Por que a violência contra as mulheres aumentou nos últimos anos?[1] A pergunta é recorrente, mas, a simplória resposta insistentemente dada por algumas ativistas e profissionais da área, de que o aumento se deve ao aumento do número de denúncias, não mais me convence. Passados dezessete anos da publicação da Lei Maria da Penha, trago algumas reflexões sobre as possíveis respostas para este fenômeno.
O aumento das denúncias pelas vítimas continua sendo um dado importante a se considerar. De fato, as mulheres passaram a dispor de mais equipamentos, de leis específicas de proteção e de combate à violência, de ações preventivas, educativas e punitivas mais eficazes que as encorajam a romper o silêncio.
Ao mesmo tempo, assistimos ao aumento na perversidade da violência praticada pelos agressores, dos requintes de crueldade e do feminicídio, muitas vezes seguidos de suicídio, que nos levam a refletir que, não apenas os registros de denúncias e a publicidade dos casos aumentaram a estatísticas, mas, parece-me que houve, efetivamente, um aumento significativo dos casos.
Essa constatação foi perceptível durante a pandemia pelo COVID-19, quando houve uma explosão de casos de violação dos direitos humanos sofrida pelas mulheres e o aumento da vulnerabilidade social das mulheres.
Além do contexto pandêmico, a partir do ano de 2016, a sociedade brasileira foi vitimada pela expansão de um movimento reacionário mundial ultraconservador de supremacia branca, racista e heteropatriarcal, em que se observou o retrocesso dos direitos das mulheres, da população LGBTQI+, da população negra e indígena.[2]
Ao longo do processo histórico de luta pelos direitos das mulheres na sociedade e na legislação brasileira passamos por dispositivos legais como o Código Civil de 1916; a Lei do Divórcio em 1977; a Constituição Cidadã de 1988 que, após muita luta das mulheres e do movimento feminista – conhecido como lobby do batom, consagrou o princípio da igualdade entre homens e mulheres, além dos direitos individuais sociais; a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e pelas importantes conquistas de criação da primeira Delegacia Policial de Defesa da Mulher e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Entretanto, a violência doméstica tardou a receber a devida atenção e, somente, em 2003, surgiu a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República em resposta a uma antiga reivindicação feminista e, em 2006, finalmente foi publicada a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que estabelece uma série de medidas legais de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e prevê a criação de políticas públicas para a efetivação dos direitos das mulheres a uma vida sem violência.
Apesar de todas essas conquistas, as desigualdades sociais de gênero, de classe e de raça ainda são elementos estruturantes de nossa sociedade, que se reflete no panorama da violência doméstica e familiar contra as mulheres e coloca o Brasil na 5ª posição do ranking mundial de feminicídio.
A desigualdade de gênero ganha contornos ainda mais severos se aliados à questão racial; isso porque, historicamente, a população negra tem menos acesso a direitos que as mulheres brancas e que, por essa mesma razão, as pesquisas e os estudos específicos sobre essa pauta são necessários para desvelar a exploração e exclusão dessa população na sociedade.
Essa realidade foi acentuada durante a pandemia diante da realidade econômico-social brasileira, marcada pela informalidade nas relações de trabalho, desemprego, desigualdade e vulnerabilidade das mulheres. Como evidência dessa desigualdade, convém relembrar que a primeira mulher a morrer por complicações pelo COVID-19 foi uma empregada doméstica negra que teve de continuar trabalhando mesmo com sua empregadora com sintomas da doença.
Para além do contexto pandêmico, sofremos a diminuição da execução orçamentária no programa de combate à violência contra a mulher e no programa de igualdade racial, durante o período de 2014 a 2019, quando os casos de violência contra a mulher durante o isolamento aumentaram, especialmente, em ralação às mulheres negras, conforme retratado pelo número de feminicídios. O fato é que as mulheres, a população LGBTQI+, negra e indígena vêm sofrendo com o retrocesso das políticas públicas e com a destruição dos direitos conquistados há mais de três décadas.[3]
As medidas de combate à violência contra as mulheres durante a pandemia pelo COVID-19 se restringiram à medidas preventivas como campanhas, cursos e cartilhas, que, isoladamente, são ineficazes no enfrentamento à violência. As políticas de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes também sofreram redução orçamentária, desde o ano de 2016, até sua extinção em 2019.
Além de esvaziadas, as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres sofreram, no período dre 2019 a 2022, uma intervenção conservadora e familista cristã de fortalecimento da família de forma descontextualizada da violência doméstica, uma vez que é no espaço privado do doméstico que ocorre a maioria das situações de violência sofridas pelas mulheres.
O retrocesso nas políticas públicas de promoção e proteção dos direitos das mulheres acentuou a desigualdade entre homens e mulheres, a violência doméstica, a precarização do trabalho, da saúde e a pauperização, em especial das mulheres negras e indígenas, refletindo nas relações assimétricas de poder entre homens e mulheres.
O terceiro e não menos importante fator a ser considerado e relacionado ao patriarcado que, durante o período de retrocesso político e social dos últimos tempos, assumiu um sentido político envolvendo não apenas o espaço privado, mas também público, refere-se à mudança comportamental de emancipação feminina que tenta romper com os padrões históricos e estereotipados de nossa sociedade.
Assim, alicerçados pelo movimento ultraconservador de combate a igualdade de gênero, movidos pelo sentimento de posse e domínio, ressentidos de seu papel de macho e sentindo-se rejeitados pelos rompimentos das relações, os homens passaram a reagir com mais crueldade e violência, inclusive, de forma letal, apesar de todas as medidas protetivas existentes, visando aniquilar a autonomia feminina de portar-se de acordo com sua vontade e dizer BASTA às relações abusivas e violentas.
Essa tríade: aumento das denúncias; enfraquecimento e extinção das políticas públicas; autonomia da mulher que não mais se sujeita a uma vida de violência e aos padrões estereotipados socialmente estipulados de misoginia e machismos; tem repercutido no panorama estatístico da violência de gênero contra a mulher, não sendo acertado, portanto, atribuirmos apenas a maior procura por parte das vítimas às delegacias como única resposta ao alarmante número de casos.
Essa reflexão se faz importante para que retomemos a atenção para as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero[4], fortalecendo e ampliando a rede de proteção das mulheres e de promoção de direitos e de autonomia econômica das mulheres com vistas à construção de uma vida livre de violência, justa e igualitária.
[1]. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados no final de julho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram crescimento de 6,1% dos casos de feminicídio, e 1,2% de homicídios de mulheres em 2022 em relação aos números de 2021.Fonte: Agência Câmara de Notícias.
[2].FONSECA, LÍVIA GIMENES DIAS DA. A pandêmica violação dos direitos humanos das mulheres e o contexto do Covid-19. São Paulo: D`Plácido, 2021.
[3]. De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), a execução orçamentária de ações voltadas ao público feminino sofreu redução de 75% entre 2014 e 2019. No período, passou de R$ 185 milhões para R$ 46 milhões. Fonte: Agência Câmara de Notícias.
[4]. No Brasil existem apenas sete Casas da Mulher Brasileira. Fonte: Agência Câmara de Notícias
Defensora Pública do Estado do Ceará do Núcleo de Atendimento da Defensoria na infância e juventude – NADIJ . Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Direito Empresarial pela UECE. Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARRETO, Ana Cristina Teixeira. Por que a violência contra as mulheres aumentou? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64370/por-que-a-violncia-contra-as-mulheres-aumentou. Acesso em: 10 dez 2024.
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