como objetivo principal entender o fenômeno em toda a sua complexidade.
No que diz respeito a natureza da investigação que pretendemos desenvolver, ela será fundamentalmente aplicada e de caráter qualitativo. Uma pesquisa aplicada tem por objetivo central formular conhecimentos para aplicação prática voltadas à solução de problemas específicos, relacionados a verdades e interesses locais. Nesse caso, ao passo que ela se configura como aplicada, isso não impede que também realizemos discussões de caráter teórico, em uma análise mais ampla quanto a questões conceituais.
O estudo consistirá numa investigação qualitativa tendo em vista que focalizaremos a utilização de nossos instrumentos metodológicos na análise e discussão, sem pretensões quantitativas, no que diz respeito as dinâmicas que teóricas e práticas que envolvem o princípio de inviolabilidade domiciliar.
É notório que um estudo qualitativo, conforme entende Minayo (2008, p.57), consiste numa análise “que se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam”.
Ainda sobre esse assunto, Chizzoti (2003, p.221) afirma que uma análise qualitativa se constitui um quadro transdisciplinar, uma vez que possibilita ao pesquisador utilizar “multimétodos de investigação para o estudo de fenômeno situado no local em que ocorrem, (...) procurando tanto encontrar o sentido desse fenômeno quanto interpretar os significados que as pessoas dão a ele”, na mesma medida em que “implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis” (CHIZZOTI, 2003, p. 221).
Somado ao caráter qualitativo, a pesquisa também se constituirá em um estudo exploratório. De acordo com Yin (2005), a escolha por seguir pelo viés exploratório se realizada uma vez que o estudo exploratório possibilita não só uma análise das práticas, mas permite discutir, a partir da nossa proposta, outros aspectos dentro do âmbito do objeto investigado.
Deste modo, a utilização do estudo de caso sob o viés exploratório possibilitará uma maior precisão nesta pesquisa, lançando novas luzes sob um momento de múltiplas instabilidades no cenário global, que demandaram das educadoras e educadores respostas rápidas mediante os desafios nas diversas esferas do ensino, incluindo especialmente a educação infantil.
Do mesmo modo, tendo em vista que esse trabalho se configura em uma investigação descritiva, afim de analisar dados qualitativos, alicerçando nossas discussões a partir da pesquisa bibliográfica. Como nos elucida Gil (2002), a pesquisa bibliográfica é aquela que, “é elaborada com base em material já publicado. Tradicionalmente, esta modalidade de pesquisa inclui material impresso como livros, revistas, jornais, teses, dissertações e anais de eventos científicos”.
3.DESENVOLVIMENTO
3.1. PARA UMA COMPREENSÃO DO CONCEITO DE SEGURANÇA PÚBLICA
Antes de nos debruçarmos no debate referente a inviolabilidade domiciliar e a atuação policial, acreditamos ser pertinente discutirmos o conceito de segurança pública. Em linhas gerais, o conceito de segurança pública pode ser definido como um estado onde não há ocorrências, ou expectativas, de infrações penais. Uma vez que os cidadãos têm consciência e aderem a esta vivência em situação de tranquilidade e salubridade pública, constrói-se um âmbito de ordem social, em que se estabelece uma convivência pacífica no meio social (SMANIO, 2017).
Os princípios de segurança aplicados para a manutenção da ordem social foram elaborados, em grande parte, para garantir tanto os direitos como os deveres da sociedade, segundo o que estabelece a lei. Logo, a estrutura do Estado, como os demais componentes do organismo social devem estar alinhados para que a segurança pública possa ser efetivada.
O conjunto de órgãos governamentais designados para realizar atividades voltadas para garantir a segurança recebem a alcunha de “sistema de segurança pública”. Seus eixos de atuação são variados, partindo desde o plano estratégico, com a elaboração de planejamentos e programas em torno da prevenção de crimes, assim como os mecanismos de caráter repressivo.
Como destacam Vilobaldo Carvalho e Maria do Rosário Silva (2011), o debate sobre o campo da segurança pública, especialmente no cenário brasileiro, ainda requer um amadurecimento. Os mecanismos estruturais desta área precisam verificar meios de mudanças de paradigmas, especialmente no que diz respeito a valorização dos cidadãos, independente da camada social que integra.
No Brasil, ainda não foi articulada, por exemplo, uma base nacional de dados referente a criminalidade em si. A maior parte dos estudos que buscam realizar uma análise relativa a Segurança Pública baseiam-se as taxas de homicídio, não levado em conta outras ações como assaltos, estupros ou sequestros, por exemplo (ZUMINO, NEME. 2002). Podemos constatar um déficit, especialmente no plano dos estados, quanto a informações e registros oriundos, em grande parte, da polícia.
A ausência de dados consistentes que possibilitem um quadro amplo do status da segurança pública no Brasil é apenas a “ponta do iceberg” quanto a escassez de propostas realmente fecundas para o combate da violência no país. Alguns levantamentos apontam que foi em meados dos anos 1990, que o Brasil passou a realizar estudos sistemáticos que analisavam a situação da segurança pública.
Nesse quadro, as ações realizadas pela polícia exigem dos estudiosos uma atenção especial. Pesquisas divulgadas após um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública confirmaram o estado de gravidade em que se encontra o sistema de segurança pública nacional. Uma das evidencias que causam preocupação, ao longo das últimas décadas, é o alto índice de execuções realizadas por policiais.
De acordo com dados concedidos pela última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), em média, são 17 mortes causadas pela polícia por dia no país. Segundo o levantamento, se compararmos aos homicídios provocados por organismos de outros países, como a polícia estadunidense, é constatado que o número de mortes realizadas pela polícia do Brasil é seis vezes maior. Outro dado que chamou atenção no último Anuário foi a leve queda no índice de homicídios, que por sua vez não se refletiu na morte de pessoas negras.
Pode-se evidenciar, ao longo dos últimos anos, o estabelecimento de algumas políticas públicas na área da segurança, frutos em grande medida da mobilização popular e a criação de um debate sobre possíveis medidas preventivas contra a violência, com o objetivo de reduzir as abordagens reativas e repressivas.
De acordo com Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme Assis de Almeida (2003), na situação específica do Brasil, o desafio parece ser ainda maior, apesar dos notórios avanços na consolidação de uma política de segurança pública de Estado. Os princípios democráticos ainda precisam ser exercidos, tendo em vista o direito a igualdade e a justiça.
Ao considerarmos esse quadro, as forças de segurança pública são uma parte importante e sensível desse sistema. No Brasil estes grupos são divididos a fim de atuar em distintas esferas. No plano nacional, encontramos a Polícia Federal, Rodoviária e Ferroviária. Em termos de atuação estadual, há uma divisão entre a Polícia Militar e a Polícia Civil. A militar tem por objetivo a repressão direta aos crimes, e tem por responsabilidade a promoção de patrulhamento ostensivo. Já a Polícia Civil é a responsável pelo âmbito jurídico. Ela cumpre a função de investigação, levando os casos ao Poder Judiciário.
A alcunha “Militar” da PM não é apenas um termo “simbólico”. Ao tratarmos do caso brasileiro, a sua estrutura está vinculada as forças armadas, funcionando como uma corporação de reserva. Logo, apesar de ser uma instituição que tem por objetivo servir a sociedade, a Polícia Militar tem por alicerce uma formação e códigos de conduta de guerra, que de certo modo, difere dos princípios de atuação civil.
Segundo Arthur Gonçalves (2015), a militarização consiste numa ideologia que compreende o indivíduo em condição de suspeita como um inimigo. Do mesmo modo, há uma espécie de inversão no plano estratégico no âmbito civil. Ao invés de focalizar as suas atividades na defesa do cidadão, as atuações da polícia militar buscam defender os interesses do poder estatal. Logo, qualquer manifestação apontada pelo estado como indevida, torna-se um alvo para a repressão e “manutenção da ordem”. Em outras palavras, especialistas apontam que esta é uma postura de combate que, na teoria, não está alinhada com o exercício da segurança local.
Na última década, a crença de que a melhor forma de combate a violência é a mobilização do aparato policial, e até mesmo militar, vem alcançando níveis preocupantes, ameaçando por vezes, os direitos civis, com a adoção de posturas excessivas e arbitrárias, em nome da “manutenção da ordem”.
Em termos institucionais, podemos designar como ato de violência a manifestação arbitrária e excessiva de força física, ou na prática de atos autoritários mediante o uso da lei. Isto é, pode-se considerar como violência ações ilegítimas, que contrariam os direitos democráticos do cidadão, uma vez que decisões políticas são realizadas sem um alinhamento com os interesses públicos.
Como destacamos no início deste trabalho, a segurança pública – ou a ausência dela - tornou-se um tema permanente nos mais diversos campos da sociedade brasileira. Na atualidade, o tema vem sendo discutido nos mais diversos setores políticos e sociais. Especialmente com o advento das eleições presidenciais, podemos captar diferentes discursos, propondo soluções que vão desde a desmilitarização da polícia militar, até a permissão do porte de armas a todos os cidadãos.
Ao traçarmos um breve histórico sobre o assunto, é evidente que a violência sempre esteve presente no Brasil. É nesse âmbito que nos voltamos para a questão da inviolabilidade domiciliar e todos os debates teóricos e práticos que envolvem essa questão.
3.2 PARA UMA COMPREENSÃO DO CONCEITO DE SEGURANÇA PÚBLICA - O PRINCÍPIO DE INVIOLABILIDADE DOMICILIAR E SUAS NUANCES
Em linhas gerais, ao pensarmos em domicílio, residência, casa, as ideias que surgem correspondem a um lugar onde compreendemos como seguro para nos resguardarmos, guardarmos nossos pertences e delimitarmos uma fronteira entre o público e a vida privada. Em termos históricos, é difícil delimitar em tempo e espaço em que momento predominou a necessidade e importância de se constituir um lar fixo para o ser humano. É notório a relação que se estabelece com o abandono de um modo de vida nômade, que hoje consideramos desconfortável, com a compreensão de uma vivência “confortável” a partir da premissa da fixação do homem num território.
Na contemporaneidade, a casa e o domicílio foram incluídos como conceitos jurídicos. Na realidade brasileira, a Constituição elaborada em 1988 delimita que: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”
A noção de domicílio, no âmbito jurídico corresponde a “sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou prática, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos” (DINIZ, 2020, p. 248). Por sua vez, quando trata-se de “residência”, este é o local onde a pessoa mora, ou seja, onde ela habita com o intuito de permanência (DINIZ, 2020).
Mediante o art. 70 do Código Civil Brasileiro, domicílio corresponde ao local onde determinado indivíduo estabelece residência com ânimo de ali permanecer por um lapso temporal maior. Por sua vez, apesar da interpretação que se relaciona a ideia de “permanência”, um indivíduo pode ter mais de uma residência, podendo qualquer uma dessas ser compreendida como domicílio (BRASIL, 2002).
É sob essa diversidade de nomenclaturas, que abrem brecha para distintas interpretações, que está imerso o entendimento sobre o princípio de inviolabilidade do domicílio. No Código Penal, ao tratar do crime de inviolabilidade, é utilizado o termo “casa”, conforme exposto no art. 50, parágrafos 4º e 5º:
[…] § 4º – A expressão “casa” compreende:
– Qualquer compartimento habitado;
II – Aposento ocupado de habitação coletiva;
III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce
profissão ou atividade.
§ 5º – Não se compreendem na expressão “casa”:
I – Hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva,
enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;
II – Taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero (BRASIL, 1940).
Ao discutir o que compreende a escolha do termo “casa”, Capez (2020) apreende que o Código Penal buscou um entendimento no qual a “casa” como ideia de moradia, implica uma proteção distinta a outros locais onde a divisão entre privado / público é menos nítida. Na mesma medida, oferece uma tutela jurídica, apesar das generalizações, às dependências da casa, considerando até mesmo as partes exteriores, desde que estejam cercadas ou muradas.
Este direito encontra-se explicitado no artigo 5º, inciso XI, de acordo com o que está expresso abaixo:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial [...] (BRASIL, 1988).
Como salienta Ingo Sarlet (2013), a inviolabilidade é um direito fundamental concedido aos cidadãos tendo em vista à sua dignidade, com objetivo de assegurar a estes um espaço no qual aja privacidade, assim como o livre desenvolvimento de sua personalidade.
De acordo com o autor:
A inviolabilidade do domicílio constitui direito fundamental atribuído às pessoas em consideração à sua dignidade e com o intuito de lhes assegurar um espaço elementar para o livre desenvolvimento de sua personalidade, além de garantir o seu direito de serem deixadas em paz, de tal sorte que a proteção não diz respeito ao direito de posse ou propriedade, mas com a esfera espacial na qual se desenrola e desenvolve a vida privada (SARLET, 2013, p. 547).
Este direito também tem por pressuposto a garantia dos indivíduos serem deixados em paz, na medida em que a proteção não corresponde necessariamente ao direito de posse ou propriedade, mas está relacionado a esfera espacial na qual se fomenta a vida particular do indivíduo.
Cabe destacar que a inviolabilidade domiciliar corresponde a uma garantia inerente aos indivíduos, visando assegurar a privacidade e a intimidade violadas, em relação ao que acontece dentro de suas residências ou em seus arredores. As exceções também estão dispostas, ou quando há um consentimento dos moradores para ali adentrar.
De acordo com Sarlet (2013), o consentimento do morador corresponde a hipótese mais plausível para se adentrar numa moradia alheia. É notório que a noção de “morador” é mais complexa do que se pode imaginar a priori, sendo muito mais ampla que a ideia de “proprietário do imóvel”. Morador está relacionado, acima de tudo, naquele que ocupa o interior da residência, e exerce naquele espaço os direitos relativos à personalidade.
Nesse sentido, Capez aponta que: “a proteção legal destina-se àquele que ocupa o espaço, não ao titular da propriedade, pois o que se tutela aqui é o direito à tranquilidade e segurança no espaço doméstico, e não o direito à posse ou propriedade” (CAPEZ, 2020, p. 382).
Como destacam Couto e Pereira (2021):
Compreende-se, portanto, que a ocorrência de uma violação domiciliar, dar-seia pela entrada ou permanência em um imóvel, contra a vontade expressa ou tácita, do morador. Tal inconformismo poderá se dar por intermédio de gestos, palavras, escritos, ou de forma tácita, quando tal inconformismo provir de um comportamento ou fatos incompatíveis com a vontade de que o terceiro ali permaneça. Destaca-se, ainda, que a violação poderá ocorrer de forma clandestina (escondido, obscuro), astuta (conduta fraudulenta) ou de maneira ostensiva, ou seja, quando a entrada ou permanência de um terceiro contrariar veementemente a vontade do morador (COUTO, PEREIRA. 2021, p. 6).
Nessa esfera, Araújo (2017) aponta alguns locais que estão excluídos do conceito de casa. Alguns exemplos são restaurantes, boates, bares, lanchas, ônibus ou lugares em geral aberto à população. Isso se deve ao fato desses lugares não se enquadrarem no quesito de particularidade que junta o sujeito ao objeto. Por sua vez, este princípio não serve de garantia para impunidades de crimes praticados no interior de seus domicílios.
Ainda nas palavras de Araújo:
(...) se reforça a ideia de que ninguém pode entrar na casa alheia sem o consentimento do morador, devendo ser entendido por casa o lugar onde uma pessoa vive ou trabalha, não acessível ao público em geral, reservado à sua intimidade e à sua vida privada. Considera-se domicílio, pois, para fins do texto constitucional, todo local, delimitado e separado, por alguém ocupado de modo exclusivo a qualquer título, inclusive profissionalmente (ARAÚJO, 2017, p. 26)
Como já apontamos, apesar da inviolabilidade domiciliar ser prevista na Constituição como direito fundamental, esta garantia não é absoluta. Existe, na legislação atual, algumas situações previstas legalmente, aonde pode ser abertas exceções ao direito em comento, podendo ser motivada por interesse público ou por interesse do próprio morador (SARLET, 2013).
Tais circunstâncias precisam estar relacionadas, em grande medida, a ocasiões ligadas à própria segurança individual, no caso de suspeita de crimes cometidos, prestação de socorro ou por conta de uma ordem judicial. Neste último caso, é preciso que a ordem judicial seja realizada durante o dia, com objetivo de busca e apreensão de criminosos ou de objetos de um crime.
Com isso, a partir dos pontos acima listados, é notório que um terceiro só pode entrar num domicilio alheio ou em uma dessas três circunstâncias ou mediante o consentimento do morador. Como destacam Sarlet e Neto (2013), situações que se enquadram dão abertura para uma ação policial que leve a invasão domiciliar são previstas na norma constitucional, não sendo possível uma ampliação por via ordinária.
3.3. ATUAÇÃO POLICIAL E O PRINCÍPIO DE INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO
No que se refere a atuação policial, o agente de segurança é o responsável, em geral em empreender iniciativas no interior de domicílios, sob a premissa de coibir crimes considerados graves, a exemplo de tráfico de drogas e a posse, assim como porte de arma de fogo, que remetem a prisões em flagrante caso evidenciados tais delitos.
O flagrante consiste no meio mais usual, no Brasil, para o início da persecução penal. As comunicações que estão relacionadas a ações de prisão em flagrante que são apresentadas as varas criminais, reverberando em uma cadeia de ações junto ao judiciário, revelam um modus operandi uma iniciativa que não possui planejamento nem controle. O flagrante, como praticado nos dias atuais pela polícia, merece ser alvo de discussões e questionamentos, pois para especialistas em segurança pública e direito, esse formato de atuação não permite vislumbrar a complexidade da rede que envolve a criminalidade.
Uma prisão em flagrante pode ser apenar um primeiro fio de uma extensa teia de ações, que quando não são investigadas apropriadamente, acabam passando despercebidas. Por isso que ao tratarmos de flagrante e inviolabilidade do domicílio, é primordial se discutir o tema da inteligência policial. Como salienta Pinheiro (2016), os flagrantes que não são acompanhados por um quadro mais amplo de ações colaboram para o crescimento vertiginoso da população carcerária, sem que haja, em contrapartida, uma melhora na segurança e nos índices de criminalidade.
Com isso, ao nos voltarmos para a questão da entrada forçada em domicílio a fim de realizar a prisão do agente em flagrante delito, esta situação corresponde a uma restrição do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar em prol da segurança pública, em crimes ou contravenções penais. Sobre esse ponto, Sarlet afirma que:
“(...) a inviolabilidade do domicílio é a regra; excepcionalmente diante do perigo na demora, o agente estatal no exercício do poder de polícia, à noite, poderá ingressar na casa de alguém, quando se depare com flagrante delito, nesta última hipótese, a situação deve demonstrar-se com base em fatos concretos, só devendo validar-se a busca domiciliar correlata (que não é consectário necessário do flagrante) quando pudesse ser autorizada, naquelas circunstâncias específicas (avaliadas ex ante), pelo juiz (SARLET, 2013, p. 388).”
Mesmo que sejam identificadas a existência de tais permissivos legais, existe um intenso debate quando a distância entre a teoria e a prática. Pode-se dizer que a grande questão que orbita o princípio de inviolabilidade do domicilio orbita na atuação do agente público e situações onde a hipótese de flagrante delito é realizada por meio de condutas abusivas ou perseguições infundadas.
Como nos aponta Lira (2020)
Uma vez que a atuação policial se encontre em dissonância da previsão constitucional e infraconstitucional, se amparando pelo imaginário do agente público, mesmo que se confirme posteriormente o cometimento do delito, o agente estará cometendo uma atuação abusiva e inconstitucional por violação do domicílio do agente (LIRA, 2020, p. 14)
É notório que o agente público só tem autorização para entrar em uma residência munido de autorização judicial, ou que ao menos aja uma justificativa. De acordo com Bitencourt (2020) a intervenção de um agente público precisa estar fundamentada na suspeita de uma infração penal que esteja ocorrendo no interior de uma residência. Caso o agente público realize essa ação sem nenhum embasamento, esta conduta é enquadrada como arbitrária, mesmo quando tal ilegalidade só seja identificada e comprovada após o flagrante.
Seguindo este pressuposto, Lira (2020) salienta o caráter da inviolabilidade do domicilio enquanto direito fundamental, e por conta disso, não deve ser baseado em medidas ambíguas e permeadas por incertezas. Para que o flagrante seja realizado de maneira idônea, sustentado pelas garantias legais de exceção, o agente de segurança deve estar ciente da seriedade que incorre as suas ações.
Sob esse aspecto, mediante o que se evidencia na Constituição de 1988, a invasão de domicílio fomentada a partir de flagrante só pode ser realizada sob a suspeita de crime permanente, mesmo que os agentes de segurança em questão não tenham em mãos mandado judicial. Quanto a isso, Sarlet e Neto (2013), apontam que, “em preliminar, o reconhecimento da ilicitude das provas obtidas e, em consequência, a declaração da nulidade nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal, pois a apreensão de drogas ou armas teria se dado no domicílio do réu sem autorização judicial e ausente situação de flagrância” (SARLET; NETO. 2013, p. 548).
Em complemento, ainda de acordo com Sarlet (2013), o não cumprimento dos critérios estabelecidos pela norma constitucional, para fins de concretização da violação domiciliar, poderão acarretar contaminação das provas coletadas na ação. Diante disso:
Importante consequência resultante do desatendimento dos critérios estabelecidos pela Constituição Federal é que prova obtida em situação que configure violação do domicílio tem sido considerada como irremediavelmente contaminada e ilícita (ponto a ser desenvolvido no próximo item), não podendo ser utilizada, ainda que o Poder Público não tenha participado do ato da invasão (SARLET, 2013, p. 389).
Destacamos, com isso, que para o policial, no exercício de sua função, verificar a necessidade de infligir inviolabilidade do domicílio de forma legal, é preciso que este tenha certeza da prática do crime naquele local. É notório que a atividade policial posterior à inviolabilidade domiciliar deverá ocorrer no sentido de se comprovar que se adentrou na residência alheia baseado em razões sólidas ou por motivos justos.
A ação policial precisa estar baseada em critérios legais e ser praticada sob fatos concretos. Acima de tudo, é necessário que se houver a necessidade de invasão de domicílio, está não pode ser feita mediante incertezas, considerando que os agentes envolvidos estrariam a cometer uma violação a garantia constitucionalmente reconhecida.
Por esse modo, ressaltamos mais uma vez a necessidade de haver, sob a atuação policial, um aparato de inteligência, para que erros ou condutas inapropriadas não conduzam a uma anulação das provas. É compreendido, deste modo, que sob ocasião de flagrante delito que não está devidamente em consonância com a legislação, o magistrado tem o poder de não validar as informações e itens coletados.
Os policias tem em suas mãos o poder e o dever de proteger os interesses particulares, em vista a manutenção da paz e ordem social. Entretanto, se por um lado as exceções legais são mecanismos necessários para a segurança dos cidadãos e o estabelecimento da ordem, os agentes não podem sobressair e ultrapassar os limites impostos legalmente.
Caso seja evidenciado postura abusiva ou autoritária, o policial estará sujeito a sanção de forma administrativa, civil ou penal ao desobedecer a princípios legais e constitucionais. Entretanto, sabemos que todo esse desenho institucional funciona de forma muito mais complexa, no qual o cumprimento dos dispositivos legais sofre variações de acordo com o local e a classe social no qual os agentes de segurança atuam.
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou analisar o conceito de inviolabilidade do domicilio e o uso das exceções legais pelos agentes de segurança pública. Em específico, ao longo do texto, buscou-se explorar algumas das linhas que debatem o conceito de inviolabilidade do domicilio, ao passo que também houve uma preocupação em contextualizar tais questões a partir da ótica da segurança pública.
Considerando os apontamentos realizados, podemos concluir que, o princípio da inviolabilidade de domicílio é um direito fundamental inerente a todo cidadão. Dito isso, o direito supracitado visa primordialmente a garantia de um espaço onde as pessoas possam desenvolver e proteger seus direitos morais. Isso significa que seus direitos à intimidade e privacidade estão protegidos contra violação.
Apesar de garantido tanto na Carta Magna de 1988 como no Código Civil Brasileiro, o que se verificou ao longo das discussões aqui apresentadas é que existem alguns percalços jurídicos, especialmente por conta das exceções que este princípio possui para que seja viabilizado o cumprimento de outras leis. Especificamente, tratamos da atuação policial e de que maneira a invasão de domicilio para a realização de prisões em flagrante ou a busca por provas, permeia um caminho sinuoso entre a legitimidade e a acusação de abuso de poder.
Considerando que este é um debate complexo, temos ciência de que esse estudo realizou apenas um breve panorama dos impasses que envolvem a manutenção da segurança pública e a ação policial. Concluímos que para que o agente realize a invasão do domicilio, é necessário que este esteja munido de mandato ou que suas motivações sejam bem fundamentadas. Mediante esse quadro, defendemos a necessidade de uma atuação policial amparada por uma rede de inteligência, que agencie, coordene e impeça ações arbitrarias.
5.REFERÊNCIAS
ARAÚJO, A. A exceção constitucional à inviolabilidade do domicílio na prática da atividade policial em relação ao tráfico de drogas: análise do recurso extraordinário nº 603616 do supremo tribunal federal. Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina. 2017.
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[1] Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra-Portugal. Especialista em docência do ensino superior pela Universidade Serrana do Espírito Santo.
Advogado
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Railson Dos Santos. Princípio de inviolabilidade domiciliar e atuação policial: alguns apontamentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2022, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59570/princpio-de-inviolabilidade-domiciliar-e-atuao-policial-alguns-apontamentos. Acesso em: 11 dez 2024.
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